quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Trinta e um

Apesar de tudo ainda há quem se preste a tentar transformar, e isso é que é importante, um caso de corrupção e aldrabice numa coisa, se não extraordinária, pelo menos poética; que é o desempeno e consequente funcionamento definitivo e livre do sistema (judicial). 
Esperai sentados.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Na moleza da tarde: de Picasso a Pina, num ápice.

__O Acrobata - Pablo Picasso, 1930

Perde-se o corpo na inabitada casa das palavras,
nas suas caves, nos seus infindáveis corredores;
pudesse ele, o corpo, o que quer que o corpo seja,
na ausência das palavras calar-se.

__Manuel António Pina, Todas as palavras, Poesia reunida 1974-2011

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

A insustentável leveza

Passaram-se alguns dias. Mais concretamente cinco dias. Sei-o pela proeminência de um ou outro pêlo que se manifesta mais branco na minha barba. Ando nas nuvens. Em geral, quando as pessoas dizem que andam nas nuvens, querem significar com isso que a felicidade as torna mais leves, mas para mim é o contrário, é a indiferença que me torna leve, como um farrapo de nevoeiro em vias de ser queimado pelo sol.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

República

Não há nada como vir ao pôr-do-sol, quando as aves regressam aos ninhos para dormir. É o som do mundo antes do homem existir.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Demissão

Qualquer um chega ao ponto de querer lançar-se no vazio com um nó no estômago e uma generosa dose de má adrenalina cavalgando fugitiva pelas suas veias afora, mas como todos carecemos de instinto suicida apegamo-nos à segurança dos pés bem assentes na terra como último intento para determos essa ousadia. Acontece que, muitas vezes, precisamos de fazê-lo e sem pensar duas vezes, aproveitamos esses escassos segundos de valor e saltamos com tal ímpeto que chocamos contra o colchão, compartilhando-o com a nossa má sombra. Foi o que fez Passos Coelho - o obstinado.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Canícula

Quantas e quantas vezes a memória e a imaginação andam assim de mãos dadas. Quantas e quantas vezes competem entre si. A memória a apresentar-se real e sólida na medida do possível. A imaginação a bater as asas. A memória a inclinar-se para o conhecido, a imaginação a voar em direcção ao desconhecido. A memória a inspirar-me prazer e paz. A imaginação a fazer-me andar de um lado para o outro acabando por me enfraquecer.
Um dia, mais tarde, não precisa de ser já, ainda hei-de aprender a viver exclusivamente pela imaginação.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Se o Outono fosse meu...*

Começaria por mover-me dentro dela. Seria diferente de tudo o que experimentara até então. Ela abrir-se-ia a um nível não físico que aumentava a intensidade da sensação física dos corpos a moverem-se em simultâneo. Eu estaria consciente de me encontrar dentro dela, mas era como uma experiência extra-corporal. Numa palavra: comunhão.

* baseado numa belíssima ideia que vem daqui.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Então?

 Pawel Kuczynski 

Gente empenhada no bem comum, portadores da indignação partilhada, que  estais ali entre os brandos agitadores de rua e a pequena burguesia estabelecida, sofredores em silêncio, amortecedores da nação, donos dos votos oscilantes, já escolhestes o molho com que quereis ser comidos nos próximos quatro anos?

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Procrastinação

Continua a haver um ínfimo momento naquela música do Fausto, “Foi por ela", em que o desejo assume um determinado contorno, ganha forma e odor, voz e vida própria. Há um trecho de história que continua a acontecer ali naquele instante, naquela fracção de segundo e que eu sei perfeitamente qual é porque continuo a apanha-lo num voo planado, capto-o num movimento pendular e porque dele me continuo a escapar numa estúpida, por vezes absurda, diria mesmo irracional miscelânea de amarga e doce saudade. Só que depois o sol, esse, até nem me faz falta.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Hoje vesti um blazer azul marinho...

Mas... há gente que de manhã quando carrega no interruptor e o seu quarto se enche de luz, fica iluminada, alerta, electrificada, cabeça e corpo prontos a andar. Acordei, sou um génio. O seu cérebro enche o mundo e o mundo enche o seu cérebro. Têm o controlo e o domínio de cada parcela sua. São uma onda de luz instantânea, invisível e omnipresente, que se espalha sem esforço pelos recantos mais sombrios do universo, iluminando tudo, compreendendo tudo, sentenciando tudo e... todos.

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Segregação

Deve ter sido o cabelo que primeiro captou a minha atenção - pelos ombros, desgrenhado, dourado-ambar, atraía a luz, capturava a luz, seduzia a luz, acolhia a sombra que se projectava no interior do compartimento à passagem pelas estações intermédias. Sentada na cadeira logo a seguir à janela com as costas direitas, estava uma visão, banhada pelo tom outonal que pairava no exterior, de uma mulher divina, capaz de me fazer abandonar os claustros. Depois, apoiada nos cotovelos sobre a mesa rebatível, a cabeça entre as mãos, vestia um vestido de algodão azul-água, sem mangas. Estava a ler qualquer coisa - algo demasiado extenso e pesado que abria e segurava com dificuldade, a ponto de nas pausas ter de fixar as páginas com a carteira de pele castanha. Buliçosamente, abanava as pernas debaixo da mesa. Não conseguia ver-lhe o rosto, mas o seus membros inferiores estavam destapados, bronzeados e numa proporção tão perfeita com o resto do corpo que até Teciano teria de os alterar, com receio de que quem admirasse a sua obra pudesse não acreditar. Levantou a cabeça, e depois aguardou um instante antes de voltar ao livro - "O Idiota" de Dostoiesvski, verifiquei -  numa espécie de competição consigo própria. 
Sem reservas, admito, fiquei enfeitiçado: puro desejo adultero. Um chuto numa artéria principal.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Isto acontece

Numa sociedade onde há pouco mais de setenta anos o pangermanismo deu origem ao movimento nacionalista, ao racismo cientifico, ao darwinismo social e ao anti-semitismo que viria a redundar no mais abjecto momento da história da humanidade: que foi o mais amplo genocídio em massa contra vários grupos étnicos, políticos e sociais a que a Europa e o Mundo alguma vez assistiram - recordo.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Motel

Chegara a um ponto em que percebeu com clareza que se enganara em todos os infinitos conjugáveis. Por isso não lhe restava outro consolo senão aproveitar a dádiva. Seria uma ladra. Iria roubar todos os beijos, todos os cheiros, todos os sabores, todos os segundos, a rolha do champagne e até aquelas notas de piano lentas e cavernosas que se soltavam  pelos altifalantes incrustados na cabeceira da cama queen size.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Donne


Pois.
Sou três vezes doido, bem sei,
Por chamar-te até mim, por prometer-te o céu, e por cantá-lo
nesta prosa plangente.

sábado, 16 de setembro de 2017

Vintage

Voz acetinada pela fadiga, cigarro entalado entre as unhas já pintadas da cor do Outono, mãos finas e compridas, uma franja indefinida estendendo-se em leque sobre a testa, a alça do vestido preto descaída sobre o ombro arredondado. Incrivelmente perturbadora. Sem dúvida uma mulher muito sensual, impregnada de cansaço, lindamente marcada pelas rugas e confortada por alguns quilos a mais. Libertava uma força erótica tão perceptível, tão forte quanto o odor da casta de colheita tardia no seu perfeito estado de maturação. Um vinho das cotas mais altas. Tinto. Encorpado. Mistura de geleia de frutas negras e especiarias. Taninos doces. Um sorriso fleumático e uma certa filosofia.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Fileira

Há dias em que se acorda e parece que estivemos em centenas de lugares todos ao mesmo tempo: estações de caminho-de-ferro, aldeias longínquas, beira-rios, mares salgados. Todos esses sítios tinham nomes, mas não nos lembramos de um único desses nomes. Às vezes parece-nos um vasto prado que se confunde com o céu, outras vezes uma floresta sombria que se prolonga indefinidamente dentro da escuridão, e outras ainda uma fila comprida de pessoas, da qual algumas caem de vez em quando e são pisadas pelos outros todos. 

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Núpcias

Vaguear pelos meses em doces nostalgias, recusar durante longo tempo a ideia do amor e embriagar-se de amargura. Depois, sem se curar da recordação, descobrir-se diferente, mais vivo, longe das expectativas, interessado na pessoa menos cheia de certezas que sentia fremir dentro de si. Horas maravilhosas de solidão, uma espécie de lua-de-mel consigo mesmo. Uma verdadeira alegria interior a surpreender aquele desgosto que se julgava infinito, naquele momento em que as cores e as emoções ainda não foram devoradas pelo calor. Sentir o desejo de agradar a si mesmo, prelúdio ao prazer. Mergulhar em si próprio, rodeado por uma música interior, construir um abrigo e às vezes elevar-se para observar de longe. Sentir mesmo gosto em frequentar esse universo alargado de pessoa só, sem se atolar em delírios de desgaste lento.

sábado, 9 de setembro de 2017

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Emulação

Enquanto a geração cabeça baixa tecla, posa, fotografa e volta a teclar fazendo chegar ao Mundo os seus mundos, faço um considerável recuo mental e dou comigo da idade deles, num tempo em que fervilhava em mim a mesma vitalidade que a borboleta deve sentir ao sair da crisálida. Em que o que queria era experimentar a embriaguez permanente que me permitia todas as audácias. Falar com raparigas, caminhar enlaçando-as pelos ombros, beija-las, acariciar os seus incríveis seios, introduzir a mão por baixo das suas saias perturbadoras e, quando a sorte me sorria, atingir realmente o fim, sentir a demasiado breve electrocussão que fazia de mim um homem e me autorizava, chegado o momento, a regressar a casa de cabeça erguida.

Por ora deixo-me com um pé no rio, um livro, dois dedos de conversa para dentro, uma cerveja, a música no ouvido. 

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Cartilha Oligárquica

Demos graças a Deus por vivermos no litoral, termos nascido e vivermos no melhor destino europeu do ano com a piscina mais bonita da Europa e com a zona ribeirinha mais visitada... ou por actualmente morarmos no sítio onde a Madonna, a Bellucci e o Fassbender se andam a passear e onde os reformados mais ricos do mundo se querem fixar.
O que seria de nós se vivêssemos numa aldeia ou vila do interior, onde além de ficarmos sem tribunais, escolas, bancos, correios ou hospitais ainda corríamos o risco de morrermos assados, perdermos os nossos bens e entes queridos devido à incúria dos que vão governando e desgovernando o país, que ainda teriam a lata de dizer-nos também ser nosso, e que tivéssemos confiança nas instituições sociais?