quarta-feira, 19 de maio de 2021

Intifada

Quem sou eu, bem pesadas todas as coisas, para me armar em juiz impassível de civilizações tão ricas? Acabaria certamente por ficar afogado em lugares-comuns. E afinal, bem vistas as coisas, todas as civilizações assentam nesta ideia de que de um lado não há mais que uma horda vagamente humana e do outro os iluminados. A colossal e arrogante desumanidade com que é policiada essa fronteira é que é de uma crueldade absoluta. Ninguém escolhe onde nasce. Parem lá com isso. Ou atirem pedras uns aos outros.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Esmeralda

Entre as características de personalidade com que o destino a atormentou, existe infelizmente esta: pronunciar banalidades nas horas cruciais, manter-se de mármore frente às dores dos seus semelhantes sem encontrar uma palavra afectuosa que a aproxime deles, descobrir que tem um coração duro e impassível mau grado o seu desejo de ser uma irmã ou uma confidente.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Funes

Quantos iluminados, quantos artistas de uma fé em que ninguém excepto eles confiam, se humilham e varrem a serradura de quem dorme com eles, e provavelmente lhes dá de comer, desde que lhes permita crer que haja algum alento nos seus insignificantes versos; quantos que, depois de o tempo se aposentar e favorecer os sarcasmos, renunciam inclusive ao ilusório reconhecimento do silêncio desde que assim possam continuar a dedicar horas ao que já não representa outra coisa além de um pretexto falhado de esquecimento. Quantos?

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Professor Mamadu

Desci do hotel bem cedo. Fiquei de pé um instante no passeio a olhar pela rua abaixo onde teria deixado o carro, mas logo depois o avistei. Tirei uma folha de publicidade do pára-brisas: "Professor Mamadu , astrólogo, medium e grande conselheiro de assuntos do oculto", ajeitei-me atrás do volante e com pequenas manobras consegui sair do lugar apertado e entrar na rua. Tomei o caminho em direcção à ponte que me levaria para a outra margem para fora da grande cidade.
Àquela hora o tráfego era escasso e a faixa de rodagem estava praticamente vazia à minha frente. Enquanto atravessava os quarteirões imaginava as pessoas da cidade a acordarem, a espreguiçarem-se na cama a dizerem as primeiras palavras absortas umas às outras ou simplesmente a levantarem-se em silêncio, torneiras a abrirem-se nas casas de banho e os espelhos a encherem-se de rostos sonolentos.
É sempre com alivio, um agradável tremor no âmago, que entro na ponte, pressiono o botão para que o vidro baixe e inspiro fundo o ar fresco. Deleito-me a sentir a confusão da cidade, o seu alarido e movimento a desaparecer atrás de mim enquanto bato, de exaltação mal contida, com os dedos no volante acompanhando a música que a rádio me oferece.
Sair da grande cidade!
Primeiro a aceleração a fundo. Depois, sucessivamente, o caminho estreita-se, as árvores nos lados da estrada vão ficando para trás alastrando quietude. Levanto o pé do acelerador e deixo-me encher com uma funda inspiração pelo perfume adocicado. Deito uma fugaz vista de olhos para mim próprio no retrovisor, da maneira como as pessoas que conduzem distâncias longas sozinhas têm por hábito fazer, como que para se assegurarem de que continuam ali. Reparo no meu rosto. Tem uma cor saudável. Apesar da idade ir avançando, é um rosto sem rugas, apenas algumas finas linhas aparecem quando franzo o sobrolho. Passei a mão pelo cabelo grisalho e virei a cara, estudando-a, como se tentasse descobrir algo. Talvez a barba estilo pêra seja um look forte demais para mim. A verdade é que por mais idade que se atinja, nunca conhecemos ao certo o nosso visual. Todos os dias nadamos na ignorância sobre nós próprios. Mas observando bem, percebe-se o quanto ainda podemos ser. Corpo e alma que se digladiem...

terça-feira, 4 de maio de 2021

Sem título, sem adornos



O olhar do Senhor Impontual, depois de ausência prolongada, pousou na paisagem de parede: no Cucumis Sativus e nos seus já abaçanados pepinos, um infindo horizonte isento de terrores, sem problemas humanos, sem nenhum incidente causado pela natureza, sem slogans falaciosos, sem estandartes doutrinais, a confirmar que a Primavera está aí e que a calculose lá para o Verão estará controlada. Com uma ou outra pedra no sapato, é certo. 

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Ainda antes que o dia acabe

Ver os seus olhos fecharem-se de sono antes dos meus, a fim de poder, como agora, murmurar-lhe palavras que vão afagar o seu rosto, a sua nuca, tal qual um demónio protector, escutar a sua respiração apaziguada e dizer-lhe que a nossa dança está ainda para começar. 

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Cicatrização

Gosto de passear por aqui e, embora nem sempre ache o caminho certo, reconheço todos os lugares. Há agora um tímido regresso ao movimento. Em todos estes becos e escadarias, uma vez mergulhados subitamente para dentro deles, o nosso olhar cai nos degraus vacilantes, nas plantas à porta, no pássaro da gaiola pendurada na varanda a chilrear mantendo a beleza do seu canto atrás das grades. Ali está o pequeno restaurante vazio, ali está o pequeno café abafado pela penumbra da tarde, a esplanada outrora multilingue, o largo com a capela, distraidamente guardado pelos pombos. Ali estão as mulheres à janela, com as caras meio tapadas por cortinas muito finas, imóveis como garças à beira de um rio. Parecerem viúvas, com os olhos direccionadas para o passado, para noites longínquas e caricias distantes. Também os jovens estão invadidos por uma melancolia, uma perda indistinta, como se um pequeno véu de luto tremulasse nos seus olhares. 
É a Invicta a secar suas feridas. A morrinha não ajuda muito.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

26 de Abril

Passaram os dias, passaram as noites. O sol aquece agora nas vidraças das janelas. Inês aponta na apostila umas notas de vida livre. Não pode introduzir-lhe notas da sua alma passada. Angustia-se, volta a interrogar-se sobre se tem ou não uma alma e os seus limites assustam-na uma vez mais. Inês é livre e isso deveria bastar-lhe. Vitoriosa também, porque ignora e despreza os antigos moldes que aprisionavam a sua vida, o seu pensamento, tudo, tudo. Deveria responder a esta pergunta: sou um novo ser, sou uma outra? estou verdadeiramente liberta? Não, conclui sem tristeza. Limitou-se a forjar uma armadura.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Pintar Abril

Estamos no fim de Abril. Há uns meses largos que não vinha posar. Entrou com a elegância de sempre. Sentou-se no canapé de palhinha com as costas direitas, entrelaçou os dedos das mãos e deixou-as cair sobre o regaço. Fez uma pausa. Ignorou-me com o olhar. Fixou-se absorta no vazio.

A tristeza leva tempo a aparecer num rosto, existe um período de incubação em que paira como um vapor dentro de uma pessoa mas sem deixar rasto; e passados uns meses, uns anos, apodera-se dela lentamente, uma ruga no canto da boca, uma sombra à volta dos olhos, um pescoço menos esguio, um olhar quiesciente.

Um lápis imoto. Uma tela em branco com um fundo flavo.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Dia da Terra

O Senhor Impontual continua desconfiado que um dia o Planeta travará de súbito naquele preciso momento e por ali ficará, estático, durante um instante mais alongado, mostrando-nos todos os horrores que lhe fomos infligindo. Já faltou mais.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Falsete

De regresso, e ao encontro da noite, olhos abertos à escuridão povoada de insectos e bichos trovadores, enquanto vou queimando quilómetros de estrada numa cadência acima do permitido, a Antena 2 impinge-me na voz de Cecilia Bartoli uma cantata de Monteverdi: "sì dolce e'l tormento", tentando convencer-me que quando a tristeza junta os olhares de dois amantes é porque estão prestes a separar-se. E eu aqui mortinho por chegar a casa.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Nelinho

Entrega-se com facilidade. Sente a tentação de cometer o irreparável, de transgredir o sacrossanto regulamento, de desafiar permanentemente a ordem estabelecida da sua vida. Adulto infantilizado, aterrorizado e ao mesmo tempo excitado pelas suas minúsculas ignomínias, sente-se agora, mais do que nunca, secretamente cúmplice de uns e de outros. No ar, suspensa, paira a erradicação do sacrilégio, o sentimento gratificante de não trair em vão. Tenta convencer-se de que tocarem-se ao de leve, acariciarem-se discretamente nos intervalos para café lá do reaberto escritório e uma lufada de sexo cru em sextas-feiras alternadas, onde pode gemer à vontade durante um par de horas e depois voltar a casa, constituem outros tantos sinais de libertação. 
Ó Nelinho! 

sexta-feira, 16 de abril de 2021

You're stumbling in the dark? **

 Não vos acontece? Ver-vos num esquecimento e num desapego imprecisos e diáfanos. Alguém no vosso intimo, talvez vós próprios, esforça-se por se livrar de um fardo terrível e sentis que o seu esforço, as tentativas obstinadas anunciam o degelo, a Primavera. Ensurdecidos às vossas próprias vozes, assistis ao combate com a indiferença de uma pedra. "Pouco me interessa quem vencerá", dizeis de vós para vós mesmos. Mas, aos poucos, tomados por uma espécie de vertigem, começais a sentir simpatia pelo rebelde que vos habita e ajudais em pensamento esse rebelde que vos diz que nenhum destino ou imponderável tem o direito de esmagar uma mulher ou um homem vivos.
Não vos acontece? O Senhor Impontual, não se excluí.

**subtracted from the darkness, right here.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Estilo D. Maria

Acordou deitada de bruços, nua, sobre o lado direito da cama de cabeceira estofada com moldura entalhada. Ele contemplou-lhe demoradamente o corpo, afagou-lhe o pescoço, as espáduas, o dorso, as nádegas, soergueu-se e beijou-a com minúcia. Ela, gemendo baixinho, contorceu-se de maneira quase imperceptivel. Percorreu-lhe o corpo, depois, com o sexo erecto, passou-o pela palpebras cerradas, pelas faces, pelo nariz e introduziu-o na boca entreaberta da rapariga, que o chupou, mantendo, a seguir, os lábios grossos e quentes na glande, sobre a qual moveu a ponta da lingua. Os movimentos de ambos eram suaves, harmoniosos, ritmicos, as respirações pausadas. Quando retirou o sexo da boca dela, no orificio brilhava uma gota de sémen. Entreabriu-lhe as nádegas rijas, colocou o sexo à entrada e enterrou-o. A rapariga gritou, agitou o corpo como se quisesse repeti-lo, depois aquietou-se, enquanto pensava que cada cama é uma história de suspiros. Ali encontram-se todos os suspiros que lançamos: os primeiros e os ultimos, os apaixonados e os desiludidos, os excitados e os ofendidos. Juntos formam um único suspiro que, sumamente, define uma vida.

terça-feira, 6 de abril de 2021

Caducifólio

Todas as manhãs, enquanto tomo o pequeno almoço, costumo fazer um rascunho daquilo que me reserva a jornada. Depois gosto de acender a televisão passado um bocado, sem ver o que está a dar. Hoje não o fiz. Permaneci na cozinha, à janela com as cortinas finas que agitavam levemente na corrente de ar da rua. Com a ponta do dedo levantei a bainha e olhei pela vidraça. O céu lá fora estava sem uma nuvem. Imaculado. Os pombos arrulhavam na tangerineira. A andorinha de asa negra no beiral. Era Abril. Nas árvores viam-se botões fortes, saudaveis. Tudo luzia. Mas no passeio, lá em baixo, umas folhas sussuravam ao vento. De que tipo de árvores viriam essas folhas outunais caídas agora, na Primavera?

segunda-feira, 29 de março de 2021

Minuete

Os seus passos demorados não têm nada de cansaço ou de confuso, pelo contrário: toda a aparição está desperta, ali, onde desliza pelo passeio. Aquela é a sua forma de se mover e percebe-se claramente que não se envergonha disso. Essa lentidão é mais provocante que um decote ousado ou uma saia justa um palmo acima do joelho. Tudo é tão intimo, como se estivéssemos a vislumbrar a sua alma. A lentidão torna-a mais nua que a própira nudez alguma vez teria conseguido. Por detrás dela pressente-se uma coragem do tipo mais despretencioso e profundo. Inventou uma forma totalmente nova de se mover, um equilibrio nunca antes visto, uma coreografia do principio do mundo. Não caminha sobre o chão, acaricia-o. É como se toda a sua vida fosse um minuete demorado e ela se movesse ao som de uma música que nunca se extingue e que mais ninguém ouve. 

sexta-feira, 26 de março de 2021

Palomar

O Senhor Impontual é um fugitivo. Desde sempre que o é. O Senhor Impontual sabe desenhar casas, sabe toldar-lhe as fachadas e o interior. Sabe desenhar jardins. Mas o que o Senhor Impontual gostava, mesmo, era de saber desenhar rostos. Se um dia, no grande incêndio, os livros fossem queimados, o Senhor Impontual está seguro de que os rostos passariam a ser a biblioteca dos homens, as rugas as suas linhas, o olhar as suas histórias. Mas desenhar rostos é muito dificil. Em cada rosto há algo de inatingivel. O lápis desespera e continua à procura. Por vezes sente-se que se roça nele e ficamos com a mão a escaldar. Outras vezes pressente-se que desde que se espere de um modo suficientemente observante, chegará o momento em que se revelará por um único risco milagroso, como quando se espera na noite pelo alvoroço, pelo momento do nascer do sol, quando as névoas se levantam, as sombras se dispersam e o interior da paisagem se revela. Mas não. Com muita pena do Senhor Impontual.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Rosinha

Rosinha não é má rapariga. No fundo, é avessa à falsa burguesia e ao puritanismo em que vive. Mas é incapaz de entrar em choque com o seu mundo. O seu derivativo é aquele tipo de rebelião mansa: afinal um sintoma das épocas de impotência. Rosinha está, como qualquer um, à espera de um grande acontecimento que a obrigue a modificar a penúria da sua vida, mas não provoca esse acontecimento, porque estaria a agir contra si própria. Também lê, como qualquer um, também é esperta, como qualquer um, mas tem um emprego em home office e não está disposta a perder esse privilégio. Rosa é uma virtuosa, à sua maneira.

terça-feira, 16 de março de 2021

Ao postigo

Às vezes penso que talvez devesse deixar de escrever. Mas as palavras continuam tão intactas. Trato-as com o cuidado ganho pelo tempo, da mesma maneira que trato as pessoas que me são próximas, familiar com os seus caprichos e vicios, os seus sonhos e desilusões. Como quando olhamos um retrato e este ganha vida, levanta o sobrolho e inquire: - Sim?  
E, a medo, respondemos "não", como se as palavras se tornassem um eco das primeiras palavras, as certas. E respondemos "não" como última manifestação de liberdade.
A verdade é que se escrevesse para os outros, deleitar-me-ia a descrever tudo o que não sinto necessidade de descrever para mim. Recorreria a uma enorme paleta de cores cruas e insólitas. Escreveria com uma bonita caligrafia sobre o céu e uma sensação de azul liquido incitaria a minha mão. As palavras alinhar-se-iam, crispadas, incapazes de circunscreverem esta sensação azul que me dilata o coração. E com a mesma caneta, a caneta da ilusão, descreveria as colinas...as montanhas arrasadas e as florestas transformadas em flores, as plataformas de pedra e a brancura das ondas desvastando o areal saibroso.

__ e o sol lá em cima.

sexta-feira, 12 de março de 2021

Chesterfield

Apesar dos dias serem agora mais claros, a rua lá fora mais animada e o chilrear dos pássaros nas árvores ser mais forte, sentava-se no sofá. Aquele sofá que fora a primeira peça de mobilia que compraram juntos. Pensava no amor que costumavam fazer nele. Nesses tempos arrancavam a roupa por desejo. Agora despem-se com movimentos frouxos ao fim do dia, dobrando a roupa cuidadosamente em cima das costas da cadeira do quarto.