Os aviões sempre exerceram sobre mim um efeito analgésico e euforizante. Talvez em consequência da rarefacção do oxigénio, a não ser que seja o facto de voar a vinte mil pés de altitude que me transmite a inebriante ilusão de me encontrar fora do alcance das contrariedades e das preocupações terrestres. Refastelado no assento, de cabeça apoiada no vidro da janela, apalpo-me por dentro e questiono-me. Aos vinte anos, não temos coração. Julgamos que temos; estamos convencidos de que fomos amaldiçoados com uma coisa sagrada, inchada, que estremece ao ouvir os nomes que adoramos, mas não é um coração, porque ainda que abdique de tudo no mundo - da mente, do corpo, do futuro, até da ultima hora solitária que tem - não se sacrifica a si próprio. Não é um coração, aos vinte anos, é uma rainha gorda que murmura na sua colmeia.
Quando é que nos nasce o coração? Quinze, vinte anos anos depois de precisarmos dele?