segunda-feira, 3 de julho de 2017

Bernardes Carvalhosa

Esta manhã bem cedo, depois de um abraço bem apertado e em menos de um café tomado ao balcão, Bernardes Carvalhosa dizia-me com alguma mágoa no sorriso sempre aceso que lhe é característico, que poucas vezes terá gostado de mulheres que não tivessem gostado de si. Que nem sabia se isso aconteceu alguma vez, porque geralmente as mulheres, quase todas, gostavam dele. Crê até que tenham gostado de si muitas vezes mais do que as que deviam, às vezes só as que não deviam. Mas que o que sempre lhe interessou não era a impressão que causava nas outras pessoas, mas sim a impressão que elas causavam em si. Que a sua vivência não é, nem nunca foi, apesar de tudo, uma vivência libertina, é uma vivência de sentidos. Mas que o seu problema - talqualmente o meu, diz Bernardes Carvalhosa - é quando se abrem portas entre as nossas e as suas bocas. 

Ainda agora, já para lá do meio-dia, embrenhado cá nos meus aborrecimentos profissionais, continuo a tentar recordar-me se aquele circuito Amesterdão-Berlim-Praga foi em 93 ou 95. Mas creio que foi em 93.

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Chegado a este grau de amadurecimento...

 

...julguei bem já estar em condições de, de uma vez por todas, decidir qual destas canções é a da minha vida. Mas não. Ainda estou verde.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

As Quatro Estações para violino e orquestra

Esgueirou-se para dentro da cama. Tinha tido um arrepio. Ia ter calor. Encostou a cabeça ao ombro. Estendi-lhe o rosto. A mão banhou-me o peito do lado do coração. Recitava sonatas de Outono. Os dedos voltearam pela carne entusmecida deixando uma linha de fogo. De onde vinha aquela onda de calor? Desceu. Despiu o meu braço, parou junto da veia, à volta do sangradouro, desceu até ao pulso, até à ponta das unhas, tornou a vestir o meu braço com uma comprida luva aveludada. A mão passeava por entre o balbuciar dos montes brancos, por entre os últimos nevoeiros, por entre a goma dos primeiros rebentos. A Primavera que tinha pipilado de impaciência na minha pele explodia em linhas, em curvas, em arredondados. Beijava tudo o que tinha acariciado e depois, com a mão suave, despenteava e sacudia com a pluma da perversidade. O polvo das minhas entranhas estremecia. Eu bebia com ela, amamentava-me das trevas sempre que a sua boca se afastava. Os dedos regressavam, circundavam, sopesavam o calor do peito, os dedos acabavam no meio do ventre como destroços hipócritas. A sua face hibernou no côncavo da virilha, avistei os seus cabelos espalhados, avistei o meu ventre chovendo estrelas. Como a caricia é magistral! Os meus olhos fechados escutavam a língua que aflorava a pérola. Avançava, recuava, sufocava, zangava o polvo nas entranhas, perfurava a nuvem dissimulada, parava, voltava a partir, esperava junto das vísceras.

Voei, agarrei no bico os flocos de pura lã presos nos espinhos da sebe. Os meus beijos escorregavam uns por cima dos outros. Lancei-me nos escombros da ternura. As mãos tomaram o lugar dos lábios fatigados. Aprendi o aveludado da sua pele, o resplendor da sua carne, o infinito das suas formas. Subi. O céu mendigava. A mão pousou na minha cabeça: um sol tímido de Verão branqueou os meus cabelos. Alisei os seus.

terça-feira, 27 de junho de 2017

Questiúncula

Como é que se explica a alguém (muitos), a grande diferença que existe entre ética de convicção e ética de responsabilidade: sabendo-se que a primeira nem sempre  é defeito?

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Grinalda

No adro o crepúsculo caía como o véu lhe caía sobre o rosto. Ela avançava, sorridente, amachucada debaixo das dobras do seu vestido de seda selvagem. Aquilo era a minha grinalda, aquilo era o rasgão no véu. Atrás, eu definhava, era fatal, a enorme cauda aumentava as estradas dos meus campos favoritos, o tempo agarrado ao relógio da torre da igreja fazia-se rogado. A brisa imprevisível entrou, acariciou as minhas faces, seduziu a minha memória. Estava consumado.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Poeta negro

Qualquer pessoa tem direito a descer, de forma vertiginosa e assustadora, ao patamar mais profundo da vida e por lá ficar, de olhos bem abertos num exame escuro, tempo suficiente para perceber o que vê, o que toca: o horror, a angustia e a permanente sensação primordial do medo de ser humano, de estar vivo, de ter que viver e dar vida, de ter de morrer. E depois voltar para cima e olhar o fundo do poço como quem olha as estrelas que pululam a céu aberto na noite de hoje.

Análise morfológica

Não há muito mais a acrescentar. Um verbo (fazer), dois pares de substantivos (floresta, incêndios, cidadãos, políticos) e dois advérbios, um de tempo (agora) e outro de negação (nunca).

terça-feira, 20 de junho de 2017

Psycho killer (epílogo)

(...)
Duarte estava agora a aguentar toda aquela cena, completamente virado para dentro, da mesma maneira que aguentava tudo. As palavras "ainda há pouco pedias a Deus por sinais" abriram caminho pela sua mente como grotescas enguias nadando em águas pesadas cheias de algas negras ondulantes, rodopiando e redemoinhando à volta umas das outras. Agarrou com firmeza o último copo, formando com ele uma dupla compacta: solitários, sofredores em silêncio, devoradores de vidas inconsequentes. Era difícil abandonar-se, render-se. No fim do dia tinha sempre vontade de dormir sozinho. Despiu-se e encheu a banheira. Ficou de molho durante imenso tempo, folheando umas revistas que nem teve o cuidado de não molhar. Bebericou as últimas gotas de bourbon que repousavam no fundo do copo. Na boca ficou-lhe um travo a chuva. Quando sentiu que a água quente tinha cumprido o seu papel, aliviando-lhe a tensão das pernas e concentrando-a no sexo, masturbou-se, arqueando o corpo no momento crucial para romper a água e ejacular para o ar. Para espanto seu, uma gota de esperma bateu na lâmpada pendurada no tecto, com um som crepitante, projectando uma sombra trémula e fugidia.

- "Deus queira que Deus não exista, Deus queira que Deus não exista", vociferou de olhos semi-cerrados



A convite/desafio do meu caro Miguel Bondurant, e não sei se agradeça ou peça desculpa, mas a quem deixo um forte abraço. 

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Trovoada seca

Funda, silenciosa, extensa e dinâmica, a tristeza umas vezes é presente outras já é passado. Hoje é cinza; ar turvo e poderoso, penetrado por densas partículas de fumo, estilhaços imaginários de fogo que furam a pele. Presente habitado por sombras, buraco que se afana no vazio. Hóspede indesejado que fomenta a impotência. Pesado tremor de incompletude, forte pontada no âmago. A memória não a conhece, mas recalca-a, depois tenta apaga-la. É nessa viagem, a demanda dos que sabem o que é a tristeza, que hesito desesperadamente em embarcar. Porém, hoje preciso ficar triste. Deixo-me na tristeza. Amanhã, vou ver se não.

domingo, 18 de junho de 2017

Modus Vivendi

Agora é hora de ajudar, não de arranjar culpados, a força da natureza é imensa e absolutamente destruidora. Depois, se quisermos encontrar responsáveis para tamanha tragédia, que ainda não acabou, teremos de ir muito fundo, mas muito fundo mesmo. Quiçá alterar todo um modelo de vida.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Estarolas

Toda a gente sabe que as pessoas dos blogs não podem ser amigos uns dos outros, porque as pessoas dos blogs raciocinam friamente, inteligentemente, logicamente. Não podem ser amigos uns dos outros, porque as pessoas dos blogs são irrazoáveis e ilógicas. Consequentemente, para serem amigos uns dos outros, deveriam ir ao encontro do terreno de uns e outros -  o terreno do ilogismo. E isso não é para todos. E não sendo para todos, logo não emparelham, logo não podem ser amigos todos uns dos outros. Mas, logicamente, podem divertir-se uns com os outros.

terça-feira, 13 de junho de 2017

Da moleza da tarde

... e daquele encontro entre os corpos elevar-se-iam os odores frutados da vida. Salpicos de suco lubrificariam todos os (últimos) orifícios. Com os dentes morderia cada vinco da sua pele de carne crua. Enterrar-me-ia até ao fundo, escavando a sepultura que haveria de me conduzir às portas da perdição. E uma vez percorrido todo o caminho, afundar-me-ia no abismo untuoso onde tantos outros, antes, quiseram perecer. E no fim, bastaria que se apagasse um ou outro fio de memória.

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Pungente, doloroso e elegantemente aterrador. Assim foi Pessoa. Até no feminino.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Parafraseando


O tempo que eu mais admiro é aquele que nunca acaba. Assim como as pessoas.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Primavera Sound

Inclinou-se sobre aqueles dedos tépidos subindo até ao pulso com uma caricia imprudente que lhe despertou nos olhos uma surpresa, quase uma réstia de alarme.
-- Nunca imaginei que se pudesse seduzir uma mulher só a tocar-lhe na mão, disse-lhe umas horas mais tarde, já nos braços dele, enquanto o som da tarde quente de Primavera entrava obliquo naqueles aposentos soturnos.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Encardido

Voltei aos jornais em papel. Compro-os, levo-os para casa, leio-os quando me apetecer. As noticias impressas chegam-me assim sem quaisquer preocupações de pontualidade, muitas vezes já apagadas, de modo que o papel amarelece ao mesmo tempo que os acontecimentos.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Pegada ecológica

Oiço noticias, leio especialistas e fico paralisado. Não creio que seja nostalgia, talvez seja raiva por aquilo que vamos perdendo. A beleza da terra é-nos quase indiferente, como o dinheiro a quem nasce rico, e no entanto faz parte do oxigénio que nos mantém vivos. Passa num abrir e fechar de olhos, o espaço de uma vida, mas a beleza é frágil, morre mais depressa. Para já fica assim. Ainda se respira. Quem vier a seguir que ponha a máscara. Ou que feche a porta. Está visto.

Tríptico



sábado, 3 de junho de 2017

Da problemática do copo meio cheio ou meio vazio


Quando alguém se abeira de nós e nos diz que só quer compartilhar connosco as coisas simples da vida. A que se referirá?

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Por causa daquilo dos pandas bébé



O que eu gostava mesmo era poder derreter uma série de blogs que têm dentro gente incrível e fundi-los num só. Que magnifico seria a profusão de conhecimento do Caríssimo Xilre à mistura com o humor refinado de Don Pipoco Mais Salgado, com o chá da Miss Smile, com a sensibilidade da desafiante Ana, da Susana e da Laura, com a poesia da Maria Eu, com o sentido corsário da Capitã Cuca, com a profundidade nua da Flor, com o altruísmo e a musicalidade do CN Gil, com a praia da Isabel, com a voz meiga da Noname, com o romantismo intermitente do Miguel Bondurant, com o sonho inacabado da Olvido, com as múltiplas faces e tentáculos do Manel Mau-Tempo, com os atalhos da Teresa, com a esquina da Luisa... com muitos, muitos outros. No fim chamar-lhe-ia "Mistifório".