Em dias como o de hoje em que nos pedem que regressemos bem mais cedo do que é habitual e, ainda debaixo da luz do dia, o Senhor Impontual encontra a casa vazia, fria, triste, escura. Recolhe uns "cavacos" na arrecadação, acende a lareira lentamente e fica ali a ouvir os primeiros estalidos da lenha a queimar. Tira um copo e uma garrafa de Cognac de Charente do armário e deixa-os na borda fria da pedra que emoldura o recuperador de calor. Depois, quando o lume pega completamente, os pedaços de lenha começam a brilhar e uma chama tremulante, regular, começa a dançar por toda a sala, recolhe a garrafa e serve uma dose generosa daquele néctar à temperatura certa. Entre uns goles curtos, o Senhor Impontual acende um Arturo Fuentes, dá umas baforadas e deixa-se ficar por ali uns momentos de pé, como que a contemplar as chamas bruxuleando na vulnerabilidade da tarde pálida a ser tomada pela noite escura. Até que se senta na poltrona de orelhas alumiado apenas pela incandescência da lenha e deixa-se invadir pelas ondas sonoras do sistema nervoso e suas vibrações misteriosas.
O Senhor Impontual não se permite olhar para trás. Se bem que as atribulações do mundo nos levem o pensamento para lugares onde a vida era feita de abraços. Os mundos de ontem, agora incessantemente revisitados, magnificados, auto-embelezam-se para se converterem em quimeras. O Senhor Impontual não revitaliza firmamentos de azul celeste, não recorda amabilidades, sorrisos de boas-vindas, langores outonais. Não recorda beatitudes, tempos de espírito sereno, de calma e de saciedade. Mas o mundo de hoje e os seus habitantes mudos, a chuva, as frieiras, o medo, as tormentas da ausência, a insónia, os suores nocturnos, os despertares ancilosados, a ansiedade de um regresso, projectam o olhar do Senhor Impontual num único sentido, uma verdade antiga: a vida possui esta característica essencial, o facto de não podermos prevê-la, antecipa-la. Não adianta fazer lucubraçoes. Com a certeza, porém, de para o ano a Senhora do Ferrero Rocher voltará dentro do seu tailleur amarelo e que ainda havemos de nos voltar a aborrecer bastante uns aos outros.