quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Sandra

Diz-me, muito convicta, que se a vida é um rio, então não é de estranhar que só nos apercebamos das mudanças que nela ocorrem quando já estamos perdidos no mais sombrio dos mares. Um dia acordamos e nada, em nosso redor, nos é familiar. Nem mesmo o nosso próprio rosto. Diz-me ainda que o seu nome já significou filha, neta, irmã, amiga, amada, mãe. Agora estas palavras querem dizer apenas aquilo que as suas letras compõem: uns rabiscos de luzes cadentes no céu nocturno.
Está numa situação que nunca imaginou que fosse possível. É uma pessoa que nunca sonhou ser. Um esquisso impreciso, porém. E é assim, um corpo e uma alma em fuga. Queimem-me, afoguem-me, mintam-me. Continuarei a ser quem sou. Sorrindo a tudo e a todos.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Sessão da Meia-noite


"La vie D'Adele" - Abdellatif Kechiche, 2012

Com a Alaska

sábado, 16 de novembro de 2019

Retalhos da vida no campo

Esta manhã quando o sol rompeu, do céu azul caía uma chuva miúda e transparente. Em dias como este, em que o sol e a chuva se abraçam na terra, diz-se com alegria que é para festejar o casamento dos viúvos, que o céu tem destes caprichos. Hoje, porém, um silêncio triste cobre o povoado e os rostos dos seus habitantes parecem cerrados para todo o sempre.
Quem parece não se importar muito com isso é o cão de pêlo pardo que, entretido com o vento, não pára de correr e de arfar com a língua de fora. Como se a noiva estivesse presa no horizonte. 
Está mas é um frio de rachar. 

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Palomar

O Senhor Impontual, com a chegada do frio, deu conta de algum défice na sua gaveta de interiores. Então, esta manhã, dirigiu-se a uma loja da especialidade. Enquanto esperava pela sua vez de ser atendido, o Senhor Impontual foi discretamente seleccionando algumas peças de pijama e simultaneamente deliciando-se a ouvir os magníficos nomes com que foram baptizadas as cuecas, os sutiãs e demais peças de roupa intima. Caleçon, slip, string, négligé, baby-doll, strappy, sungão tudo nomes magníficos. Sutiã e cuecas! Tem algum jeito? 
O Senhor Impontual até nem desgosta daquela posição de asa-delta, de busto direito e omoplatas salientes, que tomam os seus braços quando, a tactear nas costas, desapertam o sutiã. Nunca gostou foi do nome sutiã. Sutiã! Parece uma expressão de condutor de camião de trabalhos na via publica. 
É aflitivo quando depois de terem feito deslizar as rendas leve como um lagarto que chega ao seu buraco e as espessas borrachas, embebidas naquele odor característico, traçam um X nas costas e elas fazem rodar o sutiã para apanhar a abertura na frente, entre os seios, e desaperta-lo assim com mais facilidade. O Senhor Impontual acha inestético, mesmo vagamente inquietante, o breve instante em que, passado para as costas e de certa forma liberto das suas libras de carne, o sutiã, curtinho, fica pendurado através da sua coluna vertebral, como a albarda de um burro ou as protuberâncias de um camelo a morrer de sede. Ainda se fosse um strappy. Agora um sutiã!
slip, ou mesmo string, é diferente. Presta-se bem ao minúsculo bocado de tecido e à escorregadela sedosa entre as coxas. É até bonito contemplar com algum divertimento e ternura a maneira como se libertam do slip: inclinando-se primeiro para libertar uma perna, saltitando sobre o outro pé, deixando em seguida o bocadinho de tecido descer em hélice com a ajuda do pé ao longo da outra perna e, projectando final e bruscamente esta perna para a frente atirando o string ao acaso o mais longe possível. Tal como um passarinho com a asa ferida, agitada, palpitando, ele ali fica, na posição e no sitio exactos da queda, a agonizar até à manhã seguinte em que volta para a gaiola, debaixo da saia.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Pintar Novembro

Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma quarta-feira. Estamos em Novembro. Sabe que será severamente condenada pelo júri popular, sempre seguro da sua retaliação e dos valores que considera defender. A negligência socialmente criminosa prevalecerá, mas se puder sustentar o homicídio, não se privará disso. O júri popular não dispõe de qualquer prova de crime, mas no seu espírito, esse acto não suscitará dúvida nenhuma.
Fixo-a sem a julgar. Sei que nem é culpada nem inocente. Franzi ligeiramente os olhos. Não a absolvo. Não é a minha função. Não a amarguro. Não é o meu género. Franzi novamente os olhos. Não a interrogo. Trata-se de outra coisa que não a simples discrição. Outra coisa que não o tacto, também. Não espera de mim nada a não ser o meu silêncio e a minha presença, essa força natural.
Conservo a recordação exacta, física, da sua libertação. Foi como aliviar-se de um peso, acabar com o que não deveria ter sido, por-se em situação de dominar o seu destino, enfim. Há pessoas que levam tempo a tornar-se naquilo que são, naquilo que pretendem ser. Ela é uma dessas pessoas.

O retrato é perigoso. Preciso de fingir que sonho com o seu modelo. Apresso-me a impregnar tinta na tela. Respondo mesmo antes de a imagem emergir. Tenho ideias em catadupa. Esta viscosidade insistente não ajuda na secagem que se queria rápida.

domingo, 3 de novembro de 2019

Dos problemas dos homens e das mulheres, a verdadeira história

Enquanto lá fora a chuva e o vento, irrevogáveis, não paravam de se digladiar, começou por explicar-lhe as coisas como se ela fosse ele e ele fosse ela e não se soubesse onde acaba um e começa o outro. E dizia: é preciso rirmos muito, até sentir as costelas quase a estalar, ou é preciso chorarmos muito, até sentir que ficamos limpos e vazios, ou então é preciso ter um orgasmo, que visto de certo modo também é uma forma de nos lavarmos, esvaziarmos, endireitarmos as costelas e sairmos dali, daquilo, de nós.

sábado, 2 de novembro de 2019

Finados

Há pessoas que morreram, porque a vida era a única coisa que tinham. Outras morreram sem nunca terem tido uma vida. Outras morreram e deixaram muita vida.
Mas, vendo bem, qualquer pessoa que morre torna-se imortal porque já não pode voltar a morrer.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Dual Chip

Em tudo vida (até nos blogs!), da mesma maneira que és responsável pelas tuas palavras, deves ser responsável pelo teu silêncio. É preciso ficar vigilante. Das palavras, depois de as pronunciares, já não te podes queixar. Foi da tua boca que saíram essas palavras inimigas, essas palavras que te desfiguraram. De igual modo, o silêncio está no ar porque tu permitiste que lá esteja e, pouco a pouco, ocupe tudo em redor. Ocupe mesmo o teu lugar e cale em teu nome. E tu ali sentado, trajado de pedra, enorme silhueta quieta sobre a praça pública, como uma estátua recalcitrante, todo feito de ventos.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

A última palavra

Quantas e quantas vezes damos connosco a escutar a nossa voz perdida. Fala para si mesma, sem se lembrar de procurar do lado de fora, no longe dos espaços. Pronuncia palavras locais, onde há um desconforto no corpo, sem olhar para um além, para uma outra terra, para outras horas. Por vezes as contingências dessas palavras propõem uma involução no tempo - descida vertical da memoria presa de recordações, de rostos, de entidades queridas, de ritos amarelecidos. O tempo da história de cada um, para aí tentar encontrar as causas esquecidas dos males insidiosos e da felicidade palpável e impalpável. Revisita e questiona o tempo passado perdido no espaço do presente que ainda frui, intensamente. Quando a primeira pergunta deveria incidir sobre isso mesmo: "o que é que eu fiz"? Precedido da resposta: "pouco". Como última palavra. 

Uma cisma claramente subtraída de uma dissertação feita num jeito muito mais manso.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Da euforia da simplicidade


 

É incrível como num dado momento estamos aqui e no outro já estamos lá atrás. A mim, chega inclusive acontecer-me, aquando do último andamento, vir de lá de trás e ultrapassar a orla do tempo. Não é fácil, mas é simples.

domingo, 20 de outubro de 2019

Da calculadora de probabilidades

Outra coisa sem jeito nenhum,  é acharmos que quem nos conheceu os dédalos interiores teria de nos amar para sempre.

sábado, 19 de outubro de 2019

Nostomania

Hoje apetece-me suster e ignorar o universo e os seus mistérios: a chuva e o vento, a luz e a escuridão, a noite e as estrelas, os deuses do mal e os anjos da guarda e... apaziguar o corpo, ouvir musica, dançar, evocar o passado e o presente, sorrir deles com indulgência, deixar-me abraçar, porque além do talento de inventor de mundos, é preciso saber fazer cantar a consciência.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

ADN

Desde a bactéria à reprodução sexuada o vivente não cessou de se diversificar, de se adaptar, reagiu ao granizo, à geada, ao diluvio, inventou códigos para comunicar, barcos e outros meios para viajar, pilhou a natureza, oprimiu os animais até os reduzir à escravidão em massa nos recintos onde os cria em série, conquistou as florestas e os oceanos, inventou satélites que num ápice fazem as suas melhores imagens correr o mundo, mas sem jamais conseguir ficar em paz com o seu único desejo. O desejo de ser amado da maneira que quer ser amado e não do modo como os outros o podem amar. 
O vazio perturbará o seu espírito, o seu coração e o seu corpo até aos confins do tempos.

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Palomar

"Sfortunatamente, le donne usano il sesso per ottenere l'amore."
Os italianos quando falam gostam muito de introduzir citações para alavancar a sua oratória.
O Senhor Impontual está de novo em Treviso e acaba de ouvir numa conferência sobre conservação e restauro do património arquitectónico a utilização destas palavras em tempos saídas da boca de uma das mais belas e elegantes mulheres do mundo, se não a mais bela. E questionou-se: a que propósito? o que está aqui a fazer a Theron?

Mas a beleza é uma história que se inventa. Isso não existe. O Senhor Impontual, por exemplo, é um ser medíocre, desses que não se distinguem no meio da multidão, desses que não atraem a atenção. O que aliás não é grave, e o Senhor Impontual, acomodou-se.
O Senhor Impontual jamais deteve as mulheres bonitas. Nunca foi a favor do movimento do mundo contra o poder das mulheres bonitas. Viu o perigo que trazem com elas, a ameaça que por vezes representam. Aprendeu que estão aptas a devastar tudo à sua passagem se não as travarem. Deve perdoar-se-lhes, sem dúvida, porque não sabem o que fazem. Enfim, nem sempre. Na realidade, não possuem uma ideia precisa da sua força. Se avaliam, muitas vezes com grande rigor, o seu poder de sedução, a sua habilidade para levarem os homens a ceder, se conseguem chegar a um conhecimento intimo dos seus trunfos, das suas armas, não medem inteiramente aquilo que são capazes, os danos que são susceptíveis de causar. É esta última ignorância que as salva, evidentemente. Porque, no fim, é impossível querer-lhes verdadeiramente mal. Como se, nos desastres, lhes fosse reconhecido o beneficio da irresponsabilidade.

Posto isto, o Senhor Impontual saiu da conferência absolutamente convencido de que o aspecto principal da preservação de um edifício é a sua história e não a sua beleza. Nem que para se atingir tal desiderato seja preciso ficar quieto.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Estação


Nos tranquilos contérminos do tempo, à medida que o Outono avança, lentamente deixo-me consumir nos seus braços.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Ressaca

Há décadas que, em noite de eleições, me fascinam os discursos das vitórias. No dia seguinte, os discursos dos empates ainda me parecem mais impressionantes.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Voto compulsório?

A analise do tecido politico que por estes dias se propõe tomar as rédeas do país é de tal forma óbvia, fácil e contundente que a sua simples leitura é suficiente para se impor enquanto farsa. Não são necessárias observações minuciosas, interpretações incisivas e sinistras para inculcar o nível politico da nação. A credibilidade é uma conquista que se faz todos os dias: ninguém a oferece gratuitamente. Não é uma questão de gramática. Não é uma questão aritmética. É uma questão moral. É uma questão de carácter. Insuflar força e honra nas palavras e nas tomadas de decisão é o dever mais caro e terá de ser o propósito quotidiano de quem pretende fazer politica com responsabilidade. Não é um epitáfio. Tem de ser a bandeira desfraldada, todos os dias. 

Ora se assim não é, e atendendo a que (alegadamente) vivemos num regime de democracia representativa legitimada pela soberania popular, eu, que não percebo nada disto, ponho-me a pensar se não seria melhor respondermos com uma ida massiva às urnas de modo a que os políticos deste país sentissem, de uma vez por todas, o ónus da responsabilidade que pesa sobre eles? e por outro lado afunilar (lhes) o leque de desculpas infundadas que decorre da altíssima abstenção que habitualmente se verifica e que (lhes) serve de capa protectora?
Uma votação massiva não teria o condão de uma melhor definição parlamentar -  responsabilizando-a: quer seja maioritária ou minoritária? além de deixar a descoberto a insustentabilidade de algumas alas politicas populistas que aparecem a querer ganhar  alguma força circunstancialmente alavancadas pela abstenção?

Bom...isto foi só um pensamento. E como eu não percebo nada disto, se calhar o melhor é continuarmos, perversamente, entretidos em festas alegres e jazz. E... daqui a seis meses cantarmos a uma só voz: " eu não tenho nada a ver com isto, nem sequer fui votar".

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Volta ao mundo em cinco minutos

Em Paris eras uma dama aprisionada num espartilho fumando cigarrilha no Cabaret du Ciel. Em Berlim estavas sentada num palco da Filarmónica, abanando-te com um programa onde constava, entre outras sinfonias, a nona de Mahler. Em Amesterdão eras uma daquelas prostitutas lindíssimas que se exibem nas montras dos canais. Em Londres eras um ramo de daffodils que comprei no Columbia Market no inicio da Primavera.  Em Praga eras uma rapariga que orava no Cemitério Velho. Na reserva de Kilaguni, no Quénia, rodeada de hienas, ao cair do sol, estavas vestida de caqui como Ava Gardner no Mogambo. Em Rabat eras Saida a pôr o tempo a dançar numa noite de Ramadão. Nas ilhas gregas eras uma turista inglesa que teimava em prolongar o Verão. Em Viena simplesmente vendias tortas de chocolate na pastelaria Demel. Em Braga...passado aquele ponto em que os rostos foram atravessados por um agradável momento de calor, em que todos os músculos se relaxaram e uma alegria cósmica de textura impetuosa e contaminada de inquietação nos levou a descobrir que, sim, os beijos eram para cumprir, tornou-se impossível estabelecer diferenças entre a postura dos homens e dos cães: do encontro entre os corpos ergueram-se odores tão intensos que acabamos fundidos um no outro. Réus, culpados, mortos.

No Rio de Janeiro poderias ter sido a Garota de Ipanema gingando pelo calçadão fora, mas nunca lá estive.