terça-feira, 23 de abril de 2019

O homem-livro


"Agora ajude-me a descarregar os livros, por favor - disse-lhe Kien sem mais preâmbulos, assombrado com a sua própria ousadia. Para evitar qualquer pergunta capciosa, tirou da sua própria cabeça uma pilha de livros e passou-a ao anão. Este recebeu-a destramente entre os seus compridos braços e exclamou: - Ena tantos! Onde quer que os ponha?"

__Elias Canetti in Auto-de-Fé

Acabou a reflexão, acabou o jejum, voltai ao pecado

Cantarolai, vesti os linhos, longas saias dançantes, blusas justas, cabelos soltos ao vento, corpo ofertado ao luar. Distribuí beijos, caricias ao acaso. Sabei que o amor é um fluido que circula de um ser para outro fazendo desvios, é generoso e perde-se no caminho, pousa sobre corações solitários e deixa neles a sua marca, antes de florescer naqueles que elegeu. Ó pecadores, voltai ao pecado.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Sexta-feira Santa

Naturalmente Deus é apenas uma ficção da imaginação humana. Mas também é, por ventura, a sua invenção mais galvanizadora. Uma crença sem a qual a humanidade se sentiria perdida. Uma ficção sem a qual tudo o que restaria seria uma espécie de trivialidade virtuosa, no máximo, ou, na pior das hipóteses, e muito mais provável, uma queda ainda mais miserável na fornalha da ganância desmedida, da vulgaridade e do egoísmo ainda menos esclarecido; ou seja, aquilo que se define por Inferno - outra invenção. Creio que uma geração humana em cada duas ou, pelo menos, os seus supremos sacerdotes, perceberam a necessidade da existência desta ficção. E acredito que o problema é que a humanidade não compreendeu isso. Ao matar Deus, destruí a criação mais impressionante, mais afirmativa e a mais imaginativa da espécie humana. Fez, se quisermos, uma lobotomia colectiva. E o pós-lobotomia tem sido uma era amorfa, carregada de estupidez e mesquinhez.
Deus nunca existiu, mas não havia necessidade de o matar.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

A paixão segundo Tétisq

O que existe é um momento de desprendimento durante o qual se aclara o horizonte com cores impensáveis; a isto segue-se uma sensação de euforia por finalmente nos termos libertado, o mundo parece novo, aberto, colorido, como se o víssemos pela primeira vez; depois, vem o inevitável período da dúvida, o desesperado e sombrio recuo do arrependimento; só mais tarde, depois de as emoções terem retrocedido, somos capazes de ver com equanimidade a aberração cromática onde estivemos metidos.

terça-feira, 16 de abril de 2019

Paixão

A exacta diferença entre paixão, digamos assim, e adoração não interessa grandemente. Não interessa saber se me sinto enfeitiçado ou deslumbrado. Escrever "mon amour" ou "amore mio" em vez de "caso amoroso" não passa apenas de uma forma afectada de expressão. O que interessa de facto é saber que "paixão" é apenas uma palavra que nos permite descrever todo o espectro de cores que vai desde o rosa chã ao azul celeste, passando pelo preto, naturalmente. Isso é que importa.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Guerra dos tronos

Maria João é uma mulher pálida e sem viço. Anémica e caseira, à imagem dos personagens de romances anglo-saxónicos. Está morta. Ninguém a matou e não nasceu morta. Foi morrendo aos poucos estupidamente, como morrem as flores baratas. Ela já não é nova, mas foi-o.
João Maria nasceu velho. Nunca está contente, nunca está aborrecido. É um homem alto, seco, louro que vive afogado na dúvida sacramental. Um homem à procura de asilo nos braços de uma mulher; um homem de anseios irracionais, atormentado por um síndrome característico da infância. Tenta a todo o custo fugir da história da sua própria história - uma solene e glacial farsa. 
Embebidos nas suas infelicidades secretas, tem dias em que sentem um aperto no coração, uma vontade fina que lenta e insidiosamente se vai-se espalhando pelos seus peitos. Estão presos nas malhas da tristeza. Há um turbilhão de deboche no mar morto dos seus corações. Mas o prazer é perigoso. O dever sim, ainda é tranquilizador. Há um modo a observar em cada família, basta consulta-lo, ilustrar-se a seu respeito e seguir o sulco cavado pela história ancestral.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Buraco negro

Fizeram amor com uma intimidade física que nem um nem outro alguma vez havia experimentado. O corpo dela já não recusava o dele. Ele fechou os olhos e os seus olhos fechados viam-na a ela. Os músculos dela, pronunciados pela magreza, e a frescura e macieza quase inanimada da sua pele reclinaram-se sobre ele expondo os seus peitos ao toque. A entrada entre as suas pernas estava molhada e dilatada mas, ao mesmo tempo, estranhamente rígida; fazendo lembrar - contra a sua vontade - uma ferida, conferindo ao seu sexo uma tonalidade violenta apesar da suavidade com que tentava movimentar-se. Sentiu o seu cheiro. Sentiu a sua respiração trepar dificultosamente das entranhas. Perto do fim, ela estremeceu - lamentosamente, quase mortalmente e o seu estremecimento desencadeou o dele. Sentiram-se simultaneamente saciados e envergonhados.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Cuna

Sim, era inebriante. Isto é o que, olhando para trás e de uma forma reconhecidamente prolixa, eu penso da grande cidade. A grande cidade tornou tudo possível para mim. Mas não me fez, não podia ter feito, esquecer outras coisas tais como quanto gosto do arroz de ervilhas de quebrar aqui, nesta minha terra natal, cozido o tempo suficiente para adquirir esta cor rica e esta textura solta. Vou levar para o Fiodor.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Omniscientes ou observadores, pouco importa

Não é possível narrar sem nos contradizermos. Vivemos presos do calculo e, por isso, contamos verdades enviesadas. Calculamos e erramos com semelhante frequência, porque com frequência esquecemos que os outros calculam como nós e que os seus cálculos não coincidem necessariamente com os nossos. Nem sequer os nossos cálculos sobre um mesmo assunto são coincidentes. Cada vez que escolhemos um rumo e não outro, deixamos para trás partes de nós mesmos, e cada vez que contamos construímos uma história parcial onde essas possibilidades que demos de lado não aparecem sem antes serem convenientemente modificadas. Anulamo-las ou diminuimo-las ou, se o que pretendemos é lamentar-nos, empolamo-las outorgando-lhes uma importância que não tiveram.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Não é o Facebook, não é o Instagram

O que está a matar os blogs é a fria lubricidade com que os bloggers se estão a despir.
Penitencio-me.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Inanidade

Há quem diga que as casas têm alma. Há quem diga que quando muito, têm memória. A
o longo dos corredores, no acaso dos compartimentos, no espelho da casa de banho, nas portas entreabertas, distingo por vezes, e sempre fugazmente, aquilo que poderá ter sido a família que ali habitou. Ainda ontem à noite, enquanto me entretinha no restauro de umas poltronas velhas e que foram resgatadas a uma casa também ela muito antiga, dei por mim a imaginar as noites, quando apenas subsistia o ronco de uma borrasca ou o sibilar de um vento mau, sou remetido a um passado que não foi meu, quando a mesma borrasca ou o mesmo vento os encontrava todos juntos sentados nestas poltronas, em volta da lareira. O ruído familiar, o odor comum, o cinzento de um céu, as vozes a cochichar, as crianças que crescem, as saídas na manhã azul e os regressos na noite negra, o prado à janela, o odor quente dos pratos que aquecem em lume brando, a telefonia que graniza na indiferença de outras misérias, os anos que desfilam. 
Penso em tudo isso, embora não seja um sentimento que me pese, não são feridas minhas que se reavivam, não é uma estranha melancolia, nem uma espécie de vácuo na alma. Não sinto dor ou tristeza, mas uma estranha lassidão imprecisa. Na verdade meço o tempo que decorreu. Contemplo vidas antigas como se séculos me separassem do instante presente. Fico-me pela vacuidade de tudo isso. Na inanidade de umas poltronas meticulosamente restauradas. Embora me custe a entender o ânimo leve de quem se livrou delas.

sábado, 30 de março de 2019

Palomar

O Senhor Impontual vive um raro momento de desapego. Ninguém se apaixona pelo Senhor Impontual, o Senhor Impontual não se apaixona por ninguém. Por isso deixa-se na sublime distanciação, estende um braço, pega num livro e foge para dentro da história. Ali e acolá, sem deprecar, desata uns nós, desatravanca os dédalos interiores, toma um gole de limoncello de Amalfi, sorri por tudo e por nada. O Senhor Impontual não consegue definir com rigor o seu estado de espírito, mas não renega uma certa aquiescência. Ou falta de tesão, vá lá.

quinta-feira, 28 de março de 2019

Teresa

Que idade terá? Alguns mais que eu?...Ou talvez... menos? Talvez não. Acariciou-lhe, com o olhar, duas rugas finas que tinha nos cantos dos lábios. Mas é lindíssima, lindíssima! Era-o de facto e de uma forma um pouco andrógina, mas supremamente elegante, do tipo de mulheres bastante raras que têm pouca carne e muita classe e qualquer coisa de esbatido, de velado nos olhos. Apertava-lhe a garganta, agitava-lhe o cérebro. Nunca, nunca uma mulher lhe tinha agradado com uma força tão imediata e tão perturbadora. Um assomo. Uma vertigem. Um abismo. Mas... desconfiava, por instinto.

terça-feira, 26 de março de 2019

Sessão da Meia-Noite


"Damage" -  Louis Malle, 1992 

Com a Olvido

Avença

Às vezes amar uma pessoa não é o mais importante, mas sim o serviço que se presta em prol da serenidade do seu espírito. E a verdade é que se assim não fosse, a sua alma ter-se-ia disperso.

segunda-feira, 25 de março de 2019

Oração pelos choramingas

Hoje em dia pergunto-me, Senhor, se os que choram alguma vez chegam a acreditar verdadeiramente na firmeza dos alicerces da nova vida que estão a tentar construir para si. Parece certo que querem acreditar, pelo menos não querem não acreditar com uma intensidade que os impeça de estabelecer uma ligação entre o desmoronamento do mundo à sua volta e a iminente destruição dos seus próprios sonhos. Olhando para eles, choca-me o poder das vendas que têm nos olhos - tão absolutos são, em retrospectiva, os portentos do desastre que se avizinha.

quinta-feira, 21 de março de 2019

Pintar Março

Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma sexta-feira. Estamos em Março. Desta vez, tal como a Primavera, veio antes do tempo.
De repente dou por mim a observar um ser distante, mas que sorri e me induz pensar que está apenas a entrar noutra onda. Todavia continuo com a certeza de que os seus lapsos não são apenas aqueles lapsos característicos dos distraídos, mas sim uma luta contra uma corrente que a puxa dentro de si, e que o seu sorriso contém o medo de vir a cair nas suas próprias profundezas, nas quais ficaria encurralada e sem poder respirar. Neste momento o meu desejo era servir-lhe de âncora, sem, no entanto, ser vulgar ao ponto de a fazer saber que esse era um papel que sentimos que ela precisava que alguém desempenhasse. Descobri que a melhor forma de o fazer é chegar quase a tocar-lhe - pôr a mão em cima da mesa, digamos que o mais perto possível da sua sem chegar a estabelecer contacto - e depois esperar que ela se aperceba da minha presença física, estremecendo o corpo como se acordasse de um naufrágio, reduzindo assim a distância entre as nossas mãos com uma pequena caricia ocasional. É provável que este sentido de protecção inviabilize a tentativa de um beijo. Que seria, por ventura, outra forma de fundear aquela embarcação. 
Na outra mão tenho a paleta e o pincel. Limpos. De que cor sãos os olhos da Primavera?

terça-feira, 19 de março de 2019

Eles

Eles olharam por eles com tanto cuidado, quando eram pequenos, ansiosos por não perderem o seu primeiro grito, o seu primeiro passo, a sua primeira palavra, nunca tiraram os olhos deles. No entanto, eles não cuidam deles. Eles têm de enfrentar o fim no meio da solidão - mesmo os que vivem com eles morrem em solidão - e raras vezes tomam nota dos seus últimos marcos importantes: o último grito, antes da morfina começar a fazer efeito, os seus últimos passos, antes de deixarem de conseguir andar, a sua última palavra, antes da sua garganta ficar selada.
Como é que eles se perdoam a eles próprios? A ingratidão lê-se na segunda face da medalha.

segunda-feira, 18 de março de 2019

Bashô

O homem pára
para olhar as chorinas ao sol –
e assombra-se

sexta-feira, 15 de março de 2019

Milú

Apesar do vento gelado abriu a janela, subiu ao peitoril e, sem reflectir, sem decidir, sem nenhum drama ou sofrimento, abriu os pedipalpos bem esticados. Então, só com um pequeníssimo "ai", atirou-se no espaço, num voo picado como aquele aracnídeo já não o podia fazer. A sua densa escópula negra ainda se agitou numa lufada de vento, como uma asa frustrada. Depois recolheu-se, e cobriu-lhe inteiramente as quelíceras quando ela chegou ao chão.