Quem sou eu, bem pesadas todas as coisas, para me armar em juiz impassível de uma civilização tão rica como a nossa? Acabaria certamente por ficar afogado em lugares-comuns. Na verdade, bem vistas as coisas, todas as civilizações assentam na ideia de que, de um lado, não há mais que uma horda vagamente humana e, do outro, os iluminados -"nós". O modo como se policia a fronteira entre civilizados e bárbaros pode diferir, mas todos a policiam, desde o Alasca à Tasmânia. No entanto há algo que distingue uma civilização de todas as outras que é, sem dúvida, a colossal e arrogante desumanidade com que policia essa fronteira.
quinta-feira, 4 de maio de 2017
quarta-feira, 3 de maio de 2017
Baleia azul
Fui almoçar à Galiza. Um daqueles bifes que vem naquela caçarola minúscula a transbordar de molho, e que se comem com o talheres em posição vertical. O bife era tão mal passado que ainda falei com a vaca. Claro que esparrinhou. Não havia de esparrinhar! Salpicou-me a gravata toda. Hoje pus gravata. No Porto também se come mal. Ou melhor, opta-se mal. Mas dizia eu, na Galiza as pessoas sentam-se na mesa dos outros como se não estivesse ali ninguém. Tocou-me uma mãe e um filho. A mãe não era velha. O filho já não era novo. Sorri-lhes. Comeram em silêncio. O filho espreitava o telefone inteligente a cada vibração. Desta última vez, a luz acendeu-se de um azul muito forte, era uma mensagem, não pude deixar de reparar: "eu amo-te e quero ser tua eternamente. Ass: Paulinha". O rapaz sorriu. A mãe deu um último travo no copo da água e disse: "as mulheres são serpentes - o que tens de fazer é despreza-las. E depois quando se sentirem desprezadas, amá-las apaixonadamente. Assim devem ser tratadas as mulheres. Não existe outra maneira, meu filho". Comeram rápido. Eu fiquei ali a falar com a vaca.
Agora, enquanto a gravata seca, sou capaz de ir tomar um gin, tónico, com muito limão.
terça-feira, 2 de maio de 2017
Fumus boni iuris
Juridicamente, a partir de hoje os animais deixam de ser considerados coisas. Agora, é deixar de tratar as pessoas como animais.
sábado, 29 de abril de 2017
Dia Mundial da Dança
E quando a violência dos nossos corpos atravessar o canal da linguagem, passar para além das palavras, para além de tudo o que possam dizer as palavras, ocupar-me-ei do teu corpo, centímetro a centímetro, explorá-lo-ei, acariciá-lo-ei, farei jorrar prazer de cada poro da tua pele. Será a grande ocupação da minha vida: dar-te prazer... tratar-te como uma pequena rainha. Apenas ouvirás o roçar do meu corpo contra o teu, as gotículas de suor que rolam na tua pele, a minha boca que as vai sorver, que subirá à tua orelha e repetirá incansavelmente: "diz-me o que queres". Depois, enxaguarei o teu corpo dessa água que corre, dessa sede que jorra entre a tua e a minha pele, essa sede nunca saciada que encontra mil fontes novas em mil recantos escondidos no teu corpo espantado. Por fim deixaremos a beira-mar, os rochedos, a espuma suja das vagas, afogar-nos-emos naquela água salgada, lamber-nos-emos, respirar-nos-emos, ergueremos a cabeça para recuperar o folgo e partiremos para mais longe dançando no desconhecido caminho marítimo dos nossos corpos ...
quinta-feira, 27 de abril de 2017
quarta-feira, 26 de abril de 2017
Hemisférios
É difícil não esquartejar o tempo quando se reflecte sobre o passado, não o dividir em blocos de acordo com o padrão dos factos que mais nos marcaram, não lhe adjudicar poderes que em si mesmo não tem, não pensar nele como se a chegada de uma nova data tivesse capacidade para nos mudar radicalmente. E não desprovido de menos falta de sentido é o reflexo de um erro maior: o de se acreditar que mudamos de repente e não pouco a pouco, como se simultaneamente não pudessem influir em nós impulsos opostos.
Somos tão tolos! Mas somos tolos só porque queremos?
terça-feira, 25 de abril de 2017
Povoléu
Era uma vez um país, numa época em que a maior parte das pessoas acreditava num qualquer género de universo em três camadas: havia o mundo sobrenatural, o natural e um qualquer lugar povoado por seres humanos. Uma espécie de vácuo nevoento e doloroso onde o Povoléu era a classe dominante. O seu nome do meio era Pobreza e o seu apelido Ignorância.Consequentemente, a sua única hipótese de felicidade estava na escravidão. Escravizem-nos, se for preciso, gritava silenciosamente o Povoléu, mas dêem-nos de comer. E assim, durante quarenta e cinco anos, foi sobrevivendo, matando a fome e passeando-se em ruas mal iluminadas onde ninguém o pudesse escutar - ouvia-se contar o que acontecia aos que erguiam a voz por uma outra liberdade -, mas o Povoléu nunca ficou muito perturbado com esse género de purga. Até que um dia deu-se a revolução de Abril e o Povoléu passou a viver livre mas acossado pela pressão social do sucesso, do poder, da riqueza, da família, da felicidade urgente, da expectativa... e de um mal-estar que lhe percorre o corpo provocando taquicardia, sudorese, respiração acelerada, boca seca, peso no peito, suor nas mãos, sensação de que o coração lhe vai sair pela boca...refém das suas próprias liberdades e sem saber como fazer a contra-revolução.
sábado, 22 de abril de 2017
Google Earth
Eu que também sou frequentador da terra, hoje ponho-me a olha-la de olhos cerrados e o que me é dado a observar de forma evidente, salvo raras clareiras, é o carreiro de formigas: anteontem era o holandês, ontem o busto, hoje as vacinas, amanhã não faltará o futebol e a politica para espraiar convicções.
Eu próprio tenho opinião sobre o holandês, sobre o busto e sobre as vacinas, sobre futebol, sobre politiquices e por isso ao fazer zoom com o monóculo sobre aquelas raras clareiras, questiono-me absurdamente se ainda será possível fazer deste quintal um jardim com outras plantas em lugar desta estufa de fruta em serie.
quinta-feira, 20 de abril de 2017
Manhã submersa
...primeiro deu-se um momento de repouso dentro dela, a glória e o espanto, o mais próximo que se podia estar, e viver, da presença da liberdade - o pássaro engaiolado no seu momento de puro descanso, antes de ser lançado na luz encadeante. Depois o corpo, quedo nesse falso embalar de luxúria, clama na brutalidade do instinto: daqui não saio, daqui não saio.
É maravilhoso estarmos deitados e banharmo-nos no corpo de outra pessoa. "Tens um corpo muito bonito", - ouvir as próprias palavras pairarem na luz da manhã, saltando flamejantes nas esferas cromadas da cabeceira da cama, fazendo ricochete nas paredes e nos tectos.
Ó gentes
Anotem bem a elevação moral, estética, argumentativa, assertiva e, especialmente, muito filantropa, desta iniciativa a todos os títulos notável. Já anotaram? Fizeram bem. Agora divulguem-na.
quinta-feira, 13 de abril de 2017
terça-feira, 11 de abril de 2017
Ao sul
quinta-feira, 6 de abril de 2017
Debussy - Clair De Lune
Uma última mensagem nocturna e críptica, como uma ameaça em fundo azul: "Quero ver-te". No instante seguinte, a imagem ocupava todo o ecrã da noite: um banco junto ao passeio marítimo, uma silhueta, um vestido preto do outro mundo, o peito generosamente desnudado, as ancas amplas, a pele branca, o cabelo arruivascado sobre os ombros arredondados, sapatos de salto alto, pretos, ao pescoço um lenço de seda, ao lado a mala aberta, óculos, tabaco, isqueiro... e por cima um outro lenço, também fino e leve, amarelo torrado. Os cabelos revoltos pelo vento, o olhar atento, absorto, perscrutando o horizonte, o rosto marcado por uma branda e evasiva solidão, mas intenso como no passado, à espera de um sussurro, de um movimento de lábios ou de mãos ou de corpo ou... de ondas no mar ao fundo.
terça-feira, 4 de abril de 2017
Vou mas é passear o cão de pêlo pardo
Já não tenho tempo, nem olhos, nem ouvidos para a cacofonia politica - nacional e internacional -, essa solene e glacial farsa. Discursos, ameaças, policias, reclusos, ex-reclusos, ministérios públicos, juízes e advogados, coros festivos, e coros plangentes, bombistas e os jogos de artificio, actores, imitadores de outros actores de tribunas maiores, as encenações ambiciosas e os truques, os troféus e o terror do circo quotidiano. Já não tenho nem tempo, nem olhos, nem ouvidos para semelhante comédia tragédia.
Bora Fiódor... bora.
Bora Fiódor... bora.
06:03
"Malandro", murmurava a escuridão. Após um breve intervalo, novamente "malandro". Passados uns minutos, o murmúrio regressa e distingo, finalmente, "malandro", "malandro", repetido pelo fio da voz insidiosa da noite. Dou voltas no lodo do sono, levanto o braço esquerdo, mole, pesado, puxo o edredão até à cabeça, escorrego, afundo-me de novo no subterrâneo do sono. Pestanejo, porém! A maldição insinua-se, já sem escapatória. "Malandro", oiço outra vez nas proximidades. O edredão não me pode proteger, e já nem eu me posso proteger a mim próprio. Serei extraído, devagar, muito devagar, do lodo negro e doce da ausência, sei-o bem. Já não é a primeira vez que sou invadido no sono por um murmúrio em modo soletrado em que se separam as letras conhecidas, anunciando o despertar. O cansaço já não ajuda, nada me pode restituir a profundidade. Subtraído ao lodo terapêutico, puxado lentamente, com suavidade, para a superfície, tento ainda assim a rotina do retardamento, prolongando a apatia, a amnésia, o desmaio de olhos fechados, a mente pesada, vazia, o corpo pesado, de movimentos difíceis, tentando ficar assim, um lastro de chumbo na noite vasta e boa e pesada. Depois a janela diluiu a opacidade, torna-a violácea, transparente, os cortinados baloiçam num lânguido e pérfido suspiro, fácil de reconhecer na voz profana e muda da madrugada: "malandro".
Malandro, eu?
segunda-feira, 3 de abril de 2017
Retórica
A verdade é que chega-se a uma altura em que nem as desilusões, nem as confusões, nem o aborrecimento sem nome, podem subjugar totalmente o calendário. A rua, as casas, as árvores floridas, os rostos escondidos na incógnita dos dias, as mulheres, os livros e os amigos, tudo isto potencia o campo magnético do ser em que nos tornamos. Não fosse o pavor da cova dos falhados, o pavor encolhido, dilatado e novamente encolhido, adormecido mas não muito e dispensava-se a estratégia da esquiva, a retractilidade perante os dias que se estende ao resto, o trabalho aturado da dupla solução, a múltipla alternativa para as situações imprevisíveis, a solução de reserva, o coeficiente de segurança... e seriamos muito melhores pessoas. Agora assim, somos o que somos.
quinta-feira, 30 de março de 2017
terça-feira, 28 de março de 2017
Adeus
Despede-se sempre com um "adeus". Gosta da forma seca, limpa, rectilínea, mas no fundo também abstracta que a palavra confere a todo um futuro imediato que se gera logo ali. Depois do "adeus", tudo pode ser diferente, tudo pode ser igual. É um presente sempre novo. O "adeus" não deixa promessas nem obrigações, nem expectativas, nem formas pensadas ou realidades por cumprir. É um lugar seguro, airoso, aconchegado, nada monótono.
segunda-feira, 27 de março de 2017
Tríptico.
A poesia tem-me segredado que as almas são incomunicáveis. Por vezes a música conta-me o contrário. Em que ficamos..? Preciso de saber.
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