quarta-feira, 6 de março de 2019

Quarta-Feira de cinzas



Ontem, foliões. Hoje, como que saídos de dentro de um livro. E nesse livro, já se sabe, o mundo é limpo. É um mundo calmo, lento, apesar de sem regras e sem tréguas. Não há noites comparáveis de tão requebradas, mansas e ternas. Todas as noites ali, possuem, no seu bojo, uma languidez latente, que frequentemente explode. É um reino de silêncio, de mornas cumplicidades. Por vezes um reino de algum alarido, contido, um reino de mudas catástrofes. Ali as pessoas não se preparam para a felicidade, e os dias giram sobre si mesmos na mansidão da ternura, na aproximação que conduz à temperança. 
É de crer que ali a beleza tenha o poder de opor resistência à agressão. E não é que me agrade sobremaneira o caminho marcado, áspero, que deixa cicatrizes, lacerações, despojos, restos profundos e fétidos do mundo real. Mas onde está o fio residual dessa beleza, nestas personagens que foram sonegadas à realidade que não dispõem?

sexta-feira, 1 de março de 2019

Cimeira

E quando os ruídos exteriores já haviam sido neutralizados pelo fecho das espessas  janelas da sala, coloquei a voz umas oitavas acima e cortei o silêncio tumular: "Bom dia minhas Senhoras e meus Senhores. Atenção, por favor. Temos de encontrar uma solução alternativa..." 
Quarenta e dois olhos examinaram o ar. Mas por escassos segundos. Voltaram todos ao mesmo: olhos quase divinatórios, reflectindo dúvidas e pensamentos que têm de conduzir a decisões rápidas; olhos com riachos de sangue, fatigados; olhos míopes e astigmáticos, uns bem pintados, outros mal pintados; olhos - quarenta e dois olhos - e mais alguns, subalternos e periféricos que comunicavam entre si através de gestos discretos e de palavras de valor iniciático cujo secreto sentido só eles mesmos entendiam e perfilhavam. Olharam-se muitas vezes, de uma mesa para a outra, mas não se encontraram. O embaraço da escolha, solidarizou estes campeões do silêncio meditado. 

Agora, já noite feita, de regresso a casa, circulo na marginal norte do rio Douro e observo as cicatrizes da urbe em todo o seu esplendor.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Anonymous

O blogger, tal como o vivente, não possui face. E ignoram que a face de quem escreve, assim como a de quem vive, é a que se estende, é a que se exprime pelas palavras de que se serve, que a face de quem escreve é, antes de mais, sobretudo, a face dos outros. A face de todos. E que a face de cada um é construída com opções, divisões, favoritismos, crenças, disparidades e paranóias.
Em Itália ─ onde tenho passado umas temporadas: oh pátria minha ─ insistem tratar-me por Giorgio. Eu, alienado que sou, não me canso de os corrigir: Signor Giorgio. Signor Giorgio, per favore. É que, seja em que canto do mundo for, faz toda a diferença.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Canção de engate

O passado é uma coisa da qual somos prisioneiros. Podemos fazer com o passado exactamente aquilo que desejamos. O que não podemos fazer é ─ afundados num sonho de imagens quietas ─ alterar as suas consequências. 
Vamos fazer o passado juntos?

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Trama fina

Senta-se erguendo o busto, depõe as mãos, não as coloca: depõe-as. E as mãos também falam: nem antigas nem fatigadas. Mãos em pleno voo. A sublinhar as palavras com esse toque de gestos. Gestos displicentes, subtis e amenos que se tornam quase imperceptíveis. Pressinto que, para lá da disponibilidade visível, procura enviar-me para uma certa contensão. Contensão. Não contenção. 

Náusea

Este tipo de episódios são coisas gastas, vistas e inúteis; e pessoas arranhadas, tristes, derrotadas, amargas e perplexas são habitualmente resumidas e encerradas num comentário de pressurosa solidariedade, em caixa baixa com letra minúscula e arredondada de jornal diário. Não fujo à regra: mete-me nojo. 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Método indutivo

Quem ousa defender este ultraje à condição humana?. Quem, alguma vez, vai resgatar, pela palavra, pelos actos ou pelo silêncio, esta infâmia e esta vergonha? Isto é a eterna imoralidade da História. História essa que só pode ser escrita pelos viventes - mas viventes de quê?, de que despojos?, de que charneira? Pois se a indignação for coincidente com o testemunho, aponte-se a responsabilidade a um sistema que, para garantir os seus privilégios, estimula e cumplicia-se com um repugnante mecanismo repressivo organizado, que mais não faz que estigmatizar. Uma máquina de bestialização articulada em nome de da igualdade e, alegadamente, contra a discriminação. Haja bom senso. E já agora bom censo.

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Fevereirada

"Há muito tempo que não fazia isto", disse ela quando voltou a falar. E foi tudo o que disse e disse-o numa voz segura, embora baixa. Porém, voltei a pressentir - ainda mais claramente - a brecha dentro dela; e isso evocou em mim uma ternura irreconhecível. Quando nos levantamos para irmos embora, ofereci-lhe o meu braço e ela aceitou-o, sorrindo. Depois, começamos a caminhar, deixando a praia para trás. Lembro-me nitidamente da sensação da pele dela, fresca e macia, sobre a minha. Nunca tínhamos estado em contacto por um período de tempo tão prolongado; a sensação de que o corpo dela era tão forte e no entanto pertencia a alguém tão frágil permaneceu comigo por muito tempo.

Hoje tive uma sensação estranha; senti-me em casa. Talvez isso se deva ao facto de ter vivido quase sempre uma existência transitória - mudando de dormitório para dormitório - e nunca tenha ansiado pela natureza instalada num único poiso, talvez se deva àquele terraço - um ninho de águias privado com vista para o mar, ou talvez se deva ao facto de estar uma manhã gloriosa de Fevereiro com um vento agreste do Atlântico que faz enfunar as árvores e as nuvens correr pelos céus. Fosse por que razão fosse, senti-me em casa.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Cognoscitivos

No entanto, nunca tivemos tempo suficiente para formar hábitos unos - à excepção de dormirmos nos braços um do outro.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Sem foto de pouco vale...

... mas do mesmo modo que a grande escritora e poetisa polaca Wisława Szymborska -- em referencia à "Leiteira" de Johannes Vermeer -- dizia que enquanto aquela mulher do Rijksmuseum, em quietude pintada e concentração, dia após dia, não verter o leite do jarro para a vasilha, o Mundo não merece o fim do mundo, eu digo o mesmo do nascer do sol que presenciei esta madrugada: enquanto uma luz destas iluminar o universo, os dias não merecem o fim dos dias, os homens não merecem o fim dos homens.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A(Chega)

O que verdadeiramente preocupa neles é a capacidade de tentar persuadir as pessoas a serem honestas consigo mesmas, fazendo-lhes ver que quando isso acontece elas obtêm a vantagem da surpresa. Uma vantagem táctica incomparável em qualquer insurreição. Porque são as mentiras que contamos a nós mesmos que nos tornam repetitivos, previsíveis e inconsequentes. É perigoso.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Préstito

O silêncio, entre os revoltosos ruídos do ser e do não ser. 

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Do verbo acossar

Cara redonda, nariz fino, arrebitado, os cabelos parecem fios de carrete e são negros, longos, encaracolados. Os olhos espreitam furtivamente pelo rasgo das pálpebras grossas, linces que se abrem. É esguia, mas robusta e astuta: aprendeu a defender-se das armadilhas que o mundo lhe estende. Aprendeu, também, o difícil equilíbrio em terrenos resvalantes: a vida é uma espécie de emissário de crueldades imprevisíveis, e uma mulher como ela foi por ela ensinada a tornar-se uma inveterada guardadora e defensora do seu próprio corpo. O seu corpo. A sua alma. A única propriedade privada que possui, que lhe pertence em regime de exclusividade. Já foi maltratada, já foi arranhada, magoada. Agora, dificilmente. Reage como um animal de acosso.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Pintar Fevereiro

Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma segunda-feira. Estamos em Fevereiro. Avançou sozinha, com os braços um pouco afastados do corpo, à espera. Não pelo seu parceiro, que estava a olhar para ela, absorto. Não pelo acordeonista, que ainda não tinha começado a tocar. Não de que outro casal se juntasse à dança. Ela estava à espera de ser arrebatada pelas forças dentro dela. Ela estava à espera de que essas forças viessem à tona. Calmamente, com os tacões ligeiramente no ar, o rosto aberto, as palmas das mãos viradas para cima, como que a ver se estava a chover. Quando sentisse o primeiro pingo, ela ia mexer-se.
Os pingos vieram! Rodou duas vezes sobre si, fazendo mais de vinte passos, e o seu parceiro, com as mãos esborratadas de tinta, juntou-se a ela.
Ela era indelével como o tom do corante. No entanto não era ela que tinha aquela cor, era o seu desejo - uma massa emaranhada de cores em todo o seu esplendor. Como se tivesse sido pintada ontem. Corante, magenta, laranja, vermelho-romã, escarlate, limão, verde-pistácio. Alvitrei, num sfumato fora do meu alcance, esbater a graduação, suavizar a transição de luz. Mas não. Quedei-me pela aplicação uniforme e levíssima da resina de Damar. Todas as cores acabarão por desbotar, mas por agora estão esplendorosas.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Lei de base

A abertura de espírito e da natureza - essas palavras tão gastas - de Marcelo Rebelo de Sousa são tais que me sinto completamente à vontade para, com todas as letras, o mandar lavar o rabo com água de malvas.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Sessão da Meia-Noite


"Nunca deixes de olhar" Florian Henckel von Donnersmarck , 2018

Com a ~CC~

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Megadiversidade

Lá está, os pobres são colectivamente inabarcáveis. Eles não são apenas a maioria do planeta, eles estão por toda a parte e o mais pequeno dos eventos diz-lhes sempre respeito de alguma maneira. Consequentemente, a actividade dos ricos é a construção de muros - muros de betão, vigilância electrónica, barreiras, fronteiras armadas, informações erradas aos media e por último o muro do dinheiro para separar a especulação financeira da produtividade, do sacrifício. 

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Pudicícia

Na prateleira dos velhos encontrei um livro sobre arquitectura de interiores. Estava entre volumes há muito abandonados. Devo tê-lo enfiado ali para tapar o vento norte. Tirei-o de lá agora, porque fui à procura de um outro volume que subitamente precisei. Está em francês e pertence à colecção "Que sais-je". O nome da colecção fez-me sorrir. Nós sabemos tudo o que precisamos saber, mas isso muitas vezes não se põe por palavras. Aquilo que nós não sabemos e nunca vamos saber é o que vai acontecer a seguir.
Ao pegar no livro ele caiu-me ao chão e ficou aberto numa página em branco com um desenho vectorial de uma cama. Por baixo do desenho a legendagem de componentes com letra minha. E subitamente percebo que estou a olhar para um poema de amor! Moteur de increment et excitatrice --> generatrice --> valve de combustion --> turbine.
Um poema de amor! É isto que o recato prolongado faz à imaginação.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Alienígenas

Há uma diferença muito grande entre esperança e espera. De princípio toda a gente acredita que é uma questão de duração, que a esperança é esperar qualquer coisa futura. Estão enganados. A espera pertence ao corpo, enquanto a esperança pertence à alma. A diferença é essa. Elas conversam e consolam-se uma à outra, mas o sonho de cada uma é  bem distinto.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Termómetro


@ Ruth Bernhard
Esta mulher é formosa
como uma flor da montanha,
mas é fria, fria, e é fria
como a margem de neve
onde fria floresce.

_Herberto Helder, Bebedor Nocturno