quinta-feira, 12 de abril de 2018

O problema dos homens

As mulheres em pêlo sempre me fizeram fantasiar; os seios, o sexo, as ancas, as nádegas, as pernas, o interior das coxas, os olhos, tudo isso sempre me põs escorpiões no cérebro, mas na vida foram sempre as mulheres atrasadas que desejei abraçar, com o seu ar de virem sempre de muito longe, apertá-las até morrer. Este mistério é uma delicia extrema: malagueta da Guiné e cardamomo do Malabar, pica e é perfumado...

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Poetas e mercadores

Os primeiros têm estados de alma, os segundos almas em estado de triunfar, sejam quais forem os mundos em vias de nascer, ambos sabem que estão aqui os seus terrenos de caça, com ou sem virtude, com ou sem felicidade. Uns observam o mundo novo como predadores, apressados em descobrir ali o que irá surgir de mercadejável. Outros olham-no e tentam entrever nele o que torna actual a arcaica e antiga história humana. Uns estão à espreita de objectos, outros perscrutam as quimeras. Enquanto uns não morrem, como ter a certeza que outros estão vivos? 

Bem sei que me dirás que te queres do lado dos vivos, sem pejo em aceitar mundos contraditórios e determinado a agir de modo a que não cresçam os que traem o princípio imperioso. Mas... afinal, és poeta ou mercador? 

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Sabeis de onde venho?

Tenho a sensação de estar esvaziado, esgotado, roubado. Como se voltasse de uma outra dimensão, de um lugar desconhecido do mundo. Uma espécie de viagem para fora do contingente, para o exterior da terra. Como quem vive uma odisseia. Nunca senti tão intensamente esse sentimento de estranheza. Ter saído da vida comum, não para me admirar de tudo, mas para me deixar embrenhar cheio de reticências e dúvidas. E escrevo isto por saber que, seja qual for o juízo que se possa fazer, ele não surtirá qualquer efeito sobre aquilo que sou. Escrevo-o apenas para dizer ao mundo, aos terráqueos, que regresso de uma viagem de alta densidade arcaica, lá onde tudo se decide pela bitola do mais profundo. Uma história do vivente em pequenos capítulos. E o estranho é este tempo esquecido e recobrado, o de antes das palavras, de antes da inteligência, quando tudo não era senão fluxo e forças celestes. De modo que aqui têm, sou um pobre ser que acaba de transpor o grande fosso, e isso torna-me fraco. Fraco e nostálgico. Não de um paraíso perdido, mas de uma felicidade não encontrada.
Sabeis de onde venho? Dão-se alvíssaras.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Dia Mundial da Poesia

Bom era que os poetas pudessem navegar no infinitamente pequeno, entre os nanos, esses minúsculos buldozers à escala atómica que penetram nas artérias e nos vasos do cérebro, para efectuar uns trabalhos miúdos de limpeza e desobstrução, onde eles - os poetas - lhes dissessem. Único receio, pois serão orgânicos: que se reproduzissem até ao infinito e destruíssem os sonhos. Também imagino que talvez haja um gene da paixão alojado nos confins do genoma e que fosse o poeta o descobri-lo.... bom dia meu caro senhor, venho propor-lhe uma pequena engenhoca genética que irá enlouquece-lo de amor...
Por quem? 
Não tem importância. Louco de amor e basta!

"Como quem, vindo de países distantes fora de
si,chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho."
                

(Se puderem fazer de mim um estado de alma, façam-me Manuel António Pina. Obrigado.)

terça-feira, 20 de março de 2018

Ostras

- Meu amor - murmurou o amante, desapertando-lhe lentamente várias filas de botões.
Ela não se voltou para receber os beijos dele, mas estremeceu com a sensação na sua pele. Raramente havia estado despida, mas agora estava a ser descascada como uma ostra rara e retorcia-se como se o fosse.

segunda-feira, 19 de março de 2018

Crepusculário

Hoje não te vou abraçar, também não te vou oferecer uma gravata (azul), tão pouco vou sorrir-te e dizer: "estás cada vez mais pai". Mas se tiveres tempo e paciência, posso ir ali à prateleiras dos velhos buscar o Crepusculário. Que dizes?

"...nada podem teus olhos doces, 
como nada puderam as estrelas 
que me abrasam os olhos e as faces. 

Escutarei de noite as tuas palavras: 
... menino, meu menino... 

E na noite imensa 
com as feridas de ambos seguirei..."
                                                                                     (Pablo Neruda)
                    

quinta-feira, 15 de março de 2018

Da noite em que eu dormi com a Sylvia Plath

Perturbado, incerto, inquiridor não cesso de respirar, de tirar proveito de uma presença fulgurante, de um corpo que se move a meu lado, como se ali estivesse o quotidiano de ambos, caminhar juntos nos bastidores das horas perdidas antes de nos enfiarmos nos de uma cidade, debaixo de uma campânula de vidro... debaixo de uma bátega.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Gisele

Acariciam-se com o olhar, promessas de rapidez, onde fica a cama, lugar acolchoado onde vão desenrolar-se as intempéries? contando que ele seja meigo, bruto, outra vez meigo, que tome e dê, retarde e acelere, se cale, que humedeça, sem excesso, sem arrebatamento fingido, docemente, concentrado no contacto extremo, no molhado, sem pensar no depois, ali e agora. Quanto ao resto, Gisele saberá inventá-lo, à sua maneira.

Doutrina

Como em tudo na vida. Nada de arrependimentos, nada de más consciências: a recordação simples de um falhanço em que ninguém bebeu do essencial para o oferecer em dádiva ao outro. Alguns amplexos e basta. Os réus acolhendo a objurgatória.

terça-feira, 13 de março de 2018

Setenta e nove

A Bloga está a passar por uma crise de realidade. Os escribas são todos iguais, não descansam até o mundo que inventam substituir aquele em que vivem e que os desilude. É tão pueril! As palavras não são as coisas, e por mais que profiram as suas encantações, nenhum milagre se produzirá segundo os seus desejos. O mundo é rebelde e não tem lógica, não obedece a qualquer injunção das palavras, é um monstro e nós os seus lacaios. Não acham?

__ Não!?

sábado, 10 de março de 2018

Palomar


Como é que o homem se desarticula, interroga-se o Senhor Impontual, por que motivo um dia se perde quando julga ter chegado em segurança a fim de respirar um pouco de ar puro, olhando a paisagem e dizendo para com os seus botões: o mundo é belo, eu faço parte deste universo, mas sinto-me bem aqui? Como se pudesse abeirar-se de uma janela, voar e esquecer.

quinta-feira, 8 de março de 2018

Duas fotografias, uma efeméride

 @Robert Doisneau

@Josef Koudelka

terça-feira, 6 de março de 2018

segunda-feira, 5 de março de 2018

A hora mais negra

O mundo sofre de graves perturbações: chovem bombas na Síria - uma imagem altamente desconcertante, Trump, Putin, Kim Jong, ameaçam o mundo todos os dias, a Venezuela está um inferno, o Brasil chapinha na lama da corrupção, a Alemanha está numa encruzilhada politica, Berlusconi pode voltar na Itália. Os movimentos de alerta resumem-se a tirar camisolas, deixando o empowerment das mulheres em muito maus lençóis. O globo entretém-se em festas alegres e jazz.
Que outra civilização além da nossa sentiu tanto prazer em destruir-se, em fazer sofrer os corpos, em conspurcar as almas, em esfolar as peles?

quinta-feira, 1 de março de 2018

Baseado num poema de Eugénio de Andrade

Após a euforia das noites mal sonhadas, aterra suavemente em madrugadas baças. Fala e agita-se. Nenhuma respostas às suas aspirações. Sente-se inacabada, incompleta, amputada de desejos, de perfumes, de vontades. Querer, é a faculdade de nomear o que não é, moldar com sombras um rosto, perfumar o inodoro. Pratica o bem e isso não a torna feliz. Preocupa-se. No entanto, tem um desejo simples: dançar a sua vida com um homem.
Dançar...
Dançar no mundo com alguém. Viver dias vulgares dizendo para consigo, logo à noite o baile continua...

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Conclamação

O verdadeiro triunfo da indiferença podia ser outra coisa qualquer. Como o gosto de manejar a condescendência e a delicadeza. Mas não. Cada coisa a seu tempo. Em primeira analise são as palavras vindas de nenhures que se tem vontade de imprimir, vindas de onde não podiam ser ditas e, sobretudo, (con)clamadas.

Acontece muito em dias de frio e chuva.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Sabem aquelas pessoas ?

Que porque se dão mal com ausências injustificadas, com a falta de respostas, com silêncios enlouquecedores, com desaparecimentos. Nunca o mereceram, são naturalmente transparentes e se andam sufocadas para dizer, havia sempre uma forma de o saber - olhando-as nos olhos, e bastaria isso para que pudessem dizer tudo. E tinha de ter sido dessa maneira. Não sendo, e esperando que o dano seja o menor possível, apresentam automaticamente a sua demissão de uma história que nunca o foi. Sabem?
Por vezes gosto de gente assim, outras não dá jeito nenhum.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Luz

Separamo-nos à primeira claridade da manhã, debaixo da dúbia luz dos dias que nascem depois das chuvas. Já é uma luz que se distingue, mas ainda sem ostensivo orgulho. Há muitos pintores da noite para além de Rembrandt. Mas há poucos pintores da aurora, porque a aurora é luz glauca, é a hora da essência, a vereda dos passadios. O único que sobressai neste aspecto é  Caravaggio e poucos mais. Gosto muito de ti. Sê prudente.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Ainda sobre as idades

Agarrou-lhe na mão, puxou-o para dentro e fechou lentamente a porta atrás deles. A névoa ficou do lado de fora. Os deuses haviam preparado a candeia do pecado: a um canto tremeluzia a luz minúscula do candelabro azul sobre a cama. Ela já não era a mesma, adquirira novos truques de elevar o prazer, praticava-os com todo um outro tacto e com uma outra paixão, as pernas longilíneas e ainda muito sedosas, levantadas para o céu, cadenciavam o triunfo de um amadurecimento irreversível. Tudo na perfeição: a mente, as emoções, o corpo, a cegueira do instante revisitando um tempo lá mais atrás, a pulsação surda, a frenética simultaneidade. A explosão do pus dos adiamentos acumulados. O tempo compulsivo, a época das idades menos amadurecidas, explanados numa tarde de sol brando.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Geração sem idade


As pessoas da geração sem idade estão desanimadas com o futuro, porque estão cada vez mais conscientes de que, como espécie, perseguem um sonho inspirador que as levou à ruína. Disseram a si próprias que o mundo estava ali para ser conquistado por elas, pelo que quanto melhor parecessem e o mostrassem publicamente, quanto melhor seria o seu controlo, maior seria a sua vantagem, melhor o seu mundo seria. A base filosófica desta geração, apoiada na crença que o mundo estava aqui para ser controlado por quem dominasse o outro, parecendo bem, é uma crença equivocada. Esse optimismo rapidamente passou a ser a fogueira em que se têm queimado. Uma espécie de auto-aniquilação progressiva que, a cada flash, lhes mostra um mundo mais azedo, mais caótico, profundamente confuso.

Por exemplo, se isto fosse o Facebook ou o Instagram, eu precisava de pensar muito bem sobre que mensagem pretendia transmitir como alternativa ao mito do domínio e do parecer bem que deformou ideologicamente esta geração sem idade. Felizmente isto é um blog. E a melhor coisa de um blog é que não precisa sequer de fazer sentido. Por isso fico com o meu cérebro descansado a fotografar a música que oiço, os livros que leio, o cão que se passeia no areal. O que, diga-se em abono da verdade, também não faz de mim um rapaz sem idade.
Busca, Fiodor, busca...