sábado, 12 de maio de 2018

Palomar

Numa época em que todos se esforçam por parecer o que não são, o Senhor Impontual, que adquiriu o hábito de aos sábados de manhã passar os olhos pela blogosfera em geral e ler os atrasados em particular, não pode deixar de formular um pensamento, precedido de forte convicção, de que não há-de ser fácil viver incrustado na própria estupidez, flagelando-se, retocando ali e acolá a maquilhagem social que esconde as equimoses da alma, impedindo-se a si mesmo de experimentar o que sente, como que para melhor evitar a decepção de se ver apenas como ele próprio: a náusea que oculta sob um exterior animado, o riso forçado ou a fixação na preservação das suas feições de perpétuo jovem e de todo um simulacro geral de entusiasmo. 
Mas pior ainda há-de ser aceitar as vertigens e os remorsos do espírito, mesmo apresentando-se no instante crucial, convenientemente, diante do abismo como se este fosse insondável - que não é.
O Senhor Impontual tencionava esta manhã fazer um corte e uma rega geral nos relvados circundantes, mas esta noite choveu. Talvez vá dar banho ao cão.  

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Passei a manhã toda a fotografar árvores velhas


Oitenta anos de respirações e rebentamentos de estames, tem que se lhe diga! Exclamo. Como bons e leais servidores da máquina humana, a ONU ou Unesco deveriam condecorar estas árvores, medalha do Grande Mérito, em nome do planeta inteiro, a humanidade reconhecida. Saltaram de um século para o outro sem perjúrio, nem transtorno de maior e contornando toda a espécie de humilhações. Pequenas promessas não cumpridas, amores desfeitos, o olvido. Terão produzido mais lágrimas do que sorrisos, passado mais tempo a sair ilesas das garras da melancolia do que refasteladas em camas de rede ao sol. E nós, aqui e agora, a batermo-nos cheios de volúpia com a matéria humana, o orgulho, a vaidade, o que impele sem descanso a tentar ser aquilo que se não é.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Asseio

Os solitários sabem que a auto-imposição de tarefas tão simples como passar uma hora a esfregar uns sapatos reluzentes, trinta minutos a pentear o cabelo ou uma manhã agarrado ao estojo de blush, demonstra, se alguma dúvida houver, que a fome de companhia ou a sede da solidão se transformam numa angustia física, porque o seu alivio nunca depende do esfomeado ou do sedento mas de outro, de alguém, de um semelhante que ofereça um bocado de amizade, um gole de carinho, uns minutos de silêncio... vá lá, um laivo de tesão.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Coaching

De dentro do tailleur de corte sóbrio sobressai um ar decidido e uma presença de certo modo marcante. Encarna com bastante facilidade e perfeição a personalidade de mulher segura, independente, aventureira e destemida. Impele-se no aproveitamento de todo o seu potencial, monitoriza o seu desempenho, respira e inspira confiança. Até brincou em analogias: «amar nas margens do Douro é muito fácil, difícil é amar à segunda-feira à noite em casa». Indicia um carácter indomável e ao mesmo tempo um sorriso fácil e caloroso. Chega com propósito e facilidade à gargalhada contagiante. Gosta de estar de bem com a vida, mas de forma fulgurante. 
Não fosse aquele detalhe do cachecol do FCP, também ele de fino recorte, atado na asa da carteira e até se teria ultrapassado o facto de ter chegado atrasada. Agora assim...

sábado, 5 de maio de 2018

Lusque-fusque

O mar ao fundo, mais ao fundo ainda o sol cansado da sofreguidão da terra despede-se em queda livre numa longa faixa de carne viva sangrando lenta e distante no horizonte, o ar rarefeito deixa a noite resvalar, um breve momento de quatro olhos que se entrelaçam num milésimo de segundo infinito, um leve toque de dedos sob a mesa de vime envernizado, palavras que se convertem em sussurros, lábios que se confundem entre si. Por ora o que há a fazer é olhar. É olhar e cheirar, que depois, logo mais, numa insónia demorada, lembraremos o resto das nossas vidas.

(Tirei uma fotografia com a Nikon F70 analógica, mas queimou-se. Peço desculpa.) 

A suprema beleza da matemática

Ao invés de os vermos concentrados a treinar e a prepararem-se para carimbar aquilo que se apresenta como mais que certo - que é a conquista do campeonato, vemos um grupo de jogadores de futebol, de chinelos nos pés, entretidos em churrascos no mais profundo desrespeito pela aritmética, pelos ainda concorrentes ao titulo e pelo adversário do próximo jogo que ainda tem as suas próprias pretensões. Às vezes era preciso uma hecatombe. Não direi o dilúvio.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Equilibristas

Pode alguém julgar-se suficientemente armado e capaz para se ajudar a resolver os seus problemas se abdicou do essencial: o sexo, a pele, o que constitui a alma das nossas vidas, onde cada homem e cada mulher perde o equilíbrio? Não percebo!
Se os únicos e verdadeiros segredos das pessoas giram em torno dos seus sexos. Entrepernas e entrecoxas, no extremo sul do coração e do cérebro. A intimidade. É aí que se urdem vilanias e mentiras, o ciume, a paixão, é aí que nos sentimos míseros e grandiosos com um minuto de intervalo. Feridos e deslumbrados. Não percebo!

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Semblante

Aquele rosto era uma fortaleza, acudia ao mais imediato, divulgava mensagens da urgência, o decoro, mas permanecia mudo acerca do tormento.
Nada explorando das funduras do seu pensamento, tive vontade de dizer-lhe que tanto se pode sofrer de não encontrar como de perder. Há pessoas que jamais conseguirão encontrar o reconforto, o amor, a beleza, o prazer, um ideal. Encontrar, sereno, o tempo em que vivem. Eis a doença universal que corroí por ser invisível e provocada por nada.
Mas não. Fiquei calado. Também tenho outras caras.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Polícia poético

Estou sentado na esplanada olhando o horizonte marinho enquanto degusto uma cerveja artesanal. Duas mesas ao lado, dois jovens alunos do 12º ano, desgostosos, enxovalham em dose dupla a obra do grande poeta que lhes tem sido dado a conhecer nas aulas de língua portuguesa. Ao ouvir estes miúdos, desapontados, tenho vontade de fazer umas visitas agrestes a alguns professores, bom dia sou da polícia poética, o senhor é acusado de ter introduzido nas cabeças juvenis de miúdos de dezassete anos a sua mediocridade, a sua incompetência para levar a amar qualquer poema, pois disseca-os até ao osso, explica-os até os reduzir a uma casca vazia, sem sabor, nem sentido, palavras justapostas desprovidas de sonoridades e de magia. Está, por isso, preso por atentado contra a poesia pura, crime contra Pessoa, violação e violências racionalizantes sobre adolescentes de menos de dezassete anos.
Visualizo perfeitamente estas cenas, as algemas, a fisionomia desfigurada daqueles a quem nenhumas contas foram alguma vez pedidas...

Perscruto de novo o horizonte marinho, agora mais sombrio, dou mais um trago na magnifica cerveja de cor rubi, constato o sabor intenso a cevada, assim como lhe noto o lúpulo da melhor proveniência.

terça-feira, 24 de abril de 2018

1985

Nunca tinha sido beijado. E não tinha nenhuma ideia, enquanto adolescente, de que alguma vez iria ser tocado ou amado por uma mulher. Não estava preparado para as exigências do próprio corpo; as revistas da colecção Gina tinham-lhe ensinado o que era o quê, mas não o que poderia sentir, e tudo aconteceu mais depressa do que a sua mente lenta poderia imaginar. A partir do momento em que ela lhe pegou no braço, debaixo daquelas árvores, moveu-se em dúvidas - a sua simples presença ali significava que estava interessada -, e ele, carregado de dúvidas, não conseguia acompanhar as mãos e os beijos dela e os seus pequenos murmúrios que pareciam pássaros dentro dos seus ouvidos. Não conseguia aguentar o calor sob a sua pele, ou o arranhar das suas unhas enquanto lhe desapertava os botões da camisa, e ficou despido diante da tarde. Depois, o corpo, aquela massa pálida, atordoou a mente, envolveu-a em folhas oblongas e dependurou-a num galho para que o corpo ficasse livre de ir tratar dos seus assuntos...

sábado, 21 de abril de 2018

Shakespeare


Há algo de velado no final de tarde dos dias cinzentos que é indubitavelmente shakespeariano, não acham? Algo acerca de estar no meio das árvores, como Arden. Pergunto-me, absurdamente, se essa sensação ainda é concebível. Pergunto-me se as outras pessoas também ficarão à entrada das suas portas, estáticas e alienadas, a olhar para as árvores com aquela sensação cómica de estarem apaixonadas. De certo não.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

"Uma pestana branca no céu negro"

Não, não é ainda a inquieta
luz de Março
à proa de um sorriso,
nem a gloriosa ascensão do trigo,

a seda de uma andorinha roçando
o ombro nu,
o pequeno e solitário rio adormecido
na garganta;

não, nem o cheiro acidulado e bom
do corpo, depois do amor,
pelas ruas a caminho do mar,
ou o despenhado silêncio

da pequena praça,
como um barco, o sorriso à proa;

não, é só um olhar.


terça-feira, 17 de abril de 2018

Entidades

Estou aqui sentado na cadeira de baloiço que se encontra na sacada virada para o mundo. Tiro umas baforadas de uma cigarrilha, Fiódor deixa-se sonolento a meus pés, no colo tenho um livro, fechado, duro, de capa dura, "branco no branco", olho desinteressado a garrafa Cabeça de Burro Tinto 2013 que se encontra sobre a mesa espaldar de teka envernizada. A noite ainda está fria. Não posso ir para dentro. Há mais de uma semana que, sempre que passo por perto da prateleira dos velhos, David Mourão-Ferreira me azucrina os ouvidos: "não foi nada, não foi nada, podia ter sido amor..."

Bambo, por aqui me quedo. Estou bem servido!

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Homicídio qualificado



Um dia destes
vou-te matar
Uma manhã qualquer em que estejas (como de
costume)
a medir o tesão das flores
...
Um dia destes vou-te matar
Uma certeira bala de pólen
mesmo sobre o coração

__Jorge Sousa Braga - Carta de amor,1981(a Eugénio de Andrade)

sábado, 14 de abril de 2018

Palomar


O Senhor Impontual passa as vistas pelas palavras do dia retendo, varado e com algum desalinho, a seguinte afirmação: "dos quandos e dos porquês"
As pessoas atravessam continentes para ir ao encontro de paisagens e de rostos. Batem com os pés inúmeros caminhos rochosos, trepam flancos de montanhas, navegam em rios tumultuosos, mares insuperáveis, botas de montanha, bicicletas, caiaques, barcos de grande porte, voos transatlânticos. Avançam, avançam inquietos com a intensidade da novidade. O novo, que grande alimento do ego, que magnifico ingrediente em resposta ao desejo de regalo sem fim, à excitação dos sentidos. Gastam-se energias e somas incríveis para deslindar o que se terá passado ali há quatro mil milhões de anos e ainda não se sabe o que pensa a pessoa sentada ao nosso lado, cogita.

O Senhor Impontual tem a expectativa de que hoje não chova.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

O problema dos homens

As mulheres em pêlo sempre me fizeram fantasiar; os seios, o sexo, as ancas, as nádegas, as pernas, o interior das coxas, os olhos, tudo isso sempre me põs escorpiões no cérebro, mas na vida foram sempre as mulheres atrasadas que desejei abraçar, com o seu ar de virem sempre de muito longe, apertá-las até morrer. Este mistério é uma delicia extrema: malagueta da Guiné e cardamomo do Malabar, pica e é perfumado...

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Poetas e mercadores

Os primeiros têm estados de alma, os segundos almas em estado de triunfar, sejam quais forem os mundos em vias de nascer, ambos sabem que estão aqui os seus terrenos de caça, com ou sem virtude, com ou sem felicidade. Uns observam o mundo novo como predadores, apressados em descobrir ali o que irá surgir de mercadejável. Outros olham-no e tentam entrever nele o que torna actual a arcaica e antiga história humana. Uns estão à espreita de objectos, outros perscrutam as quimeras. Enquanto uns não morrem, como ter a certeza que outros estão vivos? 

Bem sei que me dirás que te queres do lado dos vivos, sem pejo em aceitar mundos contraditórios e determinado a agir de modo a que não cresçam os que traem o princípio imperioso. Mas... afinal, és poeta ou mercador? 

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Sabeis de onde venho?

Tenho a sensação de estar esvaziado, esgotado, roubado. Como se voltasse de uma outra dimensão, de um lugar desconhecido do mundo. Uma espécie de viagem para fora do contingente, para o exterior da terra. Como quem vive uma odisseia. Nunca senti tão intensamente esse sentimento de estranheza. Ter saído da vida comum, não para me admirar de tudo, mas para me deixar embrenhar cheio de reticências e dúvidas. E escrevo isto por saber que, seja qual for o juízo que se possa fazer, ele não surtirá qualquer efeito sobre aquilo que sou. Escrevo-o apenas para dizer ao mundo, aos terráqueos, que regresso de uma viagem de alta densidade arcaica, lá onde tudo se decide pela bitola do mais profundo. Uma história do vivente em pequenos capítulos. E o estranho é este tempo esquecido e recobrado, o de antes das palavras, de antes da inteligência, quando tudo não era senão fluxo e forças celestes. De modo que aqui têm, sou um pobre ser que acaba de transpor o grande fosso, e isso torna-me fraco. Fraco e nostálgico. Não de um paraíso perdido, mas de uma felicidade não encontrada.
Sabeis de onde venho? Dão-se alvíssaras.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Dia Mundial da Poesia

Bom era que os poetas pudessem navegar no infinitamente pequeno, entre os nanos, esses minúsculos buldozers à escala atómica que penetram nas artérias e nos vasos do cérebro, para efectuar uns trabalhos miúdos de limpeza e desobstrução, onde eles - os poetas - lhes dissessem. Único receio, pois serão orgânicos: que se reproduzissem até ao infinito e destruíssem os sonhos. Também imagino que talvez haja um gene da paixão alojado nos confins do genoma e que fosse o poeta o descobri-lo.... bom dia meu caro senhor, venho propor-lhe uma pequena engenhoca genética que irá enlouquece-lo de amor...
Por quem? 
Não tem importância. Louco de amor e basta!

"Como quem, vindo de países distantes fora de
si,chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho."
                

(Se puderem fazer de mim um estado de alma, façam-me Manuel António Pina. Obrigado.)

terça-feira, 20 de março de 2018

Ostras

- Meu amor - murmurou o amante, desapertando-lhe lentamente várias filas de botões.
Ela não se voltou para receber os beijos dele, mas estremeceu com a sensação na sua pele. Raramente havia estado despida, mas agora estava a ser descascada como uma ostra rara e retorcia-se como se o fosse.