quinta-feira, 16 de maio de 2019

Layer vectorial

Está fora de dúvida de que apenas gosto da periferia, das fronteiras, das orlas, dos contornos. Desconfio dos centros, das evidências.

terça-feira, 14 de maio de 2019

Azad

No local onde me encontro os paquistaneses têm umas mercearias onde gravita todo o tipo de gente à procura do improvável. Os paquistaneses são gente fleumática. Não consigo entender se a sua fleuma advém da indiferença na qual foram acantonados e à qual parecem acomodar-se. Ou serão eles, muito simplesmente, gente que não procura as histórias das outras gentes, decididos que estão em não exprimir nenhuma opinião para não afastar ninguém? Fundem-se na paisagem até se tornarem um elemento dessa paisagem, apenas um pouco mais exótica do que o resto do cenário. Usam turbante, mas a sua fisionomia castanha é impassível e pacifica. Os seus modos são elegantes e lentos. A sua falta de afecto funciona nos outros como um bálsamo de relaxamento.

Azad não é visivelmente o género de pessoa para se lançar em grandes dissertações, nem para formular extensas teorias. Guarda as suas reflexões para si próprio, jamais desejaria embaraçar alguém. Aprecio este tipo de discrição, que é a verdadeira elegância. Sou tocado por esta moderação, este pudor, que são de um homem honesto. Contenta-se em perguntar-me como tomo o meu chá. Voltamos ao silêncio. O chá arrefece na minha chávena. Azad tem movimentos lentos, seguros, delicados. Não se desgasta inutilmente. Quando acabo de tomar o meu chá, pronuncia algumas palavras a propósito do tempo, da chuva, da morrinha. Conta-me que nunca se habituou ao chuviscar permanente. Que lhe falta o sol do Paquistão. Interrogo-o para saber quando deixou o seu país. Informa-me que nasceu em Londres, que nunca pisou solo da terra natal dos seus pais, que sente a falta do que não conheceu, dessa pertença que lhe foi negada, que lhe é impossível reivindicar. Diz que é um puro produto da Inglaterra. Dí-lo sem acrimónia, mas com verdadeira tristeza. Diz que é um exilado no seu próprio país.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Da noite em que me deitei com Anaïs Nin e acordei com a Hilda Hilst

Perturbado, incerto, inquiridor não cessei de respirar, de tirar proveito de uma presença fulgurante, de um corpo que se movia a meu lado mas que insistia que o dia impediria a continuidade do êxtase, porque tudo o que se move, tudo o que flui, tudo o que passa sufoca-nos e enche-nos de angustia. 
Adormeci atolado na ideia de que não há maior erro possível do que acreditar que uma ausência é um vazio. A diferença entre os dois sentimentos é uma questão de tempo (sobre o qual eles não podem fazer nada). O vazio está antes, a ausência está depois. De vez em quando é fácil confundir os dois. Há-de ser daí que emergem alguns dos nossos desgostos.
- Ama-me na exiguidade, é tempo ainda. Ouvi, estremunhado, de uma voz vinda do lado de fora.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Palomar

O Senhor Impontual não sabe ao certo quais a razões para tal, mas quando se encontra longe de casa torna-se um homem bastante mais introspectivo, um homem que se intriga com as pessoas e com o mundo. O Senhor Impontual também não tem a certeza se o intrigam mais as pessoas do mundo ou o mundo das pessoas. O que é certo é que o Senhor Impontual, e o seu eu flutuante, está imerso num mundo desincorporado e chegado a este grau de amadurecimento sente o desejo de agradar a si mesmo, prelúdio ao prazer, mergulhar em si próprio, rodeado por uma música interior, construir um abrigo e às vezes elevar-se para observar de longe. O Senhor Impontual sente mesmo gosto em frequentar esse universo alargado de pessoa só, sem se atolar em delírios de desgaste lento, mas não deixa de se questionar: pode alguém ser quem não é?

domingo, 5 de maio de 2019

Olívia

O local onde me encontro neste momento está quase deserto. Uma senhora e um cavalheiro, seguramente italianos do norte, estão a desfrutar do magnifico fim de tarde sentados em duas cadeiras de lona já algo amarelecida. Ele parece rondar os oitenta anos e ela segue-o de perto, setenta e cinco ou talvez até mais. A senhora pediu um Belini, ele uma Birra Moretti. Dão a impressão de estar casados há uma vida inteira e sem dúvida que o estão. Tomam as suas bebidas com aquele ar condescendente de quem que já não tem pressa de coisa nenhuma e que estão tranquilos em relação aos fantasmas do passado. Parecem ter toda a certeza de que tudo está bem assim. E está.
Entretanto a voz de Omara Portuondo fez-se ouvir de alguma coluna escondida entre os bem cuidados arbustos que rodeiam o jardim. Alguém pôs um disco a rodar. Lembrei-me do meu pai que, naquela altura da sua vida, de cada vez que ouvia esta musica cantada pelo Milanés dizia que a única mulher com quem um dia voltaria a casar seria com uma que se chamasse Olívia. Eu, dou por mim a pensar o mesmo: um dia se vier a ter outra mãe também terá de ser uma Olívia. Eternamente Olívia.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Contratenor

Gostava de conseguir olhar para este tipo de situações e seguir em frente com a leveza dos que ignoram. Em vez de indagar, varrer a minha breve inquietação para debaixo do tapete. Doravante vou tentar fazê-lo, mas não sem que antes emita um pequeno sopro: estes gajos são uns filhos da puta. Todos.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Câmara escura


Sempre que regresso de um périplo, e já depois de as ter revelado, é que descubro a insigne grandiosidade das minhas películas e enfrento então três placebos absolutamente complementares: a puerilidade, o riso ensimesmado e o deslustre -- praticamente simultâneos.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Ó cronistas do erotismo e do sexo à toa

Vós que vos julgais capazes de encontrar palavras para contar o êxtase, a loucura que há em descobrir a única pessoa no mundo com quem podereis apagar o planeta, riscar o universo para aí vos instalardes solitários, carne e alma fundidos, no lugar do tempo. Absorvei uma premissa essencial que este vosso pobre leitor vos oferece graciosamente. A intimidade não se conta nem se confessa, partilha-se. Podemos ser dois, três, mas nunca estar sozinhos. Sem ninguém com quem a confrontar não há senão um saber higiénico do nosso próprio corpo, um conhecimento dos nossos desejos, manchas e vestígios nas roupas. A intimidade de si próprio e a do outro passa pelo rebuscamento de línguas e pelas secreções do corpo, pelas bocas e a saliva, pela glande e a vulva, os lábios, os orifícios. Confronto dos desejos em tempo real. Sem a carne dos outros nada sabereis de vós. Condenais-vos a nunca vislumbrar o que significa a intimidade, nem para vós, nem para ninguém, o conhecimento dela passa através dos corpos, não das palavras. Ó cronistas do sexo, à toa.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Património

Parece que afinal ainda importa comemorar, com virtuosismo, a memória e a fidelidade, a resistência e a música como alternativas à mentira e à escuridão, percebendo-se que a liberdade nunca será o paraíso perdido em que, por vezes, já nestes tempos novos, nos querem fazer acreditar.

(Sim, ainda leio o Blitz. Se é a mesma coisa? Não, não é a mesma coisa.)

terça-feira, 23 de abril de 2019

O homem-livro


"Agora ajude-me a descarregar os livros, por favor - disse-lhe Kien sem mais preâmbulos, assombrado com a sua própria ousadia. Para evitar qualquer pergunta capciosa, tirou da sua própria cabeça uma pilha de livros e passou-a ao anão. Este recebeu-a destramente entre os seus compridos braços e exclamou: - Ena tantos! Onde quer que os ponha?"

__Elias Canetti in Auto-de-Fé

Acabou a reflexão, acabou o jejum, voltai ao pecado

Cantarolai, vesti os linhos, longas saias dançantes, blusas justas, cabelos soltos ao vento, corpo ofertado ao luar. Distribuí beijos, caricias ao acaso. Sabei que o amor é um fluido que circula de um ser para outro fazendo desvios, é generoso e perde-se no caminho, pousa sobre corações solitários e deixa neles a sua marca, antes de florescer naqueles que elegeu. Ó pecadores, voltai ao pecado.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Sexta-feira Santa

Naturalmente Deus é apenas uma ficção da imaginação humana. Mas também é, por ventura, a sua invenção mais galvanizadora. Uma crença sem a qual a humanidade se sentiria perdida. Uma ficção sem a qual tudo o que restaria seria uma espécie de trivialidade virtuosa, no máximo, ou, na pior das hipóteses, e muito mais provável, uma queda ainda mais miserável na fornalha da ganância desmedida, da vulgaridade e do egoísmo ainda menos esclarecido; ou seja, aquilo que se define por Inferno - outra invenção. Creio que uma geração humana em cada duas ou, pelo menos, os seus supremos sacerdotes, perceberam a necessidade da existência desta ficção. E acredito que o problema é que a humanidade não compreendeu isso. Ao matar Deus, destruí a criação mais impressionante, mais afirmativa e a mais imaginativa da espécie humana. Fez, se quisermos, uma lobotomia colectiva. E o pós-lobotomia tem sido uma era amorfa, carregada de estupidez e mesquinhez.
Deus nunca existiu, mas não havia necessidade de o matar.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

A paixão segundo Tétisq

O que existe é um momento de desprendimento durante o qual se aclara o horizonte com cores impensáveis; a isto segue-se uma sensação de euforia por finalmente nos termos libertado, o mundo parece novo, aberto, colorido, como se o víssemos pela primeira vez; depois, vem o inevitável período da dúvida, o desesperado e sombrio recuo do arrependimento; só mais tarde, depois de as emoções terem retrocedido, somos capazes de ver com equanimidade a aberração cromática onde estivemos metidos.

terça-feira, 16 de abril de 2019

Paixão

A exacta diferença entre paixão, digamos assim, e adoração não interessa grandemente. Não interessa saber se me sinto enfeitiçado ou deslumbrado. Escrever "mon amour" ou "amore mio" em vez de "caso amoroso" não passa apenas de uma forma afectada de expressão. O que interessa de facto é saber que "paixão" é apenas uma palavra que nos permite descrever todo o espectro de cores que vai desde o rosa chã ao azul celeste, passando pelo preto, naturalmente. Isso é que importa.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Guerra dos tronos

Maria João é uma mulher pálida e sem viço. Anémica e caseira, à imagem dos personagens de romances anglo-saxónicos. Está morta. Ninguém a matou e não nasceu morta. Foi morrendo aos poucos estupidamente, como morrem as flores baratas. Ela já não é nova, mas foi-o.
João Maria nasceu velho. Nunca está contente, nunca está aborrecido. É um homem alto, seco, louro que vive afogado na dúvida sacramental. Um homem à procura de asilo nos braços de uma mulher; um homem de anseios irracionais, atormentado por um síndrome característico da infância. Tenta a todo o custo fugir da história da sua própria história - uma solene e glacial farsa. 
Embebidos nas suas infelicidades secretas, tem dias em que sentem um aperto no coração, uma vontade fina que lenta e insidiosamente se vai-se espalhando pelos seus peitos. Estão presos nas malhas da tristeza. Há um turbilhão de deboche no mar morto dos seus corações. Mas o prazer é perigoso. O dever sim, ainda é tranquilizador. Há um modo a observar em cada família, basta consulta-lo, ilustrar-se a seu respeito e seguir o sulco cavado pela história ancestral.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Buraco negro

Fizeram amor com uma intimidade física que nem um nem outro alguma vez havia experimentado. O corpo dela já não recusava o dele. Ele fechou os olhos e os seus olhos fechados viam-na a ela. Os músculos dela, pronunciados pela magreza, e a frescura e macieza quase inanimada da sua pele reclinaram-se sobre ele expondo os seus peitos ao toque. A entrada entre as suas pernas estava molhada e dilatada mas, ao mesmo tempo, estranhamente rígida; fazendo lembrar - contra a sua vontade - uma ferida, conferindo ao seu sexo uma tonalidade violenta apesar da suavidade com que tentava movimentar-se. Sentiu o seu cheiro. Sentiu a sua respiração trepar dificultosamente das entranhas. Perto do fim, ela estremeceu - lamentosamente, quase mortalmente e o seu estremecimento desencadeou o dele. Sentiram-se simultaneamente saciados e envergonhados.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Cuna

Sim, era inebriante. Isto é o que, olhando para trás e de uma forma reconhecidamente prolixa, eu penso da grande cidade. A grande cidade tornou tudo possível para mim. Mas não me fez, não podia ter feito, esquecer outras coisas tais como quanto gosto do arroz de ervilhas de quebrar aqui, nesta minha terra natal, cozido o tempo suficiente para adquirir esta cor rica e esta textura solta. Vou levar para o Fiodor.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Omniscientes ou observadores, pouco importa

Não é possível narrar sem nos contradizermos. Vivemos presos do calculo e, por isso, contamos verdades enviesadas. Calculamos e erramos com semelhante frequência, porque com frequência esquecemos que os outros calculam como nós e que os seus cálculos não coincidem necessariamente com os nossos. Nem sequer os nossos cálculos sobre um mesmo assunto são coincidentes. Cada vez que escolhemos um rumo e não outro, deixamos para trás partes de nós mesmos, e cada vez que contamos construímos uma história parcial onde essas possibilidades que demos de lado não aparecem sem antes serem convenientemente modificadas. Anulamo-las ou diminuimo-las ou, se o que pretendemos é lamentar-nos, empolamo-las outorgando-lhes uma importância que não tiveram.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Não é o Facebook, não é o Instagram

O que está a matar os blogs é a fria lubricidade com que os bloggers se estão a despir.
Penitencio-me.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Inanidade

Há quem diga que as casas têm alma. Há quem diga que quando muito, têm memória. A
o longo dos corredores, no acaso dos compartimentos, no espelho da casa de banho, nas portas entreabertas, distingo por vezes, e sempre fugazmente, aquilo que poderá ter sido a família que ali habitou. Ainda ontem à noite, enquanto me entretinha no restauro de umas poltronas velhas e que foram resgatadas a uma casa também ela muito antiga, dei por mim a imaginar as noites, quando apenas subsistia o ronco de uma borrasca ou o sibilar de um vento mau, sou remetido a um passado que não foi meu, quando a mesma borrasca ou o mesmo vento os encontrava todos juntos sentados nestas poltronas, em volta da lareira. O ruído familiar, o odor comum, o cinzento de um céu, as vozes a cochichar, as crianças que crescem, as saídas na manhã azul e os regressos na noite negra, o prado à janela, o odor quente dos pratos que aquecem em lume brando, a telefonia que graniza na indiferença de outras misérias, os anos que desfilam. 
Penso em tudo isso, embora não seja um sentimento que me pese, não são feridas minhas que se reavivam, não é uma estranha melancolia, nem uma espécie de vácuo na alma. Não sinto dor ou tristeza, mas uma estranha lassidão imprecisa. Na verdade meço o tempo que decorreu. Contemplo vidas antigas como se séculos me separassem do instante presente. Fico-me pela vacuidade de tudo isso. Na inanidade de umas poltronas meticulosamente restauradas. Embora me custe a entender o ânimo leve de quem se livrou delas.