segunda-feira, 20 de abril de 2020

Diário da quarentena

Aprendi que todo o homem transporta na sua alma uma rua, um bairro, uma cidade, um mar, um rio, um jardim, uma árvore, uma montanha ou um planalto, uma mulher, um amigo, uma criança, uma procissão de infinitos desencontros. São as suas pátrias portáteis e intimas, os seus modestos e pequenos mundos azuis, no interior do outro grande Mundo azul onde se desenrola o drama da espécie vivente.
Aprendi, ainda, em frente a um espelho, que o mesmo aparelho que apara a barba também corta o cabelo. Descobri que aos dez cabelos brancos que já vinham do tempo da gripe espanhola se juntaram mais dez. São agora vinte. Sou hoje um homem grisalho.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Trecento

Estamos no meio de Abril. A natureza retoma o seu fôlego e sussurra. A cidade, o campo, o sol, o mar, a ondulação, as árvores, tudo ramalha e excita a pele dos vivos para que eles se deixem invadir pela aventura do tempo. O tempo vindouro, uma aposta, aquela que desculpará o tempo passado, o tempo parado, o tempo perdido ou o transformará. O ar recheado de partículas que penetram no nariz, nos ouvidos, os odores do rio e dos jardins, a natureza a exportar os seus indícios. E nós aqui, com os linhos guardados em cómodas bafientas, à espera de sabermos se o Mundo nos aceita de novo.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Amor em tempo de pandemia

Entre a palidez e o rubor dos seus rostos perpassa uma tímida procura e um atenuado desejo. Mas logo se beijam mais e com fúria. Ele mexe-lhe nos seios, acaricia-lhe as coxas macias. Deitam-se ao lado dos juncos na margem do rio. Dolente, vagarosa, ela tira as ligas, as meias, as cuecas; mostra-lhe o sexo, ele afaga-o, as pontas dos dedos tocam-no de mansinho, docemente percorre os pêlos espessos negros e abundantes que o confinamento criou: é atraído por uma inquietação nova e muito viva, beija-o, trémulo e feliz; ela suspira, um bulir suave, estremece, solta um grito rouco quando o pénis dele a penetra, sente-se rasgada por dentro, envolve-lhe os rins com as pernas, os movimentos de ambos aceleram-se, as respirações tornam-se opressas, gemem e gritam unânimes, cálidos e majestosos: a móvel felicidade. 
Depois, uma espessa bruma subiu do rio e inundou os ecrãs. Riram-se, cada um do seu lado.

domingo, 12 de abril de 2020

Vantagem competitiva

O que está a ser admirável nisto do confinamento é a capacidade de as pessoas se persuadirem, serem honestas consigo mesmas. E quando isso acontece, elas obtém uma vantagem - o medo. Uma vantagem táctica incomparável em qualquer insurreição. As mentiras que contamos as nós mesmos é que nos tornam inconscientes. As pequenas coisas é que nos assustam. As grandes coisas tornam-nos mais fortes. A ver vamos.
Parece que foram, para aí, detidos uma centena e tal de mentirosos.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Linha da frente

Alberto é um homem alto, seco, solene e nobre. Andará um pouco acima dos oitenta anos de idade. A arca do peito é convexa e ainda imponente. Está deitado na maca como uma estátua caída, marcado por uma remotissima serenidade. Um ser maiúsculo, se assim se pode dizer. Mas os olhos... os seus olhos revertem para outras paragens, os pensamentos mergulham no caudal do tempo e o tempo também tem compartimentos, e ele sabe que à medida que o tempo passou, as trevas foram-se acumulando em seu redor.
Diz para quem o acompanha no corredor do infortúnio:
-- Chegamos à linha da frente. Um de nós vai morrer. Mas não os dois. Também eu fiz sempre o que era necessário, nem sempre o que estava certo.

terça-feira, 7 de abril de 2020

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Saida precária

O vírus caiu sobre a cidade. Pousou os seus tentáculos e impõs o ditame da rareza. Como se porventura se tramasse uma indelicadeza no mundo, os citadinos caminham mais rígidos, ombros direitos, passo rectilíneos, carregam agora o peso de uma fatalidade impensável. As guitarras eléctricas calaram-se e deram lugar a Mozart e é agora a sua perfeição silenciosa e tensa que povoa as ruas. O vírus é uma névoa que emite um som abaixo do macadame. As horas invadiram a atmosfera para aí se desfiarem mais lentamente, espessam-se e pousam as suas volutas de segundos sobre as pedras frias da calçada. Gargantas secas. Gestos comedidos. Respirações contidas. Vive-se em poupança. Crânios abrasados, mãos suadas cobertas, amolentados os desejos, os pensamentos revestem-se de desinfectante e de sabonária rosa, cada qual segue como um ladrão à procura de uma nesga de terreno onde se refugiar na espera de uma nesga dois metros mais adiante. Há uma chapa absoluta que tampona o território, o vírus abre valas no asfalto. Quem não for rápido e expedito será estraçalhado.
Em casa, na televisão, o cenário é o mesmo. Mas deixem-se estar, que pelo menos tendes onde vos sentardes a uma distância de relativa segurança.

domingo, 5 de abril de 2020

Domingo de Ramos

Quando Jesus voltou a Jerusalém montado num burro, o que francamente não foi um acto de grande astúcia da sua parte.

terça-feira, 31 de março de 2020

Adenda à homilia do Papa Francisco desta tarde

O tempo é de pandemia. Brevemente estaremos em plena crise económica e social. Como sempre, estamos todos no mesmo barco. 
Uns de colete salva-vidas outros não.

domingo, 29 de março de 2020

Itália

Itália - digo eu. Mas não o digo, dez dias depois, como se convocasse uma provisão de sentidos ou fizesse emergir uma submersa reserva de memórias e frustrações. Digo: Itália em voz suave, como se ao eco da palavra em si apenas solicitasse a recíproca tolerância. 
Estou ocioso e só: unos sentimentos de segurança e de agasalho aquecem-me a alma. Sou agora um homem de céu sereno e vida mansa. Já não procuro distinguir o justo do injusto: acato as coisas sem reservas, tal como são; admito-as resignado e calmo; calo a ira e a frustração com disciplina. Sentado na varanda do alpendre virado para para o mundo, com Fiodor dormitando a meus pés, tomo um copo de Serra Mãe reserva 2015 e contemplo o virar dos dias no morrer das tardes, e sei que ninguém vê duas vezes o mesmo rio. Agora há uma parte de mim mesmo que anda mais devagar e por isso prefiro ficar só: não quero atrasar os outros, que já pouco andam.
Ciao. Avanti, amici. Torno subito.

(aquilo de um post por dia até ao fim do Corona ainda está a rolar?)

sexta-feira, 27 de março de 2020

Palomar

Há gente que sabe escrever, desenhar, aplicar tinta e que consegue fazer dela o que quer. Tem olhos para captar e pintar as coisas simples e belas da vida: a luz matinal, a superfície de um espelho, o som de uma música erudita, a casca de uma maçã, a pele arrepiada, os olhos cintilantes, os ombros brancos e esculturais, peitos proeminentes. O Senhor Impontual, observador inveterado, espírito em ebulição permanente, gostava muito de ser dotado dessas habilidades. O Senhor Impontual gostava muito de pincelar, já, um retrato do Mundo daqui por três meses. Pintar Junho. Nem que fosse em tons pastel.

terça-feira, 24 de março de 2020

Desterro

Não há nada que falte no paraíso: comida, roupa limpa, jornais, colchões , guarda-chuvas, computadores, ecrãs de parede, ecrãs de bolso, sapatos, gravatas, vinhos, bijutarias, flores, óculos de sol, discos, candeeiros, velas, cães, pássaros canoros e peixes coloridos. 
E tintas, rolos, lixas e outros polidores, moveis desirmanados, antigos, antigos - verdadeiras telas em branco. E livros. E a Lady Day na grafonola interpretando majestosamente "solitude". E todas as outras figuras e línguas e alturas e pesos que povoam a manhã inverosímil em que o ( sobre)vivente celebra o terceiro dia de cárcere - essa vida nova, esse mundo novo. Esse tempo morto.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Passe-Partout

Há alturas em que a ausência é tão pesada como uma criança sentada sobre o meu peito. Noutras alturas, mal consigo recordar os traços exactos da fisionomia de quem me falta e tenho de ir buscar fotos que guardo em envelopes velhos dentro dos gavetões das cómodas. Os piores dias são aqueles em que, sem os procurar, os encontro nos sítios mais improváveis.
O tempo não cura nada, só fabrica cicatrizes... com uma habilidade sublime.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Marinheiros de água doce


Águas sombrias, rotas que se bifurcam, imagens contraditórias, o porvir, o tempo parado como se aguardássemos algo alheio que tudo mude, o vento soprando com mais força por cima da cabeça e a vela recolhida no mastro, confiados na corrente. Esperar, esperar, esperar com a esperança de que não venha uma enxurrada que nos abalroe ou que, se chegar, nos permita avançar pelas margens, protegidos dos remoinhos e dos perigosos rápidos, sem que os troncos e os destroços que arrasta nos levem na frente. Esperar, esperar, como se não existisse outra palavra, como se não houvesse outro tempo, como se não houvesse horizonte. Como mestres da impotência.

#giorno1

quinta-feira, 12 de março de 2020

Diário de Treviso, uma passeata de braço dado com Alda Merini


Os viventes também laboram de dia, quando o tempo urge sobre eles, quando falta o rumor da multidão e acontece o linchamento das horas. Os viventes, e os seus silêncios, fazem bem mais rumor que um dourado ajuntamento de estrelas.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Diário de Treviso, onde Cagnano se encontra com Sile



Lá fora, um ar frio e húmido que flutua em tons acinzentados. Do lado de dentro da noite, pendurados no cabide, os despojos da pandemia que se mesclam com os diferentes cheiros do dia: as grosserias dos convivas de trabalho, as suas diligências e a incompreensível tagarelice, os transportes, os transeuntes, a cidade, o mundo, a televisão e os seus resíduos - tudo colado à roupa como uma película aderente. Na verdade também lá estão impregnados os temores e os medos do que se não fala, mas que se podem perfeitamente agarrar com as mãos.
Isto está feio.

domingo, 8 de março de 2020

Mulheres

É tão bonito quando o seu ar se torna subitamente interrogador e inquieto. Aparece apenas por alguns segundos, essa inquietação febril. É quase incrível, a instantaneidade dessa mudança. As mulheres sentem as ameaças muito melhor que os homens. Elas vêem-nas perfilar-se. Por vezes, quando são suficientemente malignas, fazem-nas abortar. Mas estão sempre prontas a libertarem-se da crisálida, sacudir os ombros para a fustigar e depois reduzi-la a fanicos. É tão bonito! São tão bonitas!

terça-feira, 3 de março de 2020

Na noite em que dormi com Alda Merini

Entrou na calada da noite, nesse espaço de tempo que antecede o sono e em que o mais severo dos cansaços nos toma e, vencidos, a memória omnipresente fustiga-nos a consciência fazendo-nos procurar cálidas miragens de quem poderia estar ali a dormir ao nosso lado. Como se esse alguém batesse à porta para recuperar o lugar de onde tinha sido expulso e implorasse: ama-me agora que não tenho palavras para te fazer enamorar do meu silêncio.
O amor há-de ser isso. Quando o silêncio do outro ameaça no escuro.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Pintar Março

Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma Quarta-Feira. Estamos no fim de Fevereiro. Falhou Janeiro. Entrou com uma elegância intrínseca que se destaca desde logo no detalhe como se senta e olha de frente com a cabeça bem levantada. Uma beleza sólida e atraente, caracterizada por linhas limpas e essenciais, realçadas pelo grão natural da pele. 
De repente, sente-se aquele tremor delicioso que os panoramas grandiosos nos despertam. Somos simultaneamente Deus e nada. Somos ao mesmo tempo o céu e o grão de areia. Depois vem aquele matraquear surdo, uma mudança de luz -, voltamos à terra. 
Não sei lhe pinte a pose de confiança no olhar, harmonizado com a sua postura ou se lhe esboce as mãos ausentes sobre o regaço. Mãos que albergam memórias inquietas e gritam: não sou! não vou! não quero!