Palmira entrou, sobranceira, no casino da costa envolta numa écharpe de seda crua e coberta de jóias. Ele ofereceu-lhe um punhado de fichas vermelhas. A bola já rodava nas primeiras mesas. Palmira aproximou-se da roleta com uma elegância natural e pousou todo o seu capital apostando no zero. Depois de dar uma volta por todo o universo, a bola brincou, com alguns saltos mágicos, e finalmente caiu no zero. Palmira compreendeu que o zero era o seu destino.
quinta-feira, 12 de setembro de 2019
terça-feira, 10 de setembro de 2019
Estrada da circunvalação
Basta que voltemos à vida para que se sinta, por todos os lados, o espectro da violência e da brutalidade quotidiana, os subtis insultos ordinários, as intimidações como um reflexo, uma animosidade de todos os instantes, uma espécie de cólera surda sempre pronta a explodir, uma fúria mal contida. Tisnados, os corpos das pessoas parece que são portadores duma energia destrutiva, duma dureza à flor da pele. Adivinha-se que esta impetuosidade poderá rapidamente provocar agitação. Está-se sempre à beira do tumulto.
O período de férias, por direito e por obrigação, deveria contemplar uma semana extra para readaptação ao habitat natural antes do regresso.
O período de férias, por direito e por obrigação, deveria contemplar uma semana extra para readaptação ao habitat natural antes do regresso.
terça-feira, 3 de setembro de 2019
Setembro
Passaram a noite num hotel de praia que no andar de baixo tinha um restaurante muito popular e, naquele entardecer de Setembro, o seu terraço com toldos e caniços estava a transbordar de gente cujo o alarido chegava aos quartos e, juntamente com as vozes e as risadas, chegava também um odor a lulas grelhadas e mexilhões em vapor.
Ela olhou-se nua de perfil no espelho do guarda-fatos e observou o baixo-ventre que ia amadurecendo sobre as ancas largas. Antes que se apagasse a luz que ainda restava no mar, estenderam-se numa cama com cabeceira de ferro que, dentro de pouco tempo, começou a gemer, enquanto na praia se ouviam canções entoadas em coro por um grupo que havia lanchado bem. Foi nessa cama que, pela primeira vez ela lhe disse que o amava e que o seguiria para sempre, para todo o lado que fosse, como uma cadela. Depois de ambos se possuírem com uma profundidade desconhecida, ficaram exaustos e suados, deitados de costas em silêncio. Por fim, ela murmurou:
- Agora recita-me outra vez aquele poema.
- Outra vez? Estamos às escuras. Não posso ler.
- Sabes de cor. Começa - disse-lhe ela de forma imperiosa.
- "Pernoitas em mim... e se por acaso te toco a memória..."
quinta-feira, 29 de agosto de 2019
Deusas
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Há instantes em que parece que deus, não arranjando mais com que se entreter para escapar à perpétua monotonia dos seus dias, dá um toquezinho no mundo com a biqueira do sapato. Daí vem depois esta estranheza da passagem do tempo, o fogo da terra a vibrar debaixo dos pés, a confusão entre luz e trevas, a lua sem domínio das marés. São precisas várias noites à deriva no vazio até que o mundo se encaixe numa nova órbita.
Há instantes em que parece que deus, não arranjando mais com que se entreter para escapar à perpétua monotonia dos seus dias, dá um toquezinho no mundo com a biqueira do sapato. Daí vem depois esta estranheza da passagem do tempo, o fogo da terra a vibrar debaixo dos pés, a confusão entre luz e trevas, a lua sem domínio das marés. São precisas várias noites à deriva no vazio até que o mundo se encaixe numa nova órbita.
MP em Mãe Preocupada
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Deus fez-nos cheios de buracos na alma e o nosso dever é tapá-los todos para navegar.
(Vergílio Ferreira)
Ana P em Primeiramente
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Pois então, deus queira que deus exista.
Isto é feito de novas folhas, novas flores, novas águas, novas barcas.
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Pois então, deus queira que deus exista.
Isto é feito de novas folhas, novas flores, novas águas, novas barcas.
terça-feira, 27 de agosto de 2019
Palomar
O Senhor Impontual aprendeu, por estes dias de calor intenso, em sede própria, que quando se perde a reputação começa-se a ficar livre.
domingo, 25 de agosto de 2019
Luz de Agosto (último)
No adro, os noivos deambulam com um sorriso largo. Ainda há gente que se consegue apaixonar até às orelhas.
É bonito.
terça-feira, 20 de agosto de 2019
Luz de Agosto (VII)
A esta hora toda a praia está cheia de pares jovens que celebravam, entre as dunas, inúmeras cópulas em todas as suas modalidades e, embora esses actos de amor sejam invisíveis, criam, sem dúvida, um fluxo pegajoso no ar em que também as gaivotas fazem as suas libações.
segunda-feira, 19 de agosto de 2019
Luz de Agosto (VI)
«O tempo consome-se ao seu ritmo imóvel, igual para todos os homens, nem mais lento para os felizes nem mais veloz para os desventurados.»
quarta-feira, 14 de agosto de 2019
Luz de Agosto (V)
Insisto. Não há nada como vir ao pôr-do-sol, quando as aves regressam aos ninhos para dormir. Devia ser este o som do mundo antes do homem existir.
sexta-feira, 9 de agosto de 2019
Luz de Agosto (IV)
Aproximou a sua mão da minha. Olhamos um para o outro. Quantas histórias começaram com um olhar assim? Vi-o na vida real, nos filmes, nos livros, nos quadros. É um olhar que funciona como uma malha, que bate suavemente à porta para entrar, um olhar diferente e inequívoco. Pouparam-se mais palavras e explicações com esse olhar do que com qualquer outra coisa na história da humanidade.
_ Vamos? Disse, naquela tarde cinzenta de Agosto, metendo os olhos fixos nos meus.
quinta-feira, 8 de agosto de 2019
quarta-feira, 7 de agosto de 2019
Luz de Agosto (II)
Procuraram um sitio para se beijarem e, como na aldeia àquela hora a solidão era absoluta, sem outra presença que não fosse a de algumas lagartixas, sentaram-se mesmo por baixo da carvalheira grande, tendo aos seus pés as raízes e ali começaram a acariciar-se enquanto as lagartixas erguiam o pescoço. O silencio era tão profundo que os estalos dos seus lábios soavam no ar cada vez com mais força, tal como os seus arquejos e até se ouvia o ruído surdo das línguas que se procuravam absolutamente frenéticas quando sentiram uns passos que se aproximavam. Era uma mulher de meia idade, sorridente, que passeava sozinha com um ramos de flores campestres na mão.
segunda-feira, 5 de agosto de 2019
quarta-feira, 31 de julho de 2019
segunda-feira, 29 de julho de 2019
Terminal
Chegou no comboio das 13:38. Eram apenas meia-dúzia de pessoas na sua carruagem. Não foi incomodado durante a viagem. Não leu nenhum livro nem jornal, limitou-se a encostar a testa de lado no vidro húmido, viu a paisagem desfilar sem lhe prestar grande atenção e os leves pingos de chuva a baterem contra o reflexo da sua cara. O matraquear metálico das rodas ao longo dos carris não o perturbou; passado pouco tempo deixou mesmo de o ouvir. Desceu na estação terminal. Sabia que não iria mais longe, que tinha chegado, que era o fim da viagem. Olhou o relógio. O comboio não se tinha atrasado. Não chegou adiantado. Atravessou a gare sem se cruzar com ninguém. Ninguém o viera esperar. Levantou o colarinho, acendeu um cigarro e avançou em direcção à rua. Não tinha nenhuma mala com ele. A morrinha depositava pequenas gotículas nos seus cabelos grisalhos, o vento ligeiro soerguia por momentos a orla da sua gabardina fluída. O mundo resumia-se a ele. Novamente. Nunca foi perfeito, nunca andou direito na linha que Deus fez.
Obrigado, meu Caro. Pela música, pela opinião independente, pela carolice.
Obrigado, meu Caro. Pela música, pela opinião independente, pela carolice.
quinta-feira, 25 de julho de 2019
Palomar
Não sei se convosco também acontece? Com o Senhor Impontual acontece amiúde ficar pasmado diante das montanhas, dos oceanos, dos sóis, dos céus, das estrelas, impressionado pelo que está fora do seu alcance, pelo que as nossas mãos não saberiam fabricar, pelo que o nossos espíritos seriam incapazes de conceber. Mas não se espera nada diante das mulheres bonitas. Nada que não sejam sentimentos vulgares. E depois, um dia, há uma que aparece para o qual não estamos preparados, e eis que os joelhos se dobram. Não se sabe dizer porquê. Não se encontram palavras. O que nada tem de religioso. Não se está em adoração. É qualquer coisa que tem a ver com a graça, com a magia. Subitamente cai-se no deslumbramento. Está-se um passo atrás, ou um furo abaixo. É-se mantido à distancia. O sentimento que se experimenta não é necessariamente o desejo. Mas uma outra coisa. Uma espécie de reserva.
O Senhor Impontual quer acreditar que se trata de um leve e passageiro momento de afronesia. Não sei se convosco também acontece?
O Senhor Impontual quer acreditar que se trata de um leve e passageiro momento de afronesia. Não sei se convosco também acontece?
quarta-feira, 24 de julho de 2019
terça-feira, 23 de julho de 2019
Consubstanciação
Quer tranquilizar-se e não se tranquiliza. Vê espaços vazios por toda a parte e não sabe como preenche-los. Busca desesperadamente a sua espiritualidade e a única coisa que encontra é um vulgar apego à vida de merda. Isso ainda a aflige mais do que o próprio vazio. Sente que não foi aquilo que queria ser e que não fez as coisas que sonhava. Agora depara-se com a realidade de ser demasiado tarde para tudo. Não quer dizer que tivesse feito as coisas de maneira diferente, no entanto, não sabe como teria sido a sua vida aos vinte e cinco anos se alguém a tivesse avisado que aos quarenta e cinco estaria vazia. Agora tudo se reduz à escassa consciência que tem da sua vulnerabilidade e à ridícula suposição de que tinha o tempo, de que poderia ser imortal.
Cuba Libre
Tinha o rosto carregado de estuque, muito mal pintado e muito pintado. Os lábios engelhados e a boca murcha, circunflexa. Nas comissuras atulhavam-se camadas sobrepostas de base. Cabelo preto, farto, armado, sobrancelhas desenhadas dificultosamente a lápis. Os lóbulos das orelhas pendentes; os orifícios tornaram-se, com o girar dos anos, em fendas enormes. As mãos pergaminhos veiudos; documentos antiquíssimos. Mas existia, embora submerso, o toque de uma beleza remota, de uma harmonia moribunda, no corpo, no porte, nos traços de mulher que exerce a profissão de prostituta desde que se conhece. Quis que eu lhe oferecesse uma Cuba Libre. Senti uma certa melancolia.
quinta-feira, 18 de julho de 2019
Ressalga
Ao abrir a janela pela manhã, espalhou-se por toda a casa a epidemia do odor intenso à maresia. Depois, à tarde, com a chegada do sol o ar foi ficando um pouco mais limpo. Ao cair da noite, o aroma salgado foi-se introduzindo de novo em todos os interstícios da casa, encheu a cozinha, corredores, alcovas e armários, penetrou na intimidade das arcas e baús, impregnou a roupa e as cortinas, ficou agarrado às paredes e também penetrou na alma das pessoas através dos sete ou oito orifícios que o corpo tem, até se apoderar por completo da sua vontade. E a sua vontade, já se sabe, é o amor. Embora, por vezes, o hipotálamo não dê a ordem em tempo útil.
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