sábado, 29 de janeiro de 2022
Dia de reflexão
quarta-feira, 26 de janeiro de 2022
Fiodor
Fiodor não entende que com o tempo, ou melhor, com o passar do tempo, e já lá vão três actos eleitorais, as pessoas - zangadas e frustradas que estão, e têm boas razões para isso - não compreendam que a lucidez será sempre uma arma superior ao descontentamento transviado, a tolerância e a ponderação mais úteis, mais ferozes que os gestos de raiva e desalento inadvertido, e se proponham protestar votar no Chega.
Pessoas, vós que sois gente empenhada no bem comum, portadores da indignação partilhada, que estais ali entre os brandos agitadores de rua e a pequena burguesia estabelecida, sofredores em silêncio, amortecedores da nação, donos dos votos oscilantes, não desperdiceis as vossas balas. Se quereis ridicularizar e flautear o sistema, parar o tempo, fazer um rewind civilizacional, voltar às pedras da calçada, tendes sempre o Vitorino Silva - um calceteiro profissional, um homem de cabeça limpa. É menos arriscado.
Zé Albino, Bala e Camões, fofosuras, comam mais fruta. Ou então, tomai um Melhoral. Não vos fará bem, mas também não vos fará mal. Venham brincar.
terça-feira, 25 de janeiro de 2022
Intermezzo
O sol, a lua e as estrelas projectam a sua luz onde desejam, os navios não são aparelhos para permanecerem nos portos, nem as casas construídas para permanecerem trancadas. As metáforas sucedem-se em cadeia, tocando as suas buzinas como veículos todo-o-terreno num engarrafamento do centro da cidade. Um homem a queixar-se das limitações da liberdade é uma figura tão inepta!
O céu, frio, está coberto de um azul uniforme e a luz, difusa, faz os contornos das coisas parecerem em ebulição. Não sei se meta o cão de pêlo pardo no carro, ponha a Cavalleria Rusticana de Mascagni nas colunas de alta fidelidade e vá dar uma volta de mar ao fundo, ou se fique aqui embrenhado na "mulher mais bonita da cidade"? Já calcei as sapatilhas.
sábado, 22 de janeiro de 2022
Insubordinação
segunda-feira, 10 de janeiro de 2022
Ordem de manutenção
quarta-feira, 5 de janeiro de 2022
Ano novo
No tempo em que ainda era solteiro, Frederico ocupava os dias com longas meditações filosóficas que o mergulhavam numa doce angustia e lhe davam a sensação de pairar sobre a pobre gente que o circundava. Prisioneiro das questiúnculas tacanhas e mesquinhas que lhe absorviam a vida do dia-a-dia, não havia manhã em que não o assaltassem as mesmas interrogações: "de onde venho eu? Que faço da minha existência? Porque estou vivo? Qual vai ser o meu destino?
Esta manhã as roupas de ambos enrodilharam-se em desordem aos pés da cama e os dois corpos pareciam repousar depois de um duro combate. Amélia tinha ainda na mão o sexo vigoroso e luzidio de Frederico, cujo braço repousava numa prega do peito mole e opulento da amante. Estampou-se-lhes nos rostos aquele ar apaziguado que as crianças exibem durante o sono.
domingo, 26 de dezembro de 2021
Gloria in excelsis Deo
Em frente ao espelho ajustou o corpete, distendeu milimetricamente as meias pretas de cornucópias, calçou os scarpins igualmente pretos, sobiu a saia para três centímetros acima do nível do joelho, vestiu o capote de burel e deu um último retoque meticuloso no véu que lhe emoldurava o olhar. Logo logo atravessou a praça em passo de sessenta centímetros para ir assistir à missa do galo. Ao entrar na igreja procurou Gabriel Arcanjo com o olhar. Nele reservava a esperança de pôr fim aos dias sombrios, aplacar o espírito impetuoso que a consome. Do céu, profeta de todas as desgraças, caiu o foguetório.
quarta-feira, 22 de dezembro de 2021
Calendário do Advento
Tenho tudo para escrever este tempo anacrónico. As letras perfeitamente alinhadas, os dedos inclinados sobre as teclas, o silêncio nocturno das ruas, o silêncio da minha voz, a nostalgia humedecendo-me a boca, um calafrio na pele, a música invadindo-me o mais recôndito e profundo patamar do âmago. Mas, não. Não me quero implicado em contrariar minimamente esta efémera felicidade que o mundo teima, e bem, em querer viver por estes dias. Nem sequer do mundo que está aqui mesmo ao meu lado. A página continua em branco como que a iludir este tempo circular. Não há palavras para desenha-lo. Não há pernas para pisar o terreiro do romantismo desacreditado. Apenas umas palpitações electrizantes no corpo todo. Um ou outro soluço intermitente. Uma esperança imposta. Uma teimosia pacifica nos subterrâneos da alegria: dar e receber uns abraços, esse talento miraculoso. Erguer uns copos. Comer uma ou duas rabanadas das tias velhas.
terça-feira, 21 de dezembro de 2021
quinta-feira, 16 de dezembro de 2021
Insónia
Bocarra aberta que aspira o vivente para depois expelir miséria. Sorvedouro. Tudo ali se transforma: o ar, o ruído, o grito. Tudo se apresenta, tudo se exalta. Indiferente, sem pudor, caminha sobre a sombra dos transeuntes como se tudo se espezinhasse. Lugar sem meio, migrante, flutuante ao sabor dos terminais do pensamento, ao sabor das horas e picos de reflexão, campo aberto onde se extasiam fragmentos. Queixume ininterrupto. Às vezes noite-encontro, os amantes nas suas caçadas esgueiram-se pelos becos sem saída, caricias dóceis, o esperma jorra, o prazer é tão curto. O dia nasce frio, embora azul.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2021
terça-feira, 14 de dezembro de 2021
Amélia
A maioria das pessoas diz "não" quase imediatamente, por puro instinto de sobrevivência. Amélia diz sempre "sim", "claro", "com certeza". Compromete-se para o resto da vida no calor do momento, sabendo que, no fundo, presumindo, o mesmo instinto de sobrevivência que leva os outros a dizer "não" começará a funcionar no momento crucial. Apesar dos seus instintos calorosos e generosos, da sua bondade e ternura instintivas, Amélia é a mulher mais esquiva que já alguma vez conheci.
quinta-feira, 9 de dezembro de 2021
Siena
Há momentos nos quais aquilo que se cala tem tanta importância como o que se diz. É como uma viagem nocturna, ora reflexiva, ora extravagante e desolada, em busca da linha de sombra onde os anseios habitam, mas também, pelas mesmas razões, um périplo à procura do esquecimento, uma recordação minuciosa e esperançada em que as certezas perdem paulatinamente a sua razão de ser e são substituídas, como se tratasse de um sonho, pelo vazio do tempo.
O tempo passa, as recordações esbatem-se e o que não se extingue para sempre perde intensidade e com a inevitável distância parece menos do que foi. Não há respostas. Não há que lamentar. Nenhuma palavra modifica o passado e nenhuma é exacta se se pronuncia quando o que se nomeia é passado e não o presente. No presente as palavras não existem. As palavras surgem mais adiante. É ter calma.
sexta-feira, 26 de novembro de 2021
Lugar, lugares
«Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo – diziam. E depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.(...)»
_Herberto Helder
terça-feira, 23 de novembro de 2021
CNN
Na sociedade em que nos coube viver, a aluvião de noticias, a cultura imposta, o ensino, as múltiplas opiniões produzidas por gigantescas fábricas de noticias e difundidas em regime de franchising, ao mesmo tempo que aumentam as possíveis explicações do mundo dificultam a tarefa de as interpretarmos por nós próprios, de acordo com a própria natureza, e com serenidade.
O processo de consolidação de uma sociedade de analfabetos funcionais está a avançar em passos muito largos.
quinta-feira, 18 de novembro de 2021
Sermão aos peixes
segunda-feira, 15 de novembro de 2021
O fabuloso destino de Amélia
Amélia cruza-se comigo varias vezes ao dia. Não posso deixar de reparar naqueles dois globos terrestres que, a cada passada de Amélia, parecem pautar o ritmo do Universo. Esforço-me por adivinhar qual será a diferença entre o rabo tapado de Amélia, que conheço até agora, e o descoberto, ao qual acrescenta beleza - ou talvez a extrapole - a minha inflamada imaginação.
Aquelas esplêndidas nádegas apresentam-se-me generosas e dóceis, entregam-se à minha contemplação, conscientes de que o facto de olhá-las e desejá-las pode embelezá-las ainda mais. Essas delícias, prometedoras, rutilantes e sumptuosas, se são prazenteiras e excitantes à vista manifestam que o serão muito mais ao tacto.
Bem sei que nem Rimsky-Korsakov ao compor o incitante Scheherezade nem Ravel ao compor o orgásmico Bolero, tocaram e acariciaram carne humana. As polpas dos seus dedos apenas batiam nas teclas do piano, o que já é deleitoso para um amante de musica, mas o que é certo é que Scheherazade e as demais mulheres do harém, e o amoroso e frenético par do Bolero, permaneceram intangíveis.
Não fosse a minha incipiente vocação artística e já seria um deleite desenhar, escrever ou musicar a gloriosa protuberância que se esconde para lá das saias de Amélia.
terça-feira, 9 de novembro de 2021
Renoir
Pareceu-me ser uma jovem atraente que combinara encontrar-se com o amante e chegara cedo. Mal tocara no aperitivo que pedira. Olhava atenta e firmemente para quem passava diante da sua mesa. Olhava em seu redor calmamente, avaliando o que via, mas sem o esforço óbvio de chamar a atenção. Era discreta e contida. Estava à espera. Eu também estava à espera. Cumprimentou-me com cordialidade como se tratasse de um amigo, mas raparei que ficou agitada. A sua voz era mais arrebatadora do que o seu sorriso: tinha bom timbre, era ligeiramente grave e um pouco rouca. Era a voz de uma mulher que se sente feliz por estar viva, que se entrega aos desejos, que é descuidada e modesta e que fará tudo para preservar o fragmento de liberdade que possui. Era a voz de uma mulher que dá, que consome: apelava mais ao diagrama que ao coração. O seu corpo era pesado, terreno. Parecia um Renoir. Mas os sons que lhe saiam da garganta eram como notas cristalinas de um violino.