domingo, 26 de dezembro de 2021

Gloria in excelsis Deo

Em frente ao espelho ajustou o corpete, distendeu milimetricamente as meias pretas de cornucópias, calçou os scarpins igualmente pretos, sobiu a saia para três centímetros acima do nível do joelho, vestiu o capote de burel e deu um último retoque meticuloso no véu que lhe emoldurava o olhar. Logo logo atravessou a praça em passo de sessenta centímetros para ir assistir à missa do galo. Ao entrar na igreja procurou Gabriel Arcanjo com o olhar. Nele reservava a esperança de pôr fim aos dias sombrios, aplacar o espírito impetuoso que a consome. Do céu, profeta de todas as desgraças, caiu o foguetório. 

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Calendário do Advento

Tenho tudo para escrever este tempo anacrónico. As letras perfeitamente alinhadas, os dedos inclinados sobre as teclas, o silêncio nocturno das ruas, o silêncio da minha voz, a nostalgia humedecendo-me a boca, um calafrio na pele, a música invadindo-me o mais recôndito e profundo patamar do âmago. Mas, não. Não me quero implicado em contrariar minimamente esta efémera felicidade que o mundo teima, e bem, em querer viver por estes dias. Nem sequer do mundo que está aqui mesmo ao meu lado. A página continua em branco como que a iludir este tempo circular. Não há palavras para desenha-lo. Não há pernas para pisar o terreiro do romantismo desacreditado. Apenas umas palpitações electrizantes no corpo todo. Um ou outro soluço intermitente. Uma esperança imposta. Uma teimosia pacifica nos subterrâneos da alegria: dar e receber uns abraços, esse talento miraculoso. Erguer uns copos. Comer uma ou duas rabanadas das tias velhas.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Insónia

Bocarra aberta que aspira o vivente para depois expelir miséria. Sorvedouro. Tudo ali se transforma: o ar, o ruído, o grito. Tudo se apresenta, tudo se exalta. Indiferente, sem pudor, caminha sobre a sombra dos transeuntes como se tudo se espezinhasse. Lugar sem meio, migrante, flutuante ao sabor dos terminais do pensamento, ao sabor das horas e picos de reflexão, campo aberto onde se extasiam fragmentos. Queixume ininterrupto. Às vezes noite-encontro, os amantes nas suas caçadas esgueiram-se pelos becos sem saída, caricias dóceis, o esperma jorra, o prazer é tão curto. O dia nasce frio, embora azul.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Povoléu

 Era uma vez um país onde os homens-bons iam presos muitos anos depois.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Amélia

A maioria das pessoas diz "não" quase imediatamente, por puro instinto de sobrevivência. Amélia diz sempre "sim", "claro", "com certeza". Compromete-se para o resto da vida no calor do momento, sabendo que, no fundo, presumindo, o mesmo instinto de sobrevivência que leva os outros a dizer "não" começará a funcionar no momento crucial. Apesar dos seus instintos calorosos e generosos, da sua bondade e ternura instintivas, Amélia é a mulher mais esquiva que já alguma vez conheci.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Siena

Há momentos nos quais aquilo que se cala tem tanta importância como o que se diz. É como uma viagem nocturna, ora reflexiva, ora extravagante e desolada, em busca da linha de sombra onde os anseios habitam, mas também, pelas mesmas razões, um périplo à procura do esquecimento, uma recordação minuciosa e esperançada em que as certezas perdem paulatinamente a sua razão de ser e são substituídas, como se tratasse de um sonho, pelo vazio do tempo.

O tempo passa, as recordações esbatem-se e o que não se extingue para sempre perde intensidade e com a inevitável distância parece menos do que foi. Não há respostas. Não há que lamentar. Nenhuma palavra modifica o passado e nenhuma é exacta se se pronuncia quando o que se nomeia é passado e não o presente. No presente as palavras não existem. As palavras surgem mais adiante. É ter calma.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Lugar, lugares


@ferdinando scianna

«Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo – diziam. E depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.(...)»

_Herberto Helder

terça-feira, 23 de novembro de 2021

CNN

O irreprimível desejo de sucesso, de ascender, de ser alguém, o american dream, não seria comum a tantos homens, mulheres e até crianças de hoje se não estivesse tão divulgado pelo cinema e especialmente pela televisão.
Na sociedade em que nos coube viver, a aluvião de noticias, a cultura imposta, o ensino, as múltiplas opiniões produzidas por gigantescas fábricas de noticias e difundidas em regime de franchising, ao mesmo tempo que aumentam as possíveis explicações do mundo dificultam a tarefa de as interpretarmos por nós próprios, de acordo com a própria natureza, e com serenidade. 
O processo de consolidação de uma sociedade de analfabetos funcionais está a avançar em passos muito largos.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Sermão aos peixes

Tenho ainda de falar da voluptuosidade dos meus olhos. Olhos que amam a beleza e a variedade das formas, o movimento, o brilho e as cores. E isso, garanto-vos, há muito que possuiu a minha alma. Esta vida é tão breve! Não podemos ter a veleidade de emitir qualquer condenação sobre o desejo.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

O fabuloso destino de Amélia

Amélia cruza-se comigo varias vezes ao dia. Não posso deixar de reparar naqueles dois globos terrestres que, a cada passada de Amélia, parecem pautar o ritmo do Universo. Esforço-me por adivinhar qual será a diferença entre o rabo tapado de Amélia, que conheço até agora, e o descoberto, ao qual acrescenta beleza - ou talvez a extrapole - a minha inflamada imaginação.

Aquelas esplêndidas nádegas apresentam-se-me generosas e dóceis, entregam-se à minha contemplação, conscientes de que o facto de olhá-las e desejá-las pode embelezá-las ainda mais. Essas delícias, prometedoras, rutilantes e sumptuosas, se são prazenteiras e excitantes à vista manifestam que o serão muito mais ao tacto.

Bem sei que nem Rimsky-Korsakov ao compor o incitante Scheherezade nem Ravel ao compor o orgásmico Bolero, tocaram e acariciaram carne humana. As polpas dos seus dedos apenas batiam nas teclas do piano, o que já é deleitoso para um amante de musica, mas o que é certo é que Scheherazade e as demais mulheres do harém, e o amoroso e frenético par do Bolero, permaneceram intangíveis.

Não fosse a minha incipiente vocação artística e já seria um deleite desenhar, escrever ou musicar a gloriosa protuberância que se esconde para lá das saias de Amélia.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Renoir

Pareceu-me ser uma jovem atraente que combinara encontrar-se com o amante e chegara cedo. Mal tocara no aperitivo que pedira. Olhava atenta e firmemente para quem passava diante da sua mesa. Olhava em seu redor calmamente, avaliando o que via, mas sem o esforço óbvio de chamar a atenção. Era discreta e contida. Estava à espera. Eu também estava à espera. Cumprimentou-me com cordialidade como se tratasse de um amigo, mas raparei que ficou agitada. A sua voz era mais arrebatadora do que o seu sorriso: tinha bom timbre, era ligeiramente grave e um pouco rouca. Era a voz de uma mulher que se sente feliz por estar viva, que se entrega aos desejos, que é descuidada e modesta e que fará tudo para preservar o fragmento de liberdade que possui. Era a voz de uma mulher que dá, que consome: apelava mais ao diagrama que ao coração. O seu corpo era pesado, terreno. Parecia um Renoir. Mas os sons que lhe saiam da garganta eram como notas cristalinas de um violino.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Gambito de Rei

Marcelo, um jogador de xadrez que prevê dez jogadas à frente, depois de vários movimentos en passant, prepara-se agora para fazer um roque longo. Não é de excluir a ocorrência de um bloqueio central, um empate por afogamento.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Fiéis defuntos

A nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a aceita-la tragicamente. O cataclismo deu-se, estamos entre a ruínas, choramos a terra morta, desatamos a construir novos pequenos habitats, a alimentar novas esperançazinhas. É uma tarefa difícil, já não há nenhuma estrada suave em direcção ao futuro: rodeamos os obstáculos, ou passamos por cima deles. Seja qual for o número de céus que desabem, temos de viver. Fiéis defuntos.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Paranóia colectiva

A culpa é o único sentimento humano que ninguém quer carregar sozinho.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Pitagorismo

A lei que Costa não soube prever: a base de qualquer triângulo é, invariavelmente, a infidelidade.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Quem quer casar com o agricultor


Bom rapaz. Quintal próprio. Boas colheitas. Mas... até hoje nenhuma soube dar-lhe vontade de ser outra coisa para além de um amante lamentável. Sonha ser fiel, sucede-lhe, por vezes, convencer-se de que o é, durante um tempo, para explorar o que só se descobre na monogamia, mas continua a ser um rapaz que se aborrece depressa, um tipo que, como Óscar Wilde, só se livra da tentação sucumbindo a ela, e que se assusta muitas vezes por não conseguir encontrar aquela que... Detesta os sentimentos que provoca. 
Em redor da casa existe um prado. Não se trata de um sitio onde, naturalmente, devesse haver um prado: logo o prado é um objecto artificial composto por objectos naturais, isto é, ervas. Dá trabalho a desinfestar, cortar e regar.
Quem quer casar com o agricultor?

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Pina


Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Povoléu

Era uma vez um país, numa época em que a maior parte das pessoas acreditavam num qualquer género de universo em três camadas - havia o mundo sobrenatural, o natural e um qualquer lugar onde havia seres humanos. Uma espécie de vácuo nevoento e doloroso onde o Povoléu era a classe dominante. O seu nome do meio era Pobreza e o seu apelido Ignorância. Consequentemente, a sua única possibilidade de felicidade estava na escravidão. Escravizem-nos, se for preciso, gritava silenciosamente o Povoléu, mas dêem-nos de comer.  E assim foi sobrevivendo o Povoléu, matando a fome e passeando-se em ruas mal iluminadas onde ninguém o pudesse escutar - ouvia-se contar o que acontecia aos que erguiam a voz por uma outra liberdade -, mas o Povoléu não ficava muito perturbado com esse género de purga.

É lamentável que hoje o Povoléu ainda misture dois sentimentos tão diversos: o ressentimento, a insatisfação e a névoa que toda a infância convoca. É lamentável, como o é que o erro se tenha perpetuado. O que se passou a seguir, ou seja hoje, não podia ter corrido bem porque estava construído sobre alicerces muito frágeis. Volvidos cinquenta anos, democraticamente, agora mais do que nunca, o Povoléu reduz-se a uma espécie de massa acrítica, destinada unicamente a regular a cotação do petróleo, fazer a vénia e desembolsar todos os prejuízos colaterais.
  
A unanimidade da derrota previamente anunciada confirma-se a cada dia que passa.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Outubro

Acontece sempre em Outubro. Apodera-se do Senhor Impontual uma partícula de lucidez, uma mania, uma atitude compulsiva. Não é sofreguidão. Também não é solidão. Embora o Senhor Impontual tome consciência de que quer estar só. Nesta altura do ano - tal como as árvores - o Senhor Impontual gosta de se desmoronar peça a peça, de se desconstruir de fora para dentro, de se subtrair de componentes que já não funcionam mais. Assim, fragmentos de felicidade, alegria, prazer, vontades, desejos e esperanças vão sendo desarticulados um a um, sem tristezas, sem arrependimentos, sem hesitações, sem contemplações. É um acordo bilateral; do Senhor Impontual para o Senhor Impontual. Depois, se a ideia do desejo continuar presente dentro de si, o Senhor Impontual aceita a eventualidade da atracção e do rebentamento de outros estames, mas jamais para sofrer a tortura lancinante da falta, a comichão exasperante da privação. Acontece sempre em Outubro. Este Outubro vai extraordinariamente quente.