terça-feira, 7 de abril de 2020
segunda-feira, 6 de abril de 2020
Saida precária
O vírus caiu sobre a cidade. Pousou os seus tentáculos e impõs o ditame da rareza. Como se porventura se tramasse uma indelicadeza no mundo, os citadinos caminham mais rígidos, ombros direitos, passo rectilíneos, carregam agora o peso de uma fatalidade impensável. As guitarras eléctricas calaram-se e deram lugar a Mozart e é agora a sua perfeição silenciosa e tensa que povoa as ruas. O vírus é uma névoa que emite um som abaixo do macadame. As horas invadiram a atmosfera para aí se desfiarem mais lentamente, espessam-se e pousam as suas volutas de segundos sobre as pedras frias da calçada. Gargantas secas. Gestos comedidos. Respirações contidas. Vive-se em poupança. Crânios abrasados, mãos suadas cobertas, amolentados os desejos, os pensamentos revestem-se de desinfectante e de sabonária rosa, cada qual segue como um ladrão à procura de uma nesga de terreno onde se refugiar na espera de uma nesga dois metros mais adiante. Há uma chapa absoluta que tampona o território, o vírus abre valas no asfalto. Quem não for rápido e expedito será estraçalhado.
Em casa, na televisão, o cenário é o mesmo. Mas deixem-se estar, que pelo menos tendes onde vos sentardes a uma distância de relativa segurança.
domingo, 5 de abril de 2020
Domingo de Ramos
Quando Jesus voltou a Jerusalém montado num burro, o que francamente não foi um acto de grande astúcia da sua parte.
terça-feira, 31 de março de 2020
Adenda à homilia do Papa Francisco desta tarde
O tempo é de pandemia. Brevemente estaremos em plena crise económica e social. Como sempre, estamos todos no mesmo barco.
Uns de colete salva-vidas outros não.
Uns de colete salva-vidas outros não.
domingo, 29 de março de 2020
Itália
Itália - digo eu. Mas não o digo, dez dias depois, como se convocasse uma provisão de sentidos ou fizesse emergir uma submersa reserva de memórias e frustrações. Digo: Itália em voz suave, como se ao eco da palavra em si apenas solicitasse a recíproca tolerância.
Estou ocioso e só: unos sentimentos de segurança e de agasalho aquecem-me a alma. Sou agora um homem de céu sereno e vida mansa. Já não procuro distinguir o justo do injusto: acato as coisas sem reservas, tal como são; admito-as resignado e calmo; calo a ira e a frustração com disciplina. Sentado na varanda do alpendre virado para para o mundo, com Fiodor dormitando a meus pés, tomo um copo de Serra Mãe reserva 2015 e contemplo o virar dos dias no morrer das tardes, e sei que ninguém vê duas vezes o mesmo rio. Agora há uma parte de mim mesmo que anda mais devagar e por isso prefiro ficar só: não quero atrasar os outros, que já pouco andam.
Ciao. Avanti, amici. Torno subito.
(aquilo de um post por dia até ao fim do Corona ainda está a rolar?)
sexta-feira, 27 de março de 2020
Palomar
Há gente que sabe escrever, desenhar, aplicar tinta e que consegue fazer dela o que quer. Tem olhos para captar e pintar as coisas simples e belas da vida: a luz matinal, a superfície de um espelho, o som de uma música erudita, a casca de uma maçã, a pele arrepiada, os olhos cintilantes, os ombros brancos e esculturais, peitos proeminentes. O Senhor Impontual, observador inveterado, espírito em ebulição permanente, gostava muito de ser dotado dessas habilidades. O Senhor Impontual gostava muito de pincelar, já, um retrato do Mundo daqui por três meses. Pintar Junho. Nem que fosse em tons pastel.
terça-feira, 24 de março de 2020
Desterro
Não há nada que falte no paraíso: comida, roupa limpa, jornais, colchões , guarda-chuvas, computadores, ecrãs de parede, ecrãs de bolso, sapatos, gravatas, vinhos, bijutarias, flores, óculos de sol, discos, candeeiros, velas, cães, pássaros canoros e peixes coloridos.
E tintas, rolos, lixas e outros polidores, moveis desirmanados, antigos, antigos - verdadeiras telas em branco. E livros. E a Lady Day na grafonola interpretando majestosamente "solitude". E todas as outras figuras e línguas e alturas e pesos que povoam a manhã inverosímil em que o ( sobre)vivente celebra o terceiro dia de cárcere - essa vida nova, esse mundo novo. Esse tempo morto.
E tintas, rolos, lixas e outros polidores, moveis desirmanados, antigos, antigos - verdadeiras telas em branco. E livros. E a Lady Day na grafonola interpretando majestosamente "solitude". E todas as outras figuras e línguas e alturas e pesos que povoam a manhã inverosímil em que o ( sobre)vivente celebra o terceiro dia de cárcere - essa vida nova, esse mundo novo. Esse tempo morto.
quinta-feira, 19 de março de 2020
Passe-Partout
Há alturas em que a ausência é tão pesada como uma criança sentada sobre o meu peito. Noutras alturas, mal consigo recordar os traços exactos da fisionomia de quem me falta e tenho de ir buscar fotos que guardo em envelopes velhos dentro dos gavetões das cómodas. Os piores dias são aqueles em que, sem os procurar, os encontro nos sítios mais improváveis.
O tempo não cura nada, só fabrica cicatrizes... com uma habilidade sublime.
O tempo não cura nada, só fabrica cicatrizes... com uma habilidade sublime.
segunda-feira, 16 de março de 2020
Marinheiros de água doce
#giorno1
quinta-feira, 12 de março de 2020
Diário de Treviso, uma passeata de braço dado com Alda Merini
Os viventes também laboram de dia, quando o tempo urge sobre eles, quando falta o rumor da multidão e acontece o linchamento das horas. Os viventes, e os seus silêncios, fazem bem mais rumor que um dourado ajuntamento de estrelas.
segunda-feira, 9 de março de 2020
Diário de Treviso, onde Cagnano se encontra com Sile
Lá fora, um ar frio e húmido que flutua em tons acinzentados. Do lado de dentro da noite, pendurados no cabide, os despojos da pandemia que se mesclam com os diferentes cheiros do dia: as grosserias dos convivas de trabalho, as suas diligências e a incompreensível tagarelice, os transportes, os transeuntes, a cidade, o mundo, a televisão e os seus resíduos - tudo colado à roupa como uma película aderente. Na verdade também lá estão impregnados os temores e os medos do que se não fala, mas que se podem perfeitamente agarrar com as mãos.
Isto está feio.
domingo, 8 de março de 2020
Mulheres
É tão bonito quando o seu ar se torna subitamente interrogador e inquieto. Aparece apenas por alguns segundos, essa inquietação febril. É quase incrível, a instantaneidade dessa mudança. As mulheres sentem as ameaças muito melhor que os homens. Elas vêem-nas perfilar-se. Por vezes, quando são suficientemente malignas, fazem-nas abortar. Mas estão sempre prontas a libertarem-se da crisálida, sacudir os ombros para a fustigar e depois reduzi-la a fanicos. É tão bonito! São tão bonitas!
terça-feira, 3 de março de 2020
Na noite em que dormi com Alda Merini
Entrou na calada da noite, nesse espaço de tempo que antecede o sono e em que o mais severo dos cansaços nos toma e, vencidos, a memória omnipresente fustiga-nos a consciência fazendo-nos procurar cálidas miragens de quem poderia estar ali a dormir ao nosso lado. Como se esse alguém batesse à porta para recuperar o lugar de onde tinha sido expulso e implorasse: ama-me agora que não tenho palavras para te fazer enamorar do meu silêncio.
O amor há-de ser isso. Quando o silêncio do outro ameaça no escuro.
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020
Pintar Março
Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma Quarta-Feira. Estamos no fim de Fevereiro. Falhou Janeiro. Entrou com uma elegância intrínseca que se destaca desde logo no detalhe como se senta e olha de frente com a cabeça bem levantada. Uma beleza sólida e atraente, caracterizada por linhas limpas e essenciais, realçadas pelo grão natural da pele.
De repente, sente-se aquele tremor delicioso que os panoramas grandiosos nos despertam. Somos simultaneamente Deus e nada. Somos ao mesmo tempo o céu e o grão de areia. Depois vem aquele matraquear surdo, uma mudança de luz -, voltamos à terra.
Não sei lhe pinte a pose de confiança no olhar, harmonizado com a sua postura ou se lhe esboce as mãos ausentes sobre o regaço. Mãos que albergam memórias inquietas e gritam: não sou! não vou! não quero!
De repente, sente-se aquele tremor delicioso que os panoramas grandiosos nos despertam. Somos simultaneamente Deus e nada. Somos ao mesmo tempo o céu e o grão de areia. Depois vem aquele matraquear surdo, uma mudança de luz -, voltamos à terra.
Não sei lhe pinte a pose de confiança no olhar, harmonizado com a sua postura ou se lhe esboce as mãos ausentes sobre o regaço. Mãos que albergam memórias inquietas e gritam: não sou! não vou! não quero!
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020
Fungágá da bicharada - A festa
Assim que terminaram as apresentações que foram feitas pela anfitriã, acompanhadas pelo nome do convidado com uma referência à sua profissão e uma piada sobre um qualquer aspecto mais ou menos intimo da relação que os unia, soou a campainha confirmando que ainda faltavam convidados. A partir desse momento o ambiente relaxou-se. Decidi continuar de pé, a anfitriã apareceu com dois gatos e uma mulher de aspecto inca, o acolhimento que lhes dispensou não foi tão estático como o dispensado aos demais. Apresentou-os delicadamente como Miss Marble, Marlon Brando e Susana.
Entretanto, a mesa com comida tinha sido timidamente assaltada por uma avalancha de esfomeados e os que, como eu, ficaram por ali já não se consideravam obrigados a manter conversa.
Entretanto, a mesa com comida tinha sido timidamente assaltada por uma avalancha de esfomeados e os que, como eu, ficaram por ali já não se consideravam obrigados a manter conversa.
Já estive em inúmeras festas deste tipo e o meu comportamento varia em função do conhecimento que tenho dos presentes. Se não conheço ninguém, como era o caso, entretenho-me a deambular, aberto à possibilidade de entabular conversa, mas com a ambição de não me prolongar. A musica soava sem que ninguém se ocupasse dela, mas entretanto o volume aumentou e tornou-se mais variada graças à intervenção de espontâneos DJs. Joaquim o ornitólogo acabou por tomar conta das operações. Baixaram-se as luzes e os mais atrevidos começaram a bombolear-se, e mais tarde a dançar.
Peguei num copo, circulei, e fui-me unindo a uns grupos pronto para empreender a fuga quando os temas das conversas escasseavam ou se exigisse de mim algo mais do que a minha presença atenta. Estive com Taeko e Yukiko, um casal magnifico, ele e ela com a mesma ciciante maneira de falar; estive com Mumu, a vaca cuja a altura é intimidante. Que delicadeza! Milú a aranha lá apareceu com a esquelética editora-chefe de uma revista de embarcações de recreio, Damas acompanhado por duas agentes da bolsa de valores falou-me da sua sociedade de investimentos. Corto Gatez apareceu já noite dentro com duas estagiárias de publicidade que disseram ser primas da anfitriã; com Joaquim o ornitólogo, pássaro afeminado, que acabei por abandonar, não porque a conversa rareasse, mas porque não parou de me atirar perdigotos de saliva para a cara; com Carlota - a osga, muito empenhada em dançar comigo e com uma amiga sua, Weblogger, vitima do mesmo empenho para com o Leitor Inventado.
Foi bonita a festa! Estive sempre de pé. Como os espinheiros do átrio grande à entrada da mansão Fleur du Mal. De pé bebe-se mais devagar.
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020
Nada
Entrou e sentou-se ao balcão. Encomendou um Bourbon com 15 anos de idade. O que espera naquele bar sem nome? Cheiro, algo de desconhecido, uma vontade infinita de estranho. O seu desejo da manhã não a deixou. Pelo contrário. Todo o dia a lancinante injunção instilou-lhe urros na pele, os lábios corolas do sexo molharam-se repetidas vezes por um clarão, uma imagem rememorada, monstro enroscado no seu corpo que reclama e exige. Cada veia, cada artéria soletra: fruição, prazer, caricia, pele, vai-e-vem...o sexo que hesita, joga, aflora o clitóris antes de penetrar. Ela pensa penetrar e olha em redor: castiçais, garrafas, copos esguios, o que pode brincar à entrada de um corpo? O ideal, um homem invisível que roçasse e se aproximasse sem ela saber e depois arregaçasse os tecidos e as rendas, tomasse, rasgasse, um homem sem rosto, mudo... e que se sumisse. Acto continuo. Incógnito. Uma sombra.
Pagou a conta e foi-se embora. Avançou sóbria de presente, ancas a ondular sobre o único palco onde se joga o bailado de uma vida. Frágil entre frágeis.
Na rua, um frio seco, o acaso dos transeuntes. É tão bom não ter caminho*.
(*perdoar-me-à, certamente, a inspiração insipiente.)
(*perdoar-me-à, certamente, a inspiração insipiente.)
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020
Racismo em Portugal
Temo que nos vamos desviar outra vez, pecar por letárgicos. Apesar da maior parte do que possa dizer, o faria sem reflectir, não tenho como indicar qual o estado de alma que me governa nestas ocasiões. Ao actuar compulsivamente para descrever, desde a sua origem, uma cadeia consequente de factos importa consignar cada passo, cada elo, porque o sentido que os rege e os determina é imanente. Quando, como é o caso, o sentido se perde e tudo parece suceder como que por acaso, tem de se ser mais prolixo, determo-nos, recorrer a antecedentes, divagar, esmiuçar, consignar horas prévias, viajar até ao momento em que tudo arrancou. Mas não estamos para isso.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
Prateleira dos velhos
Li em algum lado que Torga disse um dia que com a "Criação do Mundo" tentou sintetizar a experiência de toda uma vida. E como se sintetiza a luta entre o ser e o não ser, entre estar e não estar, entre o eu e os outros? Fazendo-o sentir na própria carne do leitor.
A verdade é que pagina atrás de página "Criação do Mundo" é uma luta asfixiante entre ascensões e quedas, entre o popular e o snob, vida e pensamento, reflexão e memória, narração e discurso, emoção e conceito, uns e os outros, solidão e companhia, vida e morte. Só um gigante podia almejar tanto, comprometer-se tanto e logra-lo de uma forma tão pouco convencional.
O Mundo real envelheceu mal, envelheceu mais cruel, mais doloroso que nunca.
Torga eternizou-se. Na prateleira.
A verdade é que pagina atrás de página "Criação do Mundo" é uma luta asfixiante entre ascensões e quedas, entre o popular e o snob, vida e pensamento, reflexão e memória, narração e discurso, emoção e conceito, uns e os outros, solidão e companhia, vida e morte. Só um gigante podia almejar tanto, comprometer-se tanto e logra-lo de uma forma tão pouco convencional.
O Mundo real envelheceu mal, envelheceu mais cruel, mais doloroso que nunca.
Torga eternizou-se. Na prateleira.
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020
Valentino
Como haveria eu de imaginar que aqueles olhos urgentes que um dia se acercaram de mim, recitando um poema de Eugénio, seriam como as bolas que se desconcertam na roleta? Não tomei distância, não ignorei aqueles globos terrestres de movimento intermitente, não calibrei o encaixe das suas partes, não resisti. Deixei-me ir pela beleza do erro, pela linha que se quebra no fim da curva.
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020
Inquietação
Mas então agora eu, o Tone e a D. Mariquinhas é que temos de nos pronunciar e legislar sobre o que pode o outro fazer da sua vida ou da sua morte em caso de...?
Aviso já. Não contem comigo. Não quero esse direito.
Subscrever:
Mensagens (Atom)