Vejo que não conheces o teu poder. Consomes-te em amor e dádiva e desconheces os milagres que daí resultam. Senti isso a noite passada ao ver-te representar a Cinderela, que eras tu, qualquer que fosse o papel que estavas a representar, que tocaste nesse ponto em que a arte e a vida se fundem e em que apenas se existe. Senti a tua fome e os teus sonhos, os teus desejos ao mesmo tempo que despertavas os meus. Senti que não estavas a representar mas a sonhar; senti que eu - o espectador - podia sair do teatro e, sem transição, passar por artes magicas para outro baile, para outra tempestade, para outro amor, para outro sonho. Diante dos meus olhos eras consumida pelo desejo e pelo sonho da entrega. A chama dos teus olhos, dos teus gestos, eram uma fogueira de fé e dissolução. Tu tens o poder. Representar, em ti, é uma revelação. Aquilo que tantas vezes a alma não consegue exprimir pelo meio do corpo porque o corpo não é suficientemente subtil, tu consegues exprimi-lo. Geralmente o corpo atraiçoa a alma. Tu tens o poder do contágio, de transmitir a emoção por meio dos infinitos cambiantes dos teus movimentos, das variações dos traços da tua boca, das palpitações macias das tuas pestanas. E a tua voz, a tua voz ligada à respiração, a ausência do sopro da sensação, de tal modo que me arrebataste a respiração e me levaste para o reino inspirado do silêncio. Que imenso poder tu tens!
Imagino, lá nessa tua vida de representação, o choque ao perceberes que no final o público continua por transformar. A dor que essa quebra do sonho provocará em ti.
Deviam levar-te imediatamente para fora do palco, para que não sentisses a mudança de nível do palco para a rua, e da rua para casa, e dali para outra festa, para outro amor, para outra cama, para outra tempestade, para outro par de sapatos dourados.