terça-feira, 25 de abril de 2017

Povoléu

Era uma vez um país, numa época em que a maior parte das pessoas acreditava num qualquer género de universo em três camadas: havia o mundo sobrenatural, o natural e um qualquer lugar povoado por seres humanos. Uma espécie de vácuo nevoento e doloroso onde o Povoléu era a classe dominante. O seu nome do meio era Pobreza e o seu apelido Ignorância.Consequentemente, a sua única hipótese de felicidade estava na escravidão. Escravizem-nos, se for preciso, gritava silenciosamente o Povoléu, mas dêem-nos de comer. E assim, durante quarenta e cinco anos, foi sobrevivendo, matando a fome e passeando-se em ruas mal iluminadas onde ninguém o pudesse escutar - ouvia-se contar o que acontecia aos que erguiam a voz por uma outra liberdade -, mas o Povoléu nunca ficou muito perturbado com esse género de purga. Até que um dia deu-se a revolução de Abril e o Povoléu passou a viver livre mas acossado pela pressão social do sucesso, do poder, da riqueza, da família, da felicidade urgente, da expectativa... e de um mal-estar que lhe percorre o corpo provocando taquicardia, sudorese, respiração acelerada, boca seca, peso no peito, suor nas mãos, sensação de que o coração lhe vai sair pela boca...refém das suas próprias liberdades e sem saber como fazer a contra-revolução. 

sábado, 22 de abril de 2017

Google Earth

Eu que também sou frequentador da terra, hoje ponho-me a olha-la de olhos cerrados e o que me é dado a observar de forma evidente, salvo raras clareiras, é o carreiro de formigas: anteontem era o holandês, ontem o busto, hoje as vacinas, amanhã não faltará o futebol e a politica para espraiar convicções.
Eu próprio tenho opinião sobre o holandês, sobre o busto e sobre as vacinas, sobre futebol, sobre politiquices e por isso ao fazer zoom com o monóculo sobre aquelas raras clareiras, questiono-me absurdamente se ainda será possível fazer deste quintal um jardim com outras plantas em lugar desta estufa de fruta em serie. 

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Manhã submersa

...primeiro deu-se um momento de repouso dentro dela, a glória e o espanto, o mais próximo que se podia estar, e viver, da presença da liberdade - o pássaro engaiolado no seu momento de puro descanso, antes de ser lançado na luz encadeante. Depois o corpo, quedo nesse falso embalar de luxúria, clama na brutalidade do instinto: daqui não saio, daqui não saio.
É maravilhoso estarmos deitados e banharmo-nos no corpo de outra pessoa. "Tens um corpo muito bonito", - ouvir as próprias palavras pairarem na luz da manhã, saltando flamejantes nas esferas cromadas da cabeceira da cama, fazendo ricochete nas paredes e nos tectos.

Ó gentes

Anotem bem a elevação moral, estética, argumentativa, assertiva e, especialmente, muito filantropa, desta iniciativa a todos os títulos notável. Já anotaram? Fizeram bem. Agora divulguem-na.

quinta-feira, 13 de abril de 2017

terça-feira, 11 de abril de 2017

Ao sul

Há olhares cândidos e provocantes ao mesmo tempo, há graça, ousadia e humor, há vestidos azuis, há a tarde plena, há ar atlântico, mediterrânico e andaluz, há perfis anglo-saxónicos, há a chama ágil do sorriso, a surpresa do diálogo, a impaciência de mãos e lábios. As distâncias e as interdições foram abolidas, os frutos do conhecimento são acessíveis em ecrãs de bolso, a árvore da vida sem tempo oferece a sua seiva em todos os recantos. Não há nada que falte no paraíso, ao sul. Só não tem aquela aurora refulgente. Não posso ficar.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Debussy - Clair De Lune

Uma última mensagem nocturna e críptica, como uma ameaça em fundo azul: "Quero ver-te". No instante seguinte, a imagem ocupava todo o ecrã da noite: um banco junto ao passeio marítimo, uma silhueta, um vestido preto do outro mundo, o peito generosamente desnudado, as ancas amplas, a pele branca, o cabelo arruivascado sobre os ombros arredondados, sapatos de salto alto, pretos, ao pescoço um lenço de seda, ao lado a mala aberta, óculos, tabaco, isqueiro... e por cima um outro lenço, também fino e leve, amarelo torrado. Os cabelos revoltos pelo vento, o olhar atento, absorto, perscrutando o horizonte, o rosto marcado por uma branda e evasiva solidão, mas intenso como no passado, à espera de um sussurro, de um movimento de lábios ou de mãos ou de corpo ou... de ondas no mar ao fundo.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Vou mas é passear o cão de pêlo pardo

Já não tenho tempo, nem olhos, nem ouvidos para a cacofonia politica - nacional e internacional -, essa solene e glacial farsa. Discursos, ameaças, policias, reclusos, ex-reclusos, ministérios públicos, juízes e advogados, coros festivos, e coros plangentes, bombistas e os jogos de artificio, actores, imitadores de outros actores de tribunas maiores, as encenações ambiciosas e os truques, os troféus e o terror do circo quotidiano. Já não tenho nem tempo, nem olhos, nem ouvidos para semelhante comédia tragédia.
Bora Fiódor... bora.

06:03

"Malandro", murmurava a escuridão. Após um breve intervalo, novamente "malandro". Passados uns minutos, o murmúrio regressa e distingo, finalmente, "malandro", "malandro", repetido pelo fio da voz insidiosa da noite. Dou voltas no lodo do sono, levanto o braço esquerdo, mole, pesado, puxo o edredão até à cabeça, escorrego, afundo-me de novo no subterrâneo do sono. Pestanejo, porém! A maldição insinua-se, já sem escapatória. "Malandro", oiço outra vez nas proximidades. O edredão não me pode proteger, e já nem eu me posso proteger a mim próprio. Serei extraído, devagar, muito devagar, do lodo negro e doce da ausência, sei-o bem. Já não é a primeira vez que sou invadido no sono por um murmúrio em modo soletrado em que se separam as letras conhecidas, anunciando o despertar. O cansaço já não ajuda, nada me pode restituir a profundidade. Subtraído ao lodo terapêutico, puxado lentamente, com suavidade, para a superfície, tento ainda assim a rotina do retardamento, prolongando a apatia, a amnésia, o desmaio de olhos fechados, a mente pesada, vazia, o corpo pesado, de movimentos difíceis, tentando ficar assim, um lastro de chumbo na noite vasta e boa e pesada. Depois a janela diluiu a opacidade, torna-a violácea, transparente, os cortinados baloiçam num lânguido e pérfido suspiro, fácil de reconhecer na voz profana e muda da madrugada: "malandro". 
Malandro, eu?

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Retórica

A verdade é que chega-se a uma altura em que nem as desilusões, nem as confusões, nem o aborrecimento sem nome, podem subjugar totalmente o calendário. A rua, as casas, as árvores floridas, os rostos escondidos na incógnita dos dias, as mulheres, os livros e os amigos, tudo isto potencia o campo magnético do ser em que nos tornamos. Não fosse o pavor da cova dos falhados, o pavor encolhido, dilatado e novamente encolhido, adormecido mas não muito e dispensava-se a estratégia da esquiva, a retractilidade perante os dias que se estende ao resto, o trabalho aturado da dupla solução, a múltipla alternativa para as situações imprevisíveis, a solução de reserva, o coeficiente de segurança... e seriamos muito melhores pessoas. Agora assim, somos o que somos.

terça-feira, 28 de março de 2017

Adeus

Despede-se sempre com um "adeus". Gosta da forma seca, limpa, rectilínea, mas no fundo também abstracta que a palavra confere a todo um futuro imediato que se gera logo ali. Depois do "adeus", tudo pode ser diferente, tudo pode ser igual. É um presente sempre novo. O "adeus" não deixa promessas nem obrigações, nem expectativas, nem formas pensadas ou realidades por cumprir. É um lugar seguro, airoso, aconchegado, nada monótono.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Tríptico.











A poesia tem-me segredado que as almas são incomunicáveis. Por vezes a música conta-me o contrário. Em que ficamos..? Preciso de saber.

Equívocos

Uma manhã de Primavera, na pequena estação ferroviária, a serenidade do momento persistia nos dois passageiros já depois de estes terem entrado no comboio. Sentaram-se em silêncio, um à frente do outro, nos dois lugares do lado da janela do compartimento. As primeiras palavras, e sobretudo o seu tom, revelavam permissão. Dir-se-ia que aceitavam a melancolia cinzenta e impessoal do equinócio. No entretanto, lá fora, ao contrário disso, os acontecimentos haviam-se tornado vendavais num palco dilatado, horrível, mais largo que o próprio mundo.

sábado, 25 de março de 2017

Lei de Aldrin

As horas, sôfregas, cansadas da terra, das árvores e de mim deixam-se cair no horizonte, transformando o céu numa longa faixa de nuvens vivas que sangram lentamente. Depois é a noite que resvala agarrada à transparência do ar frio. Uma brisa ainda mais forte levanta-se fazendo rumorejar as copas mais altas dos cedros e quando chega ao chão já elas partiram. As horas. Caminham ao encontro da noite, olhos abertos à escuridão povoada de insectos e bichos rastejantes. Até agora, elas estão a deixar-me não de imediato, o que seria bastante penoso, mas através de uma amarga sucessão de separações. Numa determinada altura estão presentes e depois vão novamente embora, a cada viagem afastam-se um pouco mais do meu alcance. Não posso segui-las, e interrogo-me sobre onde é que elas irão quando partem. As horas.

quinta-feira, 23 de março de 2017

Ah, então é isso.

O amor quer dizer cegueira. E cegueira, na dose certa, pode querer dizer alguma felicidade.

quarta-feira, 22 de março de 2017

Miss Smile

Começa por reanimar a voz com gradações e arpejos - mas para ela é como recitar o alfabeto, é mais como uma alegria, como correr descalça por uma extensa praia de areia. Após várias notas curtas, acentuadas, em staccato, surge um acorde e a sua voz desliza entre as notas, apodera-se de uma delas e ergue-se até ao céu: dispara. Num ritmo sacudido, desce desde as notas agudas, cantadas com uma doçura lancinante, até às águas profundas e sombrias das notas baixas, onde geme como se a vida a estivesse a deixar gota a gota. Por vezes, faz um ruído com os lábios como uma rolha que salta, outras vezes bate no peito com a palma da mão para pontuar a música que flui da sua garganta. Dir-se-ia que a sua voz conta uma história - não apenas a história da sua vida, mas a de toda a humanidade com os seus combates e provações, seus triunfos e derrotas. Ora se escoa em vagas ameaçadoras como o oceano engrossado por uma tempestade, ora como uma queda de água que desce pela falésia e faz ricochete precipitando-se no caos de espuma em direcção ao vale sombrio e luxuriante que está em baixo. Desenha círculos de ouro como anéis de Saturno, oscilando loucamente de alto a baixo, lamentando-se e vibrando, insinuando-se à volta de um grave como a hera que trepa as árvores, para depois finalmente mergulhar nas águas azuis e transparentes de um acorde de sol maior.

Escreve como se estivesse a cantar.

Ó repórteres de actualidades

Vós que sois dotados de olhos inquietos, testemunhas sem fronteiras que palpais com ousadia as entranhas do mundo, que metralhais cada uma das suas tremulações, que apreendeis tudo o que mexe, tudo o que muda, tudo que se revolve,  tudo o que se agita, tudo o que salta, tudo o que corre, tudo o que se exibe, tudo  o que se pavoneia, tudo que escorrega, tudo que cai, tudo que nasce, tudo que chora, tudo o que se entedia e morre, já não tinhas dado grande conta disto e agora deixais passar isto. Então?

terça-feira, 21 de março de 2017

Se eu fosse cego amava toda a gente


Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde moras, dize se vives ou se já nasceste.
Eu amo aquela mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos.
Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas.
Eu amo aquelas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.
Eu amo os cemitérios - as lágens são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos floridos virgens nuas, mulheres belas rindo-se para mim.
Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.

Se eu fosse cego amava toda a gente.

__Almada Negreiros

segunda-feira, 20 de março de 2017

Caturra

Perguntou: leste "O monte dos vendavais"? Respondi: sim, li. E leste como deve ser? Reformulou. Respondi que achava que sim. Ela disse: então sabes que o ser humano não é apenas luz, é também escuridão, loucura, tristeza. 
Acreditas na felicidade? Acredito, respondi-lhe. Acredito na felicidade ilusória, ocultei-lhe.