Não é possível narrar sem nos contradizermos. Vivemos presos do calculo e, por isso, contamos verdades enviesadas. Calculamos e erramos com semelhante frequência, porque com frequência esquecemos que os outros calculam como nós e que os seus cálculos não coincidem necessariamente com os nossos. Nem sequer os nossos cálculos sobre um mesmo assunto são coincidentes. Cada vez que escolhemos um rumo e não outro, deixamos para trás partes de nós mesmos, e cada vez que contamos construímos uma história parcial onde essas possibilidades que demos de lado não aparecem sem antes serem convenientemente modificadas. Anulamo-las ou diminuimo-las ou, se o que pretendemos é lamentar-nos, empolamo-las outorgando-lhes uma importância que não tiveram.
segunda-feira, 8 de abril de 2019
quinta-feira, 4 de abril de 2019
Não é o Facebook, não é o Instagram
O que está a matar os blogs é a fria lubricidade com que os bloggers se estão a despir.
Penitencio-me.
Penitencio-me.
quarta-feira, 3 de abril de 2019
Inanidade
o longo dos corredores, no acaso dos compartimentos, no espelho da casa de banho, nas portas entreabertas, distingo por vezes, e sempre fugazmente, aquilo que poderá ter sido a família que ali habitou. Ainda ontem à noite, enquanto me entretinha no restauro de umas poltronas velhas e que foram resgatadas a uma casa também ela muito antiga, dei por mim a imaginar as noites, quando apenas subsistia o ronco de uma borrasca ou o sibilar de um vento mau, sou remetido a um passado que não foi meu, quando a mesma borrasca ou o mesmo vento os encontrava todos juntos sentados nestas poltronas, em volta da lareira. O ruído familiar, o odor comum, o cinzento de um céu, as vozes a cochichar, as crianças que crescem, as saídas na manhã azul e os regressos na noite negra, o prado à janela, o odor quente dos pratos que aquecem em lume brando, a telefonia que graniza na indiferença de outras misérias, os anos que desfilam.
Penso em tudo isso, embora não seja um sentimento que me pese, não são feridas minhas que se reavivam, não é uma estranha melancolia, nem uma espécie de vácuo na alma. Não sinto dor ou tristeza, mas uma estranha lassidão imprecisa. Na verdade meço o tempo que decorreu. Contemplo vidas antigas como se séculos me separassem do instante presente. Fico-me pela vacuidade de tudo isso. Na inanidade de umas poltronas meticulosamente restauradas. Embora me custe a entender o ânimo leve de quem se livrou delas.
sábado, 30 de março de 2019
Palomar
O Senhor Impontual vive um raro momento de desapego. Ninguém se apaixona pelo Senhor Impontual, o Senhor Impontual não se apaixona por ninguém. Por isso deixa-se na sublime distanciação, estende um braço, pega num livro e foge para dentro da história. Ali e acolá, sem deprecar, desata uns nós, desatravanca os dédalos interiores, toma um gole de limoncello de Amalfi, sorri por tudo e por nada. O Senhor Impontual não consegue definir com rigor o seu estado de espírito, mas não renega uma certa aquiescência. Ou falta de tesão, vá lá.
quinta-feira, 28 de março de 2019
Teresa
Que idade terá? Alguns mais que eu?...Ou talvez... menos? Talvez não. Acariciou-lhe, com o olhar, duas rugas finas que tinha nos cantos dos lábios. Mas é lindíssima, lindíssima! Era-o de facto e de uma forma um pouco andrógina, mas supremamente elegante, do tipo de mulheres bastante raras que têm pouca carne e muita classe e qualquer coisa de esbatido, de velado nos olhos. Apertava-lhe a garganta, agitava-lhe o cérebro. Nunca, nunca uma mulher lhe tinha agradado com uma força tão imediata e tão perturbadora. Um assomo. Uma vertigem. Um abismo. Mas... desconfiava, por instinto.
terça-feira, 26 de março de 2019
Avença
Às vezes amar uma pessoa não é o mais importante, mas sim o serviço que se presta em prol da serenidade do seu espírito. E a verdade é que se assim não fosse, a sua alma ter-se-ia disperso.
segunda-feira, 25 de março de 2019
Oração pelos choramingas
Hoje em dia pergunto-me, Senhor, se os que choram alguma vez chegam a acreditar verdadeiramente na firmeza dos alicerces da nova vida que estão a tentar construir para si. Parece certo que querem acreditar, pelo menos não querem não acreditar com uma intensidade que os impeça de estabelecer uma ligação entre o desmoronamento do mundo à sua volta e a iminente destruição dos seus próprios sonhos. Olhando para eles, choca-me o poder das vendas que têm nos olhos - tão absolutos são, em retrospectiva, os portentos do desastre que se avizinha.
quinta-feira, 21 de março de 2019
Pintar Março
Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma sexta-feira. Estamos em Março. Desta vez, tal como a Primavera, veio antes do tempo.
De repente dou por mim a observar um ser distante, mas que sorri e me induz pensar que está apenas a entrar noutra onda. Todavia continuo com a certeza de que os seus lapsos não são apenas aqueles lapsos característicos dos distraídos, mas sim uma luta contra uma corrente que a puxa dentro de si, e que o seu sorriso contém o medo de vir a cair nas suas próprias profundezas, nas quais ficaria encurralada e sem poder respirar. Neste momento o meu desejo era servir-lhe de âncora, sem, no entanto, ser vulgar ao ponto de a fazer saber que esse era um papel que sentimos que ela precisava que alguém desempenhasse. Descobri que a melhor forma de o fazer é chegar quase a tocar-lhe - pôr a mão em cima da mesa, digamos que o mais perto possível da sua sem chegar a estabelecer contacto - e depois esperar que ela se aperceba da minha presença física, estremecendo o corpo como se acordasse de um naufrágio, reduzindo assim a distância entre as nossas mãos com uma pequena caricia ocasional. É provável que este sentido de protecção inviabilize a tentativa de um beijo. Que seria, por ventura, outra forma de fundear aquela embarcação.
Na outra mão tenho a paleta e o pincel. Limpos. De que cor sãos os olhos da Primavera?
De repente dou por mim a observar um ser distante, mas que sorri e me induz pensar que está apenas a entrar noutra onda. Todavia continuo com a certeza de que os seus lapsos não são apenas aqueles lapsos característicos dos distraídos, mas sim uma luta contra uma corrente que a puxa dentro de si, e que o seu sorriso contém o medo de vir a cair nas suas próprias profundezas, nas quais ficaria encurralada e sem poder respirar. Neste momento o meu desejo era servir-lhe de âncora, sem, no entanto, ser vulgar ao ponto de a fazer saber que esse era um papel que sentimos que ela precisava que alguém desempenhasse. Descobri que a melhor forma de o fazer é chegar quase a tocar-lhe - pôr a mão em cima da mesa, digamos que o mais perto possível da sua sem chegar a estabelecer contacto - e depois esperar que ela se aperceba da minha presença física, estremecendo o corpo como se acordasse de um naufrágio, reduzindo assim a distância entre as nossas mãos com uma pequena caricia ocasional. É provável que este sentido de protecção inviabilize a tentativa de um beijo. Que seria, por ventura, outra forma de fundear aquela embarcação.
Na outra mão tenho a paleta e o pincel. Limpos. De que cor sãos os olhos da Primavera?
terça-feira, 19 de março de 2019
Eles
Eles olharam por eles com tanto cuidado, quando eram pequenos, ansiosos por não perderem o seu primeiro grito, o seu primeiro passo, a sua primeira palavra, nunca tiraram os olhos deles. No entanto, eles não cuidam deles. Eles têm de enfrentar o fim no meio da solidão - mesmo os que vivem com eles morrem em solidão - e raras vezes tomam nota dos seus últimos marcos importantes: o último grito, antes da morfina começar a fazer efeito, os seus últimos passos, antes de deixarem de conseguir andar, a sua última palavra, antes da sua garganta ficar selada.
Como é que eles se perdoam a eles próprios? A ingratidão lê-se na segunda face da medalha.
Como é que eles se perdoam a eles próprios? A ingratidão lê-se na segunda face da medalha.
segunda-feira, 18 de março de 2019
sexta-feira, 15 de março de 2019
Milú
Apesar do vento gelado abriu a janela, subiu ao peitoril e, sem reflectir, sem decidir, sem nenhum drama ou sofrimento, abriu os pedipalpos bem esticados. Então, só com um pequeníssimo "ai", atirou-se no espaço, num voo picado como aquele aracnídeo já não o podia fazer. A sua densa escópula negra ainda se agitou numa lufada de vento, como uma asa frustrada. Depois recolheu-se, e cobriu-lhe inteiramente as quelíceras quando ela chegou ao chão.
quinta-feira, 14 de março de 2019
Elisa
O seu homem dorme a seu lado. Elisa gosta de acordar no meio da noite e sentir o seu calor, escutar a sua respiração, passar os dedos na sua boca entreaberta. Às vezes, a dormir, ele apalpa-a ao de leve como que para ter a certeza que ela está ali. Ou murmura alguma coisa nos entressonhos. O nome de outra mulher.
Elisa sorri no escuro.
Lá fora algo se move no jardim em torno da casa. Talvez uma ave nocturna. Talvez apenas o vento a agitar os ramos dos abetos, ou apenas o silêncio -- que quando é profundo vira lamúria. Elisa aconchega-se mais no corpo do seu homem e fica abrigada. É esse o seu lugar no mundo.
terça-feira, 12 de março de 2019
Perscrutação escopofílica
Uma vez que a tiveram como primeira amante a domina-los, por outras palavras; o aconchego exacerbado das suas mães, bem que podiam no resto das suas vidas sentirem-se atraídos por mulheres igualmente fortes e capazes de forjarem vidas autênticas e que os induzissem a fechar as portas que vão deixando para trás, a saírem daquele pessimismo liberal, a despirem a capa do rapsodo da desgraça e do amor perdido. Mas não. Há sempre um testo para uma panela. É incrível!
sexta-feira, 8 de março de 2019
Não gastaremos o tempo, ele nos gastará
Nos blogs, como na vida, a cada passo um homem pensa que a sua história já está terminada. Tamborila-se os dedos sobre o teclado e deixa-se escapar um suspiro. Fica só a faltar o fecho, uma frase que possa marcar um final adequado. Segundos depois um sorriso cruza-nos o rosto ao mesmo tempo que escrevemos:
- Continua.
"e espero estar agora mesmo a escrever,
em verbo arcaico indefectível cerrado,
um êrro absoluto,
um êrro escorchado vivo: vós sois o sal da terra,
vós que escreveis e enviais cartas a cada um e a todos
– a mão do mundo, a música, as cartas derradeiras
e os sobrescritos sem destinatários"
"e espero estar agora mesmo a escrever,
em verbo arcaico indefectível cerrado,
um êrro absoluto,
um êrro escorchado vivo: vós sois o sal da terra,
vós que escreveis e enviais cartas a cada um e a todos
– a mão do mundo, a música, as cartas derradeiras
e os sobrescritos sem destinatários"
quinta-feira, 7 de março de 2019
Por linhas tortas
Parecia que tudo tinha desabado de repente. Não passara nem sequer um minuto que ele lhe batia e gritava violentamente e agora estava ali, teso e vazio, sobre o chão da sala. De pé, imóvel, encostada ao aro da porta abraçava a almofada e esperava que alguém aparecesse e rompesse aquele silêncio horrível. Quando chegaram todos e tentaram reanima-lo, deu um passo atrás em direcção ao corredor, apertou a velha almofada contra a sua cara, limpou a única lágrima que derramara e disse em voz baixa: "eu nunca te gritei, incompetente".
quarta-feira, 6 de março de 2019
Quarta-Feira de cinzas
Ontem, foliões. Hoje, como que saídos de dentro de um livro. E nesse livro, já se sabe, o mundo é limpo. É um mundo calmo, lento, apesar de sem regras e sem tréguas. Não há noites comparáveis de tão requebradas, mansas e ternas. Todas as noites ali, possuem, no seu bojo, uma languidez latente, que frequentemente explode. É um reino de silêncio, de mornas cumplicidades. Por vezes um reino de algum alarido, contido, um reino de mudas catástrofes. Ali as pessoas não se preparam para a felicidade, e os dias giram sobre si mesmos na mansidão da ternura, na aproximação que conduz à temperança.
É de crer que ali a beleza tenha o poder de opor resistência à agressão. E não é que me agrade sobremaneira o caminho marcado, áspero, que deixa cicatrizes, lacerações, despojos, restos profundos e fétidos do mundo real. Mas onde está o fio residual dessa beleza, nestas personagens que foram sonegadas à realidade que não dispõem?
sexta-feira, 1 de março de 2019
Cimeira
E quando os ruídos exteriores já haviam sido neutralizados pelo fecho das espessas janelas da sala, coloquei a voz umas oitavas acima e cortei o silêncio tumular: "Bom dia minhas Senhoras e meus Senhores. Atenção, por favor. Temos de encontrar uma solução alternativa..."
Quarenta e dois olhos examinaram o ar. Mas por escassos segundos. Voltaram todos ao mesmo: olhos quase divinatórios, reflectindo dúvidas e pensamentos que têm de conduzir a decisões rápidas; olhos com riachos de sangue, fatigados; olhos míopes e astigmáticos, uns bem pintados, outros mal pintados; olhos - quarenta e dois olhos - e mais alguns, subalternos e periféricos que comunicavam entre si através de gestos discretos e de palavras de valor iniciático cujo secreto sentido só eles mesmos entendiam e perfilhavam. Olharam-se muitas vezes, de uma mesa para a outra, mas não se encontraram. O embaraço da escolha, solidarizou estes campeões do silêncio meditado.
Agora, já noite feita, de regresso a casa, circulo na marginal norte do rio Douro e observo as cicatrizes da urbe em todo o seu esplendor.
Quarenta e dois olhos examinaram o ar. Mas por escassos segundos. Voltaram todos ao mesmo: olhos quase divinatórios, reflectindo dúvidas e pensamentos que têm de conduzir a decisões rápidas; olhos com riachos de sangue, fatigados; olhos míopes e astigmáticos, uns bem pintados, outros mal pintados; olhos - quarenta e dois olhos - e mais alguns, subalternos e periféricos que comunicavam entre si através de gestos discretos e de palavras de valor iniciático cujo secreto sentido só eles mesmos entendiam e perfilhavam. Olharam-se muitas vezes, de uma mesa para a outra, mas não se encontraram. O embaraço da escolha, solidarizou estes campeões do silêncio meditado.
Agora, já noite feita, de regresso a casa, circulo na marginal norte do rio Douro e observo as cicatrizes da urbe em todo o seu esplendor.
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019
Anonymous
O blogger, tal como o vivente, não possui face. E ignoram que a face de quem escreve, assim como a de quem vive, é a que se estende, é a que se exprime pelas palavras de que se serve, que a face de quem escreve é, antes de mais, sobretudo, a face dos outros. A face de todos. E que a face de cada um é construída com opções, divisões, favoritismos, crenças, disparidades e paranóias.
Em Itália ─ onde tenho passado umas temporadas: oh pátria minha ─ insistem tratar-me por Giorgio. Eu, alienado que sou, não me canso de os corrigir: Signor Giorgio. Signor Giorgio, per favore. É que, seja em que canto do mundo for, faz toda a diferença.
Em Itália ─ onde tenho passado umas temporadas: oh pátria minha ─ insistem tratar-me por Giorgio. Eu, alienado que sou, não me canso de os corrigir: Signor Giorgio. Signor Giorgio, per favore. É que, seja em que canto do mundo for, faz toda a diferença.
terça-feira, 26 de fevereiro de 2019
Canção de engate
O passado é uma coisa da qual somos prisioneiros. Podemos fazer com o passado exactamente aquilo que desejamos. O que não podemos fazer é ─ afundados num sonho de imagens quietas ─ alterar as suas consequências.
Vamos fazer o passado juntos?
Vamos fazer o passado juntos?
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