terça-feira, 29 de outubro de 2019
Dual Chip
quarta-feira, 23 de outubro de 2019
A última palavra
Quantas e quantas vezes damos connosco a escutar a nossa voz perdida. Fala para si mesma, sem se lembrar de procurar do lado de fora, no longe dos espaços. Pronuncia palavras locais, onde há um desconforto no corpo, sem olhar para um além, para uma outra terra, para outras horas. Por vezes as contingências dessas palavras propõem uma involução no tempo - descida vertical da memoria presa de recordações, de rostos, de entidades queridas, de ritos amarelecidos. O tempo da história de cada um, para aí tentar encontrar as causas esquecidas dos males insidiosos e da felicidade palpável e impalpável. Revisita e questiona o tempo passado perdido no espaço do presente que ainda frui, intensamente. Quando a primeira pergunta deveria incidir sobre isso mesmo: "o que é que eu fiz"? Precedido da resposta: "pouco". Como última palavra.
Uma cisma claramente subtraída de uma dissertação feita num jeito muito mais manso.
terça-feira, 22 de outubro de 2019
Da euforia da simplicidade
É incrível como num dado momento estamos aqui e no outro já estamos lá atrás. A mim, chega inclusive acontecer-me, aquando do último andamento, vir de lá de trás e ultrapassar a orla do tempo. Não é fácil, mas é simples.
domingo, 20 de outubro de 2019
Da calculadora de probabilidades
Outra coisa sem jeito nenhum, é acharmos que quem nos conheceu os dédalos interiores teria de nos amar para sempre.
sábado, 19 de outubro de 2019
Nostomania
Hoje apetece-me suster e ignorar o universo e os seus mistérios: a chuva e o vento, a luz e a escuridão, a noite e as estrelas, os deuses do mal e os anjos da guarda e... apaziguar o corpo, ouvir musica, dançar, evocar o passado e o presente, sorrir deles com indulgência, deixar-me abraçar, porque além do talento de inventor de mundos, é preciso saber fazer cantar a consciência.
quarta-feira, 16 de outubro de 2019
ADN
Desde a bactéria à reprodução sexuada o vivente não cessou de se diversificar, de se adaptar, reagiu ao granizo, à geada, ao diluvio, inventou códigos para comunicar, barcos e outros meios para viajar, pilhou a natureza, oprimiu os animais até os reduzir à escravidão em massa nos recintos onde os cria em série, conquistou as florestas e os oceanos, inventou satélites que num ápice fazem as suas melhores imagens correr o mundo, mas sem jamais conseguir ficar em paz com o seu único desejo. O desejo de ser amado da maneira que quer ser amado e não do modo como os outros o podem amar.
O vazio perturbará o seu espírito, o seu coração e o seu corpo até aos confins do tempos.
segunda-feira, 14 de outubro de 2019
Palomar
"Sfortunatamente, le donne usano il sesso per ottenere l'amore."
Os italianos quando falam gostam muito de introduzir citações para alavancar a sua oratória.
O Senhor Impontual está de novo em Treviso e acaba de ouvir numa conferência sobre conservação e restauro do património arquitectónico a utilização destas palavras em tempos saídas da boca de uma das mais belas e elegantes mulheres do mundo, se não a mais bela. E questionou-se: a que propósito? o que está aqui a fazer a Theron?
Mas a beleza é uma história que se inventa. Isso não existe. O Senhor Impontual, por exemplo, é um ser medíocre, desses que não se distinguem no meio da multidão, desses que não atraem a atenção. O que aliás não é grave, e o Senhor Impontual, acomodou-se.
O Senhor Impontual jamais deteve as mulheres bonitas. Nunca foi a favor do movimento do mundo contra o poder das mulheres bonitas. Viu o perigo que trazem com elas, a ameaça que por vezes representam. Aprendeu que estão aptas a devastar tudo à sua passagem se não as travarem. Deve perdoar-se-lhes, sem dúvida, porque não sabem o que fazem. Enfim, nem sempre. Na realidade, não possuem uma ideia precisa da sua força. Se avaliam, muitas vezes com grande rigor, o seu poder de sedução, a sua habilidade para levarem os homens a ceder, se conseguem chegar a um conhecimento intimo dos seus trunfos, das suas armas, não medem inteiramente aquilo que são capazes, os danos que são susceptíveis de causar. É esta última ignorância que as salva, evidentemente. Porque, no fim, é impossível querer-lhes verdadeiramente mal. Como se, nos desastres, lhes fosse reconhecido o beneficio da irresponsabilidade.
Posto isto, o Senhor Impontual saiu da conferência absolutamente convencido de que o aspecto principal da preservação de um edifício é a sua história e não a sua beleza. Nem que para se atingir tal desiderato seja preciso ficar quieto.
Os italianos quando falam gostam muito de introduzir citações para alavancar a sua oratória.
O Senhor Impontual está de novo em Treviso e acaba de ouvir numa conferência sobre conservação e restauro do património arquitectónico a utilização destas palavras em tempos saídas da boca de uma das mais belas e elegantes mulheres do mundo, se não a mais bela. E questionou-se: a que propósito? o que está aqui a fazer a Theron?
Mas a beleza é uma história que se inventa. Isso não existe. O Senhor Impontual, por exemplo, é um ser medíocre, desses que não se distinguem no meio da multidão, desses que não atraem a atenção. O que aliás não é grave, e o Senhor Impontual, acomodou-se.
O Senhor Impontual jamais deteve as mulheres bonitas. Nunca foi a favor do movimento do mundo contra o poder das mulheres bonitas. Viu o perigo que trazem com elas, a ameaça que por vezes representam. Aprendeu que estão aptas a devastar tudo à sua passagem se não as travarem. Deve perdoar-se-lhes, sem dúvida, porque não sabem o que fazem. Enfim, nem sempre. Na realidade, não possuem uma ideia precisa da sua força. Se avaliam, muitas vezes com grande rigor, o seu poder de sedução, a sua habilidade para levarem os homens a ceder, se conseguem chegar a um conhecimento intimo dos seus trunfos, das suas armas, não medem inteiramente aquilo que são capazes, os danos que são susceptíveis de causar. É esta última ignorância que as salva, evidentemente. Porque, no fim, é impossível querer-lhes verdadeiramente mal. Como se, nos desastres, lhes fosse reconhecido o beneficio da irresponsabilidade.
Posto isto, o Senhor Impontual saiu da conferência absolutamente convencido de que o aspecto principal da preservação de um edifício é a sua história e não a sua beleza. Nem que para se atingir tal desiderato seja preciso ficar quieto.
quinta-feira, 10 de outubro de 2019
quarta-feira, 9 de outubro de 2019
segunda-feira, 7 de outubro de 2019
Ressaca
Há décadas que, em noite de eleições, me fascinam os discursos das vitórias. No dia seguinte, os discursos dos empates ainda me parecem mais impressionantes.
quinta-feira, 3 de outubro de 2019
Voto compulsório?
A analise do tecido politico que por estes dias se propõe tomar as rédeas do país é de tal forma óbvia, fácil e contundente que a sua simples leitura é suficiente para se impor enquanto farsa. Não são necessárias observações minuciosas, interpretações incisivas e sinistras para inculcar o nível politico da nação. A credibilidade é uma conquista que se faz todos os dias: ninguém a oferece gratuitamente. Não é uma questão de gramática. Não é uma questão aritmética. É uma questão moral. É uma questão de carácter. Insuflar força e honra nas palavras e nas tomadas de decisão é o dever mais caro e terá de ser o propósito quotidiano de quem pretende fazer politica com responsabilidade. Não é um epitáfio. Tem de ser a bandeira desfraldada, todos os dias.
Ora se assim não é, e atendendo a que (alegadamente) vivemos num regime de democracia representativa legitimada pela soberania popular, eu, que não percebo nada disto, ponho-me a pensar se não seria melhor respondermos com uma ida massiva às urnas de modo a que os políticos deste país sentissem, de uma vez por todas, o ónus da responsabilidade que pesa sobre eles? e por outro lado afunilar (lhes) o leque de desculpas infundadas que decorre da altíssima abstenção que habitualmente se verifica e que (lhes) serve de capa protectora?
Uma votação massiva não teria o condão de uma melhor definição parlamentar - responsabilizando-a: quer seja maioritária ou minoritária? além de deixar a descoberto a insustentabilidade de algumas alas politicas populistas que aparecem a querer ganhar alguma força circunstancialmente alavancadas pela abstenção?
Bom...isto foi só um pensamento. E como eu não percebo nada disto, se calhar o melhor é continuarmos, perversamente, entretidos em festas alegres e jazz. E... daqui a seis meses cantarmos a uma só voz: " eu não tenho nada a ver com isto, nem sequer fui votar".
Ora se assim não é, e atendendo a que (alegadamente) vivemos num regime de democracia representativa legitimada pela soberania popular, eu, que não percebo nada disto, ponho-me a pensar se não seria melhor respondermos com uma ida massiva às urnas de modo a que os políticos deste país sentissem, de uma vez por todas, o ónus da responsabilidade que pesa sobre eles? e por outro lado afunilar (lhes) o leque de desculpas infundadas que decorre da altíssima abstenção que habitualmente se verifica e que (lhes) serve de capa protectora?
Uma votação massiva não teria o condão de uma melhor definição parlamentar - responsabilizando-a: quer seja maioritária ou minoritária? além de deixar a descoberto a insustentabilidade de algumas alas politicas populistas que aparecem a querer ganhar alguma força circunstancialmente alavancadas pela abstenção?
Bom...isto foi só um pensamento. E como eu não percebo nada disto, se calhar o melhor é continuarmos, perversamente, entretidos em festas alegres e jazz. E... daqui a seis meses cantarmos a uma só voz: " eu não tenho nada a ver com isto, nem sequer fui votar".
terça-feira, 1 de outubro de 2019
Volta ao mundo em cinco minutos
Em Paris eras uma dama aprisionada num espartilho fumando cigarrilha no Cabaret du Ciel. Em Berlim estavas sentada num palco da Filarmónica, abanando-te com um programa onde constava, entre outras sinfonias, a nona de Mahler. Em Amesterdão eras uma daquelas prostitutas lindíssimas que se exibem nas montras dos canais. Em Londres eras um ramo de daffodils que comprei no Columbia Market no inicio da Primavera. Em Praga eras uma rapariga que orava no Cemitério Velho. Na reserva de Kilaguni, no Quénia, rodeada de hienas, ao cair do sol, estavas vestida de caqui como Ava Gardner no Mogambo. Em Rabat eras Saida a pôr o tempo a dançar numa noite de Ramadão. Nas ilhas gregas eras uma turista inglesa que teimava em prolongar o Verão. Em Viena simplesmente vendias tortas de chocolate na pastelaria Demel. Em Braga...passado aquele ponto em que os rostos foram atravessados por um agradável momento de calor, em que todos os músculos se relaxaram e uma alegria cósmica de textura impetuosa e contaminada de inquietação nos levou a descobrir que, sim, os beijos eram para cumprir, tornou-se impossível estabelecer diferenças entre a postura dos homens e dos cães: do encontro entre os corpos ergueram-se odores tão intensos que acabamos fundidos um no outro. Réus, culpados, mortos.
No Rio de Janeiro poderias ter sido a Garota de Ipanema gingando pelo calçadão fora, mas nunca lá estive.
No Rio de Janeiro poderias ter sido a Garota de Ipanema gingando pelo calçadão fora, mas nunca lá estive.
quarta-feira, 25 de setembro de 2019
Osculação
Já se sabe que, às vezes, acontecem coisas com o condão de alterar o clima em torno de uma pessoa, o que é natural, porque as primaveras não são eternas e um desastre registado num qualquer fim de tarde dá azo imediato a um tempo cinzento e espesso que, como também se sabe, para uma legião de observadores insensatos, está sempre longe de se adivinhar.
segunda-feira, 23 de setembro de 2019
Pensão Imperial II
... com a varanda aberta a todos os ruídos e vozes da rua dentro do quarto, lançaram-se um contra o outro sobre a cama, desnudando-se com os dentes e, à medida que descobriam uma parte do corpo, depois de cada mordidela crescia neles um furor que os impulsionava para dentro de si mesmos para sair de imediato com mais força ainda. Ainda não estavam completamente nús e já se resfolegavam como cavalos que chegam juntos à meta, a égua apenas com meia cabeça de vantagem, e a claridade que entrava pela janela era suficiente para descobrir sobre a pele coberta de suor qualquer sinal de identificação. Ela quando procurou aquele sinal por baixo do mamilo nem sequer teve tempo de se alegrar por o encontrar exactamente igual, porque de imediato sentiu que ele a possuía com uma força desmesurada e foi como se uma onda a cobrisse e enchesse de água o fundo da sua memória.
Os gritos de prazer que ela soltava chegavam à rua. Os pintassilgos e os canários dentro das suas gaiolas pendurados nas janelas calaram-se, um lojista perguntou a si mesmo que guerra era aquela e houve um grupo de pessoas que parou no passeio, disposto a aplaudir a grandeza e a qualidade daquele orgasmo.
- Que se passa ali em cima?
- Não é nada - respondeu um peão residente na zona. - É apenas uma mulher muito satisfeita por voltar ao mundo... por voltar à vida.
quinta-feira, 19 de setembro de 2019
Pensão Imperial
Beberam em silêncio, observando-se um ao outro como dois desconhecidos que marcaram um encontro sem se conhecerem e nada têm a dizer um ao outro senão matar o tempo necessário antes de começarem a devorar-se. Foi ela quem pagou a conta e disse-lhe sem palavras, movendo a cabeça: - vamos? Na rua seguiram por um passeio muito estreito. Levou-o pela mão, ela adiante, ele atrás como que arrastado, até encontrar uma varanda com gerânios, de onde pendia o nome da pensão. Ele sentiu que a sua mão continuava a ser de aço e essa sensação atacava-lhe a vontade. Entraram por um portal velho e sujo e foram vencendo todos os obstáculos que se interpunham à sua passagem: uma escada ensebada com degraus de madeira ruvinhosa até ao terceiro piso. Uma porta verde bosque repintada, uma campainha que soou estridente na recepção, uma velha que abriu o postigo, um gato que miou de forma sinistra ao ver o par debaixo da lâmpada do patamar, a velha que os obrigou a limpar as solas dos sapatos no tapete, um corredor longo com odor a repolho cozido em lume brando, a retrete ao fundo, um quarto à direita com o número nove sobre o lintel, um candelabro azul indigo sobre a mesinha de cabeceira, uma varanda com gerânios pendente sobre a azafama da rua, uma cama grande com a cabeceira de barras de ferro muito próprias para atar o amante que goste disso, um espelho no guarda-roupa que reflectia dois corpos nus tal como eram agora. Ele visivelmente mais magro, ela continua a ser uma mulher formosa de quarenta e cinco anos com a cintura levemente arredondada depois de dois partos, um deles de cesariana, e o tempo deixou-lhe certas marcas na comissura dos lábios e em volta dos olhos, que conferem à sua beleza um esplendor já amadurecido. Perdeu aquela magreza que a fazia parecer bastante mais frágil. Agora parece uma fêmea madura e segura de si, com muito poder na carne. Imperial.
terça-feira, 17 de setembro de 2019
Pintar Setembro
Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma terça-feira. Estamos em meados de Setembro, nas árvores ocorre a flavescência das primeiras folhas. Diante de mim, ela é frágil. O seu corpo parece vazio. Está à beira de chorar. Retém as lágrimas. Tem de dizer qualquer coisa. Mas não possui a superioridade dos magníficos, esses que encontram, sem reflectir, expressões luminosas. Não tem essa desenvoltura que exaspera os aplicados, que desencoraja os laboriosos. Tem apenas o seu sorriso trémulo, a sua tez de pêssego onde se desenham umas finas linhas precoces, a idade em fuga. É irresistível e indefesa. Linda e desamparada. Tem de dizer qualquer coisa. O rio, lá fora, está como que suspenso da sua palavra. O céu está imóvel também. A manhã chega ao fim. Baixo os olhos. Não pretendo força-la a nada. Não espero nada dela. A mim, não deve palavra alguma. É uma questão entre ela e ela, essa história de dever dizer qualquer coisa. Na paleta tenho apenas um tom, pastel, esconjuro de feridas na alma.
segunda-feira, 16 de setembro de 2019
Erecções
Desde que a grande fraude - que é a vida politica portuguesa - se instalou livremente à luz do dia, a partir do momento em que a aparência enganadora dos fazedores de politica caiu por terra e as revelações capciosas passaram a ser encaradas segundo valores normais, mais os políticos se mostram consistentes e desprovidos de qualquer sentido de inibição própria: apresentam-se com ligeireza acima da moral e das dúvidas das pessoas comuns, aprontam-se a tomar decisões sem vergonha, tudo acontecerá porque tem de acontecer, as perguntas parecem estúpidas e os homens desprezíveis, desprezíveis.
Eles aí estão de novo. Com as cristas bem levantadas.
quinta-feira, 12 de setembro de 2019
Palmira
Palmira entrou, sobranceira, no casino da costa envolta numa écharpe de seda crua e coberta de jóias. Ele ofereceu-lhe um punhado de fichas vermelhas. A bola já rodava nas primeiras mesas. Palmira aproximou-se da roleta com uma elegância natural e pousou todo o seu capital apostando no zero. Depois de dar uma volta por todo o universo, a bola brincou, com alguns saltos mágicos, e finalmente caiu no zero. Palmira compreendeu que o zero era o seu destino.
terça-feira, 10 de setembro de 2019
Estrada da circunvalação
Basta que voltemos à vida para que se sinta, por todos os lados, o espectro da violência e da brutalidade quotidiana, os subtis insultos ordinários, as intimidações como um reflexo, uma animosidade de todos os instantes, uma espécie de cólera surda sempre pronta a explodir, uma fúria mal contida. Tisnados, os corpos das pessoas parece que são portadores duma energia destrutiva, duma dureza à flor da pele. Adivinha-se que esta impetuosidade poderá rapidamente provocar agitação. Está-se sempre à beira do tumulto.
O período de férias, por direito e por obrigação, deveria contemplar uma semana extra para readaptação ao habitat natural antes do regresso.
O período de férias, por direito e por obrigação, deveria contemplar uma semana extra para readaptação ao habitat natural antes do regresso.
terça-feira, 3 de setembro de 2019
Setembro
Passaram a noite num hotel de praia que no andar de baixo tinha um restaurante muito popular e, naquele entardecer de Setembro, o seu terraço com toldos e caniços estava a transbordar de gente cujo o alarido chegava aos quartos e, juntamente com as vozes e as risadas, chegava também um odor a lulas grelhadas e mexilhões em vapor.
Ela olhou-se nua de perfil no espelho do guarda-fatos e observou o baixo-ventre que ia amadurecendo sobre as ancas largas. Antes que se apagasse a luz que ainda restava no mar, estenderam-se numa cama com cabeceira de ferro que, dentro de pouco tempo, começou a gemer, enquanto na praia se ouviam canções entoadas em coro por um grupo que havia lanchado bem. Foi nessa cama que, pela primeira vez ela lhe disse que o amava e que o seguiria para sempre, para todo o lado que fosse, como uma cadela. Depois de ambos se possuírem com uma profundidade desconhecida, ficaram exaustos e suados, deitados de costas em silêncio. Por fim, ela murmurou:
- Agora recita-me outra vez aquele poema.
- Outra vez? Estamos às escuras. Não posso ler.
- Sabes de cor. Começa - disse-lhe ela de forma imperiosa.
- "Pernoitas em mim... e se por acaso te toco a memória..."
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