sábado, 29 de abril de 2023

Dança

E quando a violência dos nossos corpos atravessar o canal da linguagem, passar para além das palavras, para além de tudo o que possam dizer as palavras, ocupar-me-ei do teu corpo, centímetro a centímetro, explorá-lo-ei, acariciá-lo-ei, farei jorrar prazer de cada poro da tua pele. Será a grande ocupação da minha vida: dar-te prazer... tratar-te como uma pequena rainha. Apenas ouvirás o roçar do meu corpo contra o teu, as gotículas de suor que rolam na tua pele, a minha boca que as vai sorver, que subirá à tua orelha e repetirá incansavelmente: "diz-me o que queres". Depois, enxaguarei o teu corpo dessa água que corre, dessa sede que jorra entre a tua e a minha pele, essa sede nunca saciada que encontra mil fontes novas em mil recantos escondidos no teu corpo espantado. Por fim deixaremos a beira-mar, os rochedos, a espuma suja das vagas, afogar-nos-emos naquela água salgada, lamber-nos-emos, respirar-nos-emos, ergueremos a cabeça para recuperar o folgo e partiremos para mais longe dançando no desconhecido caminho marítimo dos nossos corpos ...

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Beijo

Entrou e sentou-se ao balcão. Encomendou um Bourbon com 15 anos de idade. O que espera naquele bar sem nome? Cheiro, algo de desconhecido, uma vontade infinita de estranho. O seu desejo da manhã não a deixou. Pelo contrário. Todo o dia a lancinante injunção instilou-lhe urros na pele, os lábios corolas do sexo molharam-se repetidas vezes por um clarão, uma imagem rememorada, monstro enroscado no seu corpo que reclama e exige. Cada veia, cada artéria soletra: fruição, prazer, caricia, pele, vai-e-vem...o sexo que hesita, joga, aflora o clitóris antes de penetrar. Ela pensa penetrar e olha em redor: castiçais, garrafas, copos esguios, o que pode brincar à entrada de um corpo? O ideal, um homem invisível que roçasse e se aproximasse sem ela saber e depois arregaçasse os tecidos e as rendas, tomasse, rasgasse, um homem sem rosto, mudo... e que se sumisse. Acto continuo. Incógnito. Uma sombra.

Pagou a conta e foi-se embora. Avançou sóbria de presente, ancas a ondular sobre o único palco onde se joga o bailado de uma vida. Na rua, a ausência da Primavera, o acaso dos transeuntes. Frágil entre frágeis. Também precisava de um beijo.

terça-feira, 11 de abril de 2023

Caxinas

Três dias depois, a mesma luz de ouro. Três dias em que nada aconteceu a não ser o roer incessante da saudade que aumenta com a luz e com a luz diminui. O sol está fixo sobre a marginal. O paredão está vazio, mas iluminado. Luz de ouro fixa, batida pelo vento. Odor mesclado de iodo e sal, odor ácido e desenterrado das águas. O mar bate forte, sobre o céu limpo, as areias agitam-se, correm, gritam, as gaivotas lutam contra o vento, demoradas no voo. Às vezes o vento acalma-se, as areias sossegam, o mar torna-se chão e o aglomerado contínuo de casas estende ao sol vidas paradas. A brisa continua fresca, a cobrir a praia. A luz vai baixando sobre um céu sem nuvens. A saudade rói de novo.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Disrupção

Esta é uma época estranha, essencialmente trágica, que vamos recusando aceitar. O cataclismo deu-se. Estamos entre as ruinas. Temos de construir pequenos habitats. Alimentar novas esperançazinhas. Cuidar que não sejamos roubados no supermercado. É uma tarefa difícil. Já não há nenhuma estrada suave em direcção ao futuro. Só nos resta rodear os obstáculos, ou passar por cima deles. 
Seja qual for o numero de céus que desabem, temos de viver. Disruptivos. Aguentar até ao próximo Inverno. Mas...e se não chove?

quinta-feira, 30 de março de 2023

quarta-feira, 22 de março de 2023

Miradouro

Através das pálpebras semicerradas vejo indefinidamente o mar ao longe. A cidade ao fundo está invisível, atolada nas suas excreções. No fim do horizonte, por cima do mar, surgem zonas de sombra. O céu encobre-se. Depois começa a chover nas zonas negras. Passado um bocado, por sobre o mar, formou-se um grande tetrágono de luz branca. O tetrágono de luz pluvial desaparece. Outras tempestades rebentam. Por toda a parte. Por cima da minha cabeça surge uma pequena cortina de chuva ensoalhada. Rompendo a cortina, umas aves de cauda bifurcada. Pode ter chegado a Primavera. Mas, quando chegar a casa, tenho de ver se as margaridas já furaram o relvado. 

terça-feira, 21 de março de 2023

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!

Tu és melhor -- muito melhor!
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

sábado, 11 de março de 2023

Observatório

Desde os campos de cultivo às prateleiras dos hipermercados, passando pelos carregadores, os camionistas, os descarregadores e os açambarcadores, o preço dos produtos agrícolas aumentaram cerca de sessenta por cento. Depois de pagarem os impostos, a hipoteca, a contribuição agraria, os manda-chuva, os dízimos e primícias, os camponeses que os cultivam, trabalhando de sol a sol, recebem apenas dezasseis por cento do valor total do produto. O suficiente para, juntamente com o usuário particular, morrerem de fome. Mas sob o império da lei e da graça dos Senhores.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Interpretando Courbet

@Jean-Baptiste Mondino

 

Entrar nesse edifício e passear por esse labirinto de corredores infinitos, desde a cave ao piso mais alto, é passear pela tragédia humana. Às vezes pela comédia divina. Gosto de ir aí. De me perder. De te encontrar.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Palomar

Um homem está parado no areal. O Senhor Impontual caminha, lesto, junto à água lado a lado com o sol poente. Uma mulher está ao cimo, de pé, olhando a praia. O mar está baixo, calmo, a estação indefinida, o tempo lento. A mulher está em cima de um estrado de madeira, ao longo da praia. Veste roupas largas e sombrias. Tem um rosto distinto. Os seus olhos são grandes. Não se mexe: olha o mar, a praia, as poças, as superfícies isoladas de água morta. Depois caminha, afasta-se e volta, torna a partir, a voltar, num caminhar longo, monótono. O Senhor Impontual que já estava a perder-se no horizonte dourado, trava, inverte a marcha, e retorna ao local de partida. O triângulo fecha-se com a mulher de olhos cerrados, sentada contra o muro que separa a praia do fim da cidade. O mar e o céu ocupam o espaço. Ao longe o mar está já oxidado pela luz obscura. E o céu também. O homem, que esteve imóvel durante todo este longo hiato de tempo, inicia a marcha de saída do areal. O triangulo oscila. Desfaz-se. São agora duas pessoas sob o intenso crepúsculo. O dia morre. 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

É curioso, mas é um fenómeno do nosso tempo

Apesar de mais educado e de melhor sociedade, o Senhor Impontual é, à sua maneira, mais provinciano e mais tímido do que aquilo que possa parecer. Sente-se à vontade no seu pequeno "grande mundo", isto é, com a aristocracia da terra, mas tímido e nervoso perante esse outro grande mundo que consiste nas hordas das colonizadas classes média e alta. Para dizer a verdade, o Senhor Impontual tem um pouco de receio da insanidade dessas classes que não pertencem à sua classe. O Senhor Impontual está consciente da sua impossibilidade de defesa, embora possua a defesa do privilégio de ser um provinciano. 
É curioso, mas é um fenómeno do nosso tempo.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Entrolhos

Ultrapassada que está a grande marca que Salazar deixou em Portugal - a mordaça - eis que surge a psique colectiva dos entrolhos. A mentalidade de, com os olhos tapados, criar celeuma, dar tiros no escuro, forçar o avanço da solução de reserva mesmo que esta seja inconsistente ou simplesmente não exista. É difícil fazer avançar um país com este intelecto. Com este vinculo K. Com esta estupidificação maligna.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Palomar

Desta mesma janela edénica onde o Senhor Impontual já tinha aprendido a pandemia, de onde já tinha aprendido as doenças da liberdade e da falta dela, de onde aceitou a honra do exílio. Observador atento, o Senhor Impontual, perscruta agora o céu, o horizonte vazio, a lenta cronologia das horas, os rabiscos gigantes das nuvens. Na sua cabeça, palco dilatado, pairam agora frases sarcásticas sobre guerras e politicas de massas que não devem ser pronunciadas com ligeireza. Em combate, sempre os mesmos. O cataclismo deu-se, estamos entre os escombros, desatamos a construir novos pequenos abrigos, a alimentar novas esperançazinhas. Estás vivo, diz de si para si mesmo, no presente vivo, e não no passado vivo. Parou de chover, a tarde serena acolhe o Senhor Impontual. Uma quietude hospitaleira, sem pensamentos nem perguntas, apenas a magnificência do dia cinzento. Ao fundo Zucchero interpreta majestosamente Miserere (Allegri). Uma espécie de banda sonora do tempo paradoO presente, ou seja, aqui e agora.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Outra de coisa nenhuma

Hoje, mais a frio e a destempo, eu que gosto de Lobo Antunes e de livros, facilmente percebo que há memórias mais extensas que outras e que o ritmo e a intensidade desta sequência dependem grandemente da taxa de hormonas, do humor das moléculas, da rapidez das sinapses, de um espírito obnubilado, de um ventrículo palpitante e, por vezes, de um membro sexual inquieto. Já Borges me tinha ensinado algo parecido. O que não deslustra Lobo Antunes.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Ainda hoje é Dia de Reis

E um ano inteiro já lá fora. Um ano todo a pensar que a felicidade consiste em abrir janelas ao amanhecer, em esperar, em supor que apenas com o abrir de portas e janelas algo acabará por entrar, algo eterno que haverá de os transformar e acabará por ser seu. Só seu. Um ano todo a ver passar as coisas, e as coisas ali imóveis, caladas, mudas, surdas, cálidas e enchendo-se das cores da tarde uma e outra vez, tristes e amarelas, até à brancura de um novo amanhecer sem saber realmente que não é suficiente abrir...abrir... abrir. E que tudo é tão fugidio, tão morredouro. Um ano inteiro... já lá fora.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Pelé

Discordo em absoluto desta imortalidade que se quer, à força, dar às coisas e às pessoas em todas as suas formas. O fim é requisito de qualquer existência. Da nossa existência, que é fugaz por definição e por necessidade. As coisas que realmente valem a pena terminam. A sua finitude é condição fundamental da sua importância e... da sua beleza.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Resoluções de Ano Novo

Esperar pelo sol, lidar com a factura, patinar no silêncio, chegar a tempo.
Ir a Beja comer uma sericaia.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Questiúncula

Gente empenhada no bem comum, portadores da indignação partilhada, que estais ali entre os brandos agitadores de rua e a pequena burguesia estabelecida, sofredores em silêncio, amortecedores da nação, donos dos votos oscilantes... estais preparados?