Às vezes amar uma pessoa não é o mais importante, mas sim o serviço que se presta em prol da serenidade do seu espírito. E a verdade é que se assim não fosse, a sua alma ter-se-ia disperso.
terça-feira, 26 de março de 2019
segunda-feira, 25 de março de 2019
Oração pelos choramingas
Hoje em dia pergunto-me, Senhor, se os que choram alguma vez chegam a acreditar verdadeiramente na firmeza dos alicerces da nova vida que estão a tentar construir para si. Parece certo que querem acreditar, pelo menos não querem não acreditar com uma intensidade que os impeça de estabelecer uma ligação entre o desmoronamento do mundo à sua volta e a iminente destruição dos seus próprios sonhos. Olhando para eles, choca-me o poder das vendas que têm nos olhos - tão absolutos são, em retrospectiva, os portentos do desastre que se avizinha.
quinta-feira, 21 de março de 2019
Pintar Março
Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma sexta-feira. Estamos em Março. Desta vez, tal como a Primavera, veio antes do tempo.
De repente dou por mim a observar um ser distante, mas que sorri e me induz pensar que está apenas a entrar noutra onda. Todavia continuo com a certeza de que os seus lapsos não são apenas aqueles lapsos característicos dos distraídos, mas sim uma luta contra uma corrente que a puxa dentro de si, e que o seu sorriso contém o medo de vir a cair nas suas próprias profundezas, nas quais ficaria encurralada e sem poder respirar. Neste momento o meu desejo era servir-lhe de âncora, sem, no entanto, ser vulgar ao ponto de a fazer saber que esse era um papel que sentimos que ela precisava que alguém desempenhasse. Descobri que a melhor forma de o fazer é chegar quase a tocar-lhe - pôr a mão em cima da mesa, digamos que o mais perto possível da sua sem chegar a estabelecer contacto - e depois esperar que ela se aperceba da minha presença física, estremecendo o corpo como se acordasse de um naufrágio, reduzindo assim a distância entre as nossas mãos com uma pequena caricia ocasional. É provável que este sentido de protecção inviabilize a tentativa de um beijo. Que seria, por ventura, outra forma de fundear aquela embarcação.
Na outra mão tenho a paleta e o pincel. Limpos. De que cor sãos os olhos da Primavera?
De repente dou por mim a observar um ser distante, mas que sorri e me induz pensar que está apenas a entrar noutra onda. Todavia continuo com a certeza de que os seus lapsos não são apenas aqueles lapsos característicos dos distraídos, mas sim uma luta contra uma corrente que a puxa dentro de si, e que o seu sorriso contém o medo de vir a cair nas suas próprias profundezas, nas quais ficaria encurralada e sem poder respirar. Neste momento o meu desejo era servir-lhe de âncora, sem, no entanto, ser vulgar ao ponto de a fazer saber que esse era um papel que sentimos que ela precisava que alguém desempenhasse. Descobri que a melhor forma de o fazer é chegar quase a tocar-lhe - pôr a mão em cima da mesa, digamos que o mais perto possível da sua sem chegar a estabelecer contacto - e depois esperar que ela se aperceba da minha presença física, estremecendo o corpo como se acordasse de um naufrágio, reduzindo assim a distância entre as nossas mãos com uma pequena caricia ocasional. É provável que este sentido de protecção inviabilize a tentativa de um beijo. Que seria, por ventura, outra forma de fundear aquela embarcação.
Na outra mão tenho a paleta e o pincel. Limpos. De que cor sãos os olhos da Primavera?
terça-feira, 19 de março de 2019
Eles
Eles olharam por eles com tanto cuidado, quando eram pequenos, ansiosos por não perderem o seu primeiro grito, o seu primeiro passo, a sua primeira palavra, nunca tiraram os olhos deles. No entanto, eles não cuidam deles. Eles têm de enfrentar o fim no meio da solidão - mesmo os que vivem com eles morrem em solidão - e raras vezes tomam nota dos seus últimos marcos importantes: o último grito, antes da morfina começar a fazer efeito, os seus últimos passos, antes de deixarem de conseguir andar, a sua última palavra, antes da sua garganta ficar selada.
Como é que eles se perdoam a eles próprios? A ingratidão lê-se na segunda face da medalha.
Como é que eles se perdoam a eles próprios? A ingratidão lê-se na segunda face da medalha.
segunda-feira, 18 de março de 2019
sexta-feira, 15 de março de 2019
Milú
Apesar do vento gelado abriu a janela, subiu ao peitoril e, sem reflectir, sem decidir, sem nenhum drama ou sofrimento, abriu os pedipalpos bem esticados. Então, só com um pequeníssimo "ai", atirou-se no espaço, num voo picado como aquele aracnídeo já não o podia fazer. A sua densa escópula negra ainda se agitou numa lufada de vento, como uma asa frustrada. Depois recolheu-se, e cobriu-lhe inteiramente as quelíceras quando ela chegou ao chão.
quinta-feira, 14 de março de 2019
Elisa
O seu homem dorme a seu lado. Elisa gosta de acordar no meio da noite e sentir o seu calor, escutar a sua respiração, passar os dedos na sua boca entreaberta. Às vezes, a dormir, ele apalpa-a ao de leve como que para ter a certeza que ela está ali. Ou murmura alguma coisa nos entressonhos. O nome de outra mulher.
Elisa sorri no escuro.
Lá fora algo se move no jardim em torno da casa. Talvez uma ave nocturna. Talvez apenas o vento a agitar os ramos dos abetos, ou apenas o silêncio -- que quando é profundo vira lamúria. Elisa aconchega-se mais no corpo do seu homem e fica abrigada. É esse o seu lugar no mundo.
terça-feira, 12 de março de 2019
Perscrutação escopofílica
Uma vez que a tiveram como primeira amante a domina-los, por outras palavras; o aconchego exacerbado das suas mães, bem que podiam no resto das suas vidas sentirem-se atraídos por mulheres igualmente fortes e capazes de forjarem vidas autênticas e que os induzissem a fechar as portas que vão deixando para trás, a saírem daquele pessimismo liberal, a despirem a capa do rapsodo da desgraça e do amor perdido. Mas não. Há sempre um testo para uma panela. É incrível!
sexta-feira, 8 de março de 2019
Não gastaremos o tempo, ele nos gastará
Nos blogs, como na vida, a cada passo um homem pensa que a sua história já está terminada. Tamborila-se os dedos sobre o teclado e deixa-se escapar um suspiro. Fica só a faltar o fecho, uma frase que possa marcar um final adequado. Segundos depois um sorriso cruza-nos o rosto ao mesmo tempo que escrevemos:
- Continua.
"e espero estar agora mesmo a escrever,
em verbo arcaico indefectível cerrado,
um êrro absoluto,
um êrro escorchado vivo: vós sois o sal da terra,
vós que escreveis e enviais cartas a cada um e a todos
– a mão do mundo, a música, as cartas derradeiras
e os sobrescritos sem destinatários"
"e espero estar agora mesmo a escrever,
em verbo arcaico indefectível cerrado,
um êrro absoluto,
um êrro escorchado vivo: vós sois o sal da terra,
vós que escreveis e enviais cartas a cada um e a todos
– a mão do mundo, a música, as cartas derradeiras
e os sobrescritos sem destinatários"
quinta-feira, 7 de março de 2019
Por linhas tortas
Parecia que tudo tinha desabado de repente. Não passara nem sequer um minuto que ele lhe batia e gritava violentamente e agora estava ali, teso e vazio, sobre o chão da sala. De pé, imóvel, encostada ao aro da porta abraçava a almofada e esperava que alguém aparecesse e rompesse aquele silêncio horrível. Quando chegaram todos e tentaram reanima-lo, deu um passo atrás em direcção ao corredor, apertou a velha almofada contra a sua cara, limpou a única lágrima que derramara e disse em voz baixa: "eu nunca te gritei, incompetente".
quarta-feira, 6 de março de 2019
Quarta-Feira de cinzas
Ontem, foliões. Hoje, como que saídos de dentro de um livro. E nesse livro, já se sabe, o mundo é limpo. É um mundo calmo, lento, apesar de sem regras e sem tréguas. Não há noites comparáveis de tão requebradas, mansas e ternas. Todas as noites ali, possuem, no seu bojo, uma languidez latente, que frequentemente explode. É um reino de silêncio, de mornas cumplicidades. Por vezes um reino de algum alarido, contido, um reino de mudas catástrofes. Ali as pessoas não se preparam para a felicidade, e os dias giram sobre si mesmos na mansidão da ternura, na aproximação que conduz à temperança.
É de crer que ali a beleza tenha o poder de opor resistência à agressão. E não é que me agrade sobremaneira o caminho marcado, áspero, que deixa cicatrizes, lacerações, despojos, restos profundos e fétidos do mundo real. Mas onde está o fio residual dessa beleza, nestas personagens que foram sonegadas à realidade que não dispõem?
sexta-feira, 1 de março de 2019
Cimeira
E quando os ruídos exteriores já haviam sido neutralizados pelo fecho das espessas janelas da sala, coloquei a voz umas oitavas acima e cortei o silêncio tumular: "Bom dia minhas Senhoras e meus Senhores. Atenção, por favor. Temos de encontrar uma solução alternativa..."
Quarenta e dois olhos examinaram o ar. Mas por escassos segundos. Voltaram todos ao mesmo: olhos quase divinatórios, reflectindo dúvidas e pensamentos que têm de conduzir a decisões rápidas; olhos com riachos de sangue, fatigados; olhos míopes e astigmáticos, uns bem pintados, outros mal pintados; olhos - quarenta e dois olhos - e mais alguns, subalternos e periféricos que comunicavam entre si através de gestos discretos e de palavras de valor iniciático cujo secreto sentido só eles mesmos entendiam e perfilhavam. Olharam-se muitas vezes, de uma mesa para a outra, mas não se encontraram. O embaraço da escolha, solidarizou estes campeões do silêncio meditado.
Agora, já noite feita, de regresso a casa, circulo na marginal norte do rio Douro e observo as cicatrizes da urbe em todo o seu esplendor.
Quarenta e dois olhos examinaram o ar. Mas por escassos segundos. Voltaram todos ao mesmo: olhos quase divinatórios, reflectindo dúvidas e pensamentos que têm de conduzir a decisões rápidas; olhos com riachos de sangue, fatigados; olhos míopes e astigmáticos, uns bem pintados, outros mal pintados; olhos - quarenta e dois olhos - e mais alguns, subalternos e periféricos que comunicavam entre si através de gestos discretos e de palavras de valor iniciático cujo secreto sentido só eles mesmos entendiam e perfilhavam. Olharam-se muitas vezes, de uma mesa para a outra, mas não se encontraram. O embaraço da escolha, solidarizou estes campeões do silêncio meditado.
Agora, já noite feita, de regresso a casa, circulo na marginal norte do rio Douro e observo as cicatrizes da urbe em todo o seu esplendor.
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019
Anonymous
O blogger, tal como o vivente, não possui face. E ignoram que a face de quem escreve, assim como a de quem vive, é a que se estende, é a que se exprime pelas palavras de que se serve, que a face de quem escreve é, antes de mais, sobretudo, a face dos outros. A face de todos. E que a face de cada um é construída com opções, divisões, favoritismos, crenças, disparidades e paranóias.
Em Itália ─ onde tenho passado umas temporadas: oh pátria minha ─ insistem tratar-me por Giorgio. Eu, alienado que sou, não me canso de os corrigir: Signor Giorgio. Signor Giorgio, per favore. É que, seja em que canto do mundo for, faz toda a diferença.
Em Itália ─ onde tenho passado umas temporadas: oh pátria minha ─ insistem tratar-me por Giorgio. Eu, alienado que sou, não me canso de os corrigir: Signor Giorgio. Signor Giorgio, per favore. É que, seja em que canto do mundo for, faz toda a diferença.
terça-feira, 26 de fevereiro de 2019
Canção de engate
O passado é uma coisa da qual somos prisioneiros. Podemos fazer com o passado exactamente aquilo que desejamos. O que não podemos fazer é ─ afundados num sonho de imagens quietas ─ alterar as suas consequências.
Vamos fazer o passado juntos?
Vamos fazer o passado juntos?
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019
Trama fina
Senta-se erguendo o busto, depõe as mãos, não as coloca: depõe-as. E as mãos também falam: nem antigas nem fatigadas. Mãos em pleno voo. A sublinhar as palavras com esse toque de gestos. Gestos displicentes, subtis e amenos que se tornam quase imperceptíveis. Pressinto que, para lá da disponibilidade visível, procura enviar-me para uma certa contensão. Contensão. Não contenção.
Náusea
Este tipo de episódios são coisas gastas, vistas e inúteis; e pessoas arranhadas, tristes, derrotadas, amargas e perplexas são habitualmente resumidas e encerradas num comentário de pressurosa solidariedade, em caixa baixa com letra minúscula e arredondada de jornal diário. Não fujo à regra: mete-me nojo.
terça-feira, 19 de fevereiro de 2019
Método indutivo
Quem ousa defender este ultraje à condição humana?. Quem, alguma vez, vai resgatar, pela palavra, pelos actos ou pelo silêncio, esta infâmia e esta vergonha? Isto é a eterna imoralidade da História. História essa que só pode ser escrita pelos viventes - mas viventes de quê?, de que despojos?, de que charneira? Pois se a indignação for coincidente com o testemunho, aponte-se a responsabilidade a um sistema que, para garantir os seus privilégios, estimula e cumplicia-se com um repugnante mecanismo repressivo organizado, que mais não faz que estigmatizar. Uma máquina de bestialização articulada em nome de da igualdade e, alegadamente, contra a discriminação. Haja bom senso. E já agora bom censo.
sábado, 16 de fevereiro de 2019
Fevereirada
"Há muito tempo que não fazia isto", disse ela quando voltou a falar. E foi tudo o que disse e disse-o numa voz segura, embora baixa. Porém, voltei a pressentir - ainda mais claramente - a brecha dentro dela; e isso evocou em mim uma ternura irreconhecível. Quando nos levantamos para irmos embora, ofereci-lhe o meu braço e ela aceitou-o, sorrindo. Depois, começamos a caminhar, deixando a praia para trás. Lembro-me nitidamente da sensação da pele dela, fresca e macia, sobre a minha. Nunca tínhamos estado em contacto por um período de tempo tão prolongado; a sensação de que o corpo dela era tão forte e no entanto pertencia a alguém tão frágil permaneceu comigo por muito tempo.
Hoje tive uma sensação estranha; senti-me em casa. Talvez isso se deva ao facto de ter vivido quase sempre uma existência transitória - mudando de dormitório para dormitório - e nunca tenha ansiado pela natureza instalada num único poiso, talvez se deva àquele terraço - um ninho de águias privado com vista para o mar, ou talvez se deva ao facto de estar uma manhã gloriosa de Fevereiro com um vento agreste do Atlântico que faz enfunar as árvores e as nuvens correr pelos céus. Fosse por que razão fosse, senti-me em casa.
Hoje tive uma sensação estranha; senti-me em casa. Talvez isso se deva ao facto de ter vivido quase sempre uma existência transitória - mudando de dormitório para dormitório - e nunca tenha ansiado pela natureza instalada num único poiso, talvez se deva àquele terraço - um ninho de águias privado com vista para o mar, ou talvez se deva ao facto de estar uma manhã gloriosa de Fevereiro com um vento agreste do Atlântico que faz enfunar as árvores e as nuvens correr pelos céus. Fosse por que razão fosse, senti-me em casa.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019
Cognoscitivos
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019
Sem foto de pouco vale...
... mas do mesmo modo que a grande escritora e poetisa polaca Wisława Szymborska -- em referencia à "Leiteira" de Johannes Vermeer -- dizia que enquanto aquela mulher do Rijksmuseum, em quietude pintada e concentração, dia após dia, não verter o leite do jarro para a vasilha, o Mundo não merece o fim do mundo, eu digo o mesmo do nascer do sol que presenciei esta madrugada: enquanto uma luz destas iluminar o universo, os dias não merecem o fim dos dias, os homens não merecem o fim dos homens.
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