quinta-feira, 27 de abril de 2017

Vantagens competitivas

Que fácil é fazer feliz quando se tem pela frente um coração desguarnecido!

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Hemisférios


É difícil não esquartejar o tempo quando se reflecte sobre o passado, não o dividir em blocos de acordo com o padrão dos factos que mais nos marcaram, não lhe adjudicar poderes que em si mesmo não tem, não pensar nele como se a chegada de uma nova data tivesse capacidade para nos mudar radicalmente. E não desprovido de menos falta de sentido é o reflexo de um erro maior: o de se acreditar que mudamos de repente e não pouco a pouco, como se simultaneamente não pudessem influir em nós impulsos opostos. 
Somos tão tolos! Mas somos tolos só porque queremos?

Tríptico




In memoriam.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Povoléu

Era uma vez um país, numa época em que a maior parte das pessoas acreditava num qualquer género de universo em três camadas: havia o mundo sobrenatural, o natural e um qualquer lugar povoado por seres humanos. Uma espécie de vácuo nevoento e doloroso onde o Povoléu era a classe dominante. O seu nome do meio era Pobreza e o seu apelido Ignorância.Consequentemente, a sua única hipótese de felicidade estava na escravidão. Escravizem-nos, se for preciso, gritava silenciosamente o Povoléu, mas dêem-nos de comer. E assim, durante quarenta e cinco anos, foi sobrevivendo, matando a fome e passeando-se em ruas mal iluminadas onde ninguém o pudesse escutar - ouvia-se contar o que acontecia aos que erguiam a voz por uma outra liberdade -, mas o Povoléu nunca ficou muito perturbado com esse género de purga. Até que um dia deu-se a revolução de Abril e o Povoléu passou a viver livre mas acossado pela pressão social do sucesso, do poder, da riqueza, da família, da felicidade urgente, da expectativa... e de um mal-estar que lhe percorre o corpo provocando taquicardia, sudorese, respiração acelerada, boca seca, peso no peito, suor nas mãos, sensação de que o coração lhe vai sair pela boca...refém das suas próprias liberdades e sem saber como fazer a contra-revolução. 

sábado, 22 de abril de 2017

Google Earth

Eu que também sou frequentador da terra, hoje ponho-me a olha-la de olhos cerrados e o que me é dado a observar de forma evidente, salvo raras clareiras, é o carreiro de formigas: anteontem era o holandês, ontem o busto, hoje as vacinas, amanhã não faltará o futebol e a politica para espraiar convicções.
Eu próprio tenho opinião sobre o holandês, sobre o busto e sobre as vacinas, sobre futebol, sobre politiquices e por isso ao fazer zoom com o monóculo sobre aquelas raras clareiras, questiono-me absurdamente se ainda será possível fazer deste quintal um jardim com outras plantas em lugar desta estufa de fruta em serie. 

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Manhã submersa

...primeiro deu-se um momento de repouso dentro dela, a glória e o espanto, o mais próximo que se podia estar, e viver, da presença da liberdade - o pássaro engaiolado no seu momento de puro descanso, antes de ser lançado na luz encadeante. Depois o corpo, quedo nesse falso embalar de luxúria, clama na brutalidade do instinto: daqui não saio, daqui não saio.
É maravilhoso estarmos deitados e banharmo-nos no corpo de outra pessoa. "Tens um corpo muito bonito", - ouvir as próprias palavras pairarem na luz da manhã, saltando flamejantes nas esferas cromadas da cabeceira da cama, fazendo ricochete nas paredes e nos tectos.

Ó gentes

Anotem bem a elevação moral, estética, argumentativa, assertiva e, especialmente, muito filantropa, desta iniciativa a todos os títulos notável. Já anotaram? Fizeram bem. Agora divulguem-na.

quinta-feira, 13 de abril de 2017

terça-feira, 11 de abril de 2017

Ao sul

Há olhares cândidos e provocantes ao mesmo tempo, há graça, ousadia e humor, há vestidos azuis, há a tarde plena, há ar atlântico, mediterrânico e andaluz, há perfis anglo-saxónicos, há a chama ágil do sorriso, a surpresa do diálogo, a impaciência de mãos e lábios. As distâncias e as interdições foram abolidas, os frutos do conhecimento são acessíveis em ecrãs de bolso, a árvore da vida sem tempo oferece a sua seiva em todos os recantos. Não há nada que falte no paraíso, ao sul. Só não tem aquela aurora refulgente. Não posso ficar.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Debussy - Clair De Lune

Uma última mensagem nocturna e críptica, como uma ameaça em fundo azul: "Quero ver-te". No instante seguinte, a imagem ocupava todo o ecrã da noite: um banco junto ao passeio marítimo, uma silhueta, um vestido preto do outro mundo, o peito generosamente desnudado, as ancas amplas, a pele branca, o cabelo arruivascado sobre os ombros arredondados, sapatos de salto alto, pretos, ao pescoço um lenço de seda, ao lado a mala aberta, óculos, tabaco, isqueiro... e por cima um outro lenço, também fino e leve, amarelo torrado. Os cabelos revoltos pelo vento, o olhar atento, absorto, perscrutando o horizonte, o rosto marcado por uma branda e evasiva solidão, mas intenso como no passado, à espera de um sussurro, de um movimento de lábios ou de mãos ou de corpo ou... de ondas no mar ao fundo.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Vou mas é passear o cão de pêlo pardo

Já não tenho tempo, nem olhos, nem ouvidos para a cacofonia politica - nacional e internacional -, essa solene e glacial farsa. Discursos, ameaças, policias, reclusos, ex-reclusos, ministérios públicos, juízes e advogados, coros festivos, e coros plangentes, bombistas e os jogos de artificio, actores, imitadores de outros actores de tribunas maiores, as encenações ambiciosas e os truques, os troféus e o terror do circo quotidiano. Já não tenho nem tempo, nem olhos, nem ouvidos para semelhante comédia tragédia.
Bora Fiódor... bora.

06:03

"Malandro", murmurava a escuridão. Após um breve intervalo, novamente "malandro". Passados uns minutos, o murmúrio regressa e distingo, finalmente, "malandro", "malandro", repetido pelo fio da voz insidiosa da noite. Dou voltas no lodo do sono, levanto o braço esquerdo, mole, pesado, puxo o edredão até à cabeça, escorrego, afundo-me de novo no subterrâneo do sono. Pestanejo, porém! A maldição insinua-se, já sem escapatória. "Malandro", oiço outra vez nas proximidades. O edredão não me pode proteger, e já nem eu me posso proteger a mim próprio. Serei extraído, devagar, muito devagar, do lodo negro e doce da ausência, sei-o bem. Já não é a primeira vez que sou invadido no sono por um murmúrio em modo soletrado em que se separam as letras conhecidas, anunciando o despertar. O cansaço já não ajuda, nada me pode restituir a profundidade. Subtraído ao lodo terapêutico, puxado lentamente, com suavidade, para a superfície, tento ainda assim a rotina do retardamento, prolongando a apatia, a amnésia, o desmaio de olhos fechados, a mente pesada, vazia, o corpo pesado, de movimentos difíceis, tentando ficar assim, um lastro de chumbo na noite vasta e boa e pesada. Depois a janela diluiu a opacidade, torna-a violácea, transparente, os cortinados baloiçam num lânguido e pérfido suspiro, fácil de reconhecer na voz profana e muda da madrugada: "malandro". 
Malandro, eu?

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Retórica

A verdade é que chega-se a uma altura em que nem as desilusões, nem as confusões, nem o aborrecimento sem nome, podem subjugar totalmente o calendário. A rua, as casas, as árvores floridas, os rostos escondidos na incógnita dos dias, as mulheres, os livros e os amigos, tudo isto potencia o campo magnético do ser em que nos tornamos. Não fosse o pavor da cova dos falhados, o pavor encolhido, dilatado e novamente encolhido, adormecido mas não muito e dispensava-se a estratégia da esquiva, a retractilidade perante os dias que se estende ao resto, o trabalho aturado da dupla solução, a múltipla alternativa para as situações imprevisíveis, a solução de reserva, o coeficiente de segurança... e seriamos muito melhores pessoas. Agora assim, somos o que somos.

terça-feira, 28 de março de 2017

Adeus

Despede-se sempre com um "adeus". Gosta da forma seca, limpa, rectilínea, mas no fundo também abstracta que a palavra confere a todo um futuro imediato que se gera logo ali. Depois do "adeus", tudo pode ser diferente, tudo pode ser igual. É um presente sempre novo. O "adeus" não deixa promessas nem obrigações, nem expectativas, nem formas pensadas ou realidades por cumprir. É um lugar seguro, airoso, aconchegado, nada monótono.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Tríptico.











A poesia tem-me segredado que as almas são incomunicáveis. Por vezes a música conta-me o contrário. Em que ficamos..? Preciso de saber.

Equívocos

Uma manhã de Primavera, na pequena estação ferroviária, a serenidade do momento persistia nos dois passageiros já depois de estes terem entrado no comboio. Sentaram-se em silêncio, um à frente do outro, nos dois lugares do lado da janela do compartimento. As primeiras palavras, e sobretudo o seu tom, revelavam permissão. Dir-se-ia que aceitavam a melancolia cinzenta e impessoal do equinócio. No entretanto, lá fora, ao contrário disso, os acontecimentos haviam-se tornado vendavais num palco dilatado, horrível, mais largo que o próprio mundo.

sábado, 25 de março de 2017

Lei de Aldrin

As horas, sôfregas, cansadas da terra, das árvores e de mim deixam-se cair no horizonte, transformando o céu numa longa faixa de nuvens vivas que sangram lentamente. Depois é a noite que resvala agarrada à transparência do ar frio. Uma brisa ainda mais forte levanta-se fazendo rumorejar as copas mais altas dos cedros e quando chega ao chão já elas partiram. As horas. Caminham ao encontro da noite, olhos abertos à escuridão povoada de insectos e bichos rastejantes. Até agora, elas estão a deixar-me não de imediato, o que seria bastante penoso, mas através de uma amarga sucessão de separações. Numa determinada altura estão presentes e depois vão novamente embora, a cada viagem afastam-se um pouco mais do meu alcance. Não posso segui-las, e interrogo-me sobre onde é que elas irão quando partem. As horas.

quinta-feira, 23 de março de 2017

Ah, então é isso.

O amor quer dizer cegueira. E cegueira, na dose certa, pode querer dizer alguma felicidade.

quarta-feira, 22 de março de 2017

Miss Smile

Começa por reanimar a voz com gradações e arpejos - mas para ela é como recitar o alfabeto, é mais como uma alegria, como correr descalça por uma extensa praia de areia. Após várias notas curtas, acentuadas, em staccato, surge um acorde e a sua voz desliza entre as notas, apodera-se de uma delas e ergue-se até ao céu: dispara. Num ritmo sacudido, desce desde as notas agudas, cantadas com uma doçura lancinante, até às águas profundas e sombrias das notas baixas, onde geme como se a vida a estivesse a deixar gota a gota. Por vezes, faz um ruído com os lábios como uma rolha que salta, outras vezes bate no peito com a palma da mão para pontuar a música que flui da sua garganta. Dir-se-ia que a sua voz conta uma história - não apenas a história da sua vida, mas a de toda a humanidade com os seus combates e provações, seus triunfos e derrotas. Ora se escoa em vagas ameaçadoras como o oceano engrossado por uma tempestade, ora como uma queda de água que desce pela falésia e faz ricochete precipitando-se no caos de espuma em direcção ao vale sombrio e luxuriante que está em baixo. Desenha círculos de ouro como anéis de Saturno, oscilando loucamente de alto a baixo, lamentando-se e vibrando, insinuando-se à volta de um grave como a hera que trepa as árvores, para depois finalmente mergulhar nas águas azuis e transparentes de um acorde de sol maior.

Escreve como se estivesse a cantar.