sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Nocturno em C menor, opus póstumo

Esta foi a noite serena e auspiciosa. Única. E quando mais uma aurora boreal estava a desaparecer e um cardume de peixes prateados voltou a nadar rumo às profundezas do oceano, abraçou-me de olhos semicerrados, com os lábios húmidos e vermelhos. Escapei-me dos seus braços e dobrei um dos joelhos diante dela. Ergui-lhe a saia, beijei-lhe as pernas, as coxas e, em seguida, premi a cabeça contra a suave saliência triangular. As minhas mãos agarraram as dela. Ondas de um azul-celeste formaram-se com uma cadência irregular. Sentimo-nos lançados no espaço por um baloiço celestial...

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Imanências

Das "Memorias de Raul Brandão", Volume 3
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... e depois este arranhar suave, mas profundo, da pena no velino, deixa-me tão inerme. Oh, como eu me sinto indefeso! Oh, imanências de Setembro!

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Acontece sempre nos primeiros dias de Setembro

... começa com um fervilhar de rins ao inicio da tarde, uma substância amorfa que se instala nas entranhas como um incómodo parasita, um veneno adocicado que tem a cor opaca do vazio e a espessura remota da névoa, um desejo inconsciente que embriaga a lucidez, uma chama, um acorde indefinido, uma sonolência mais pesada, a repulsa e simultaneamente a fascinação. Um teclado, uma tentação, uns gatafunhos e a pergunta sacramental. Um suspiro, uma fraqueza. Só espero que não me levem à risca.

domingo, 2 de setembro de 2018

Palomar

Noite tropical. Em cima da mesa baixa de teka envernizada uma garrafa e dois copos desirmanados. Ao fundo um veado, com os chifres prateados pelo luar, desce até ao rio para beber água. Na água ouve-se o chapinhar de um peixe com insónias. O Senhor Impontual deixa-se sentado e quieto a olhar o céu, estrelado como nunca, e não tem duvidas nenhumas - o mundo é redondo, mas só há dois tipo de pessoas: as que fogem e as que colam.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Sessão da Meia-Noite

"Viagem a Tóquio" - Yasujiro Ozu, 1953

(na magnífica companhia da Tétisq)

Grand Hotel (epílogo)





Quanto àquela noite, bem leitor lascivo, a minha mãe pode estar a ler isto e ficará corada, portanto, tenho de abrir um biombo por cima desta página. Imaginem o que quiserem, por detrás dele: um ar nevoeirento a cobrir um corpo com gotas de suor, a recordação de um perfume com notas de sândalo, a prece de um homem atendida, um sussurro de um nome amado, belíssimo, uma exaltação de andorinhas, e por aí fora.
O resto já imaginei contei abaixo. O toucador está pronto a ser pintado, como podeis verificar a cima.

domingo, 26 de agosto de 2018

Grand Hotel III

Reparei nos casais que desciam a escadaria preparados para o jantar, os homens talhados de negro, as mulheres cobertas de folhos. Ocorreu-me que aquela era a cena em que, nos romances góticos, o corcunda rapta a sua donzela. Ali, com o candelabro, o brilho da lampada do pilar das escadas em caracol, os diamantes e a carne nua. Aquela era a hora do monstro. Depois de a ter seguido, de a ter enganado, estava agora pronto a raptá-la - sem nada para oferecer-lhe em troca, para além da sua vida envenenada, dos seus carnudos e sedentos lábios.
Não demorou mais de um segundo. Trazia um vestido branco, comprido, salpicado de bordados e renda, as mangas, meros véus que cobriam os seus braços, uma espécie de cinto prateado que descia abaixo da cintura, e uma longa cauda, caída atrás dela pelas escadas abaixo numa espiral cintilante; um vestido que se ajustava a ela como um delicado gérmen agarrado à sua pálida semente. Não usava nada em volta do pescoço, absolutamente nada, apenas a sua pele clara, ondulando como uma pequena vaga, quando engolia e olhava para baixo com a grandiosidade de uma mulher sem preocupações de juventude, sem confusões nem piscar de olhos, uma mulher de paixões, ali, naquela escadaria, com uma mão pousada no corrimão. Havia estrelas no seu cabelo...

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Grand Hotel II

...se fosse eu, talvez sentado naquela cadeira branca de vime, iria pegar-lhe na mão, ouvi-la suspirar, e ficar a saber que ela me queria muito. Ou no quarto dela, quando estivesse sentada à janela a admirar os relvados e os pinheirais que se estendiam até à orla do oceano, quando ela abrisse a janela da varanda de par em par para deixar entrar no quarto o ar salgado e começasse a inspirá-lo às lufadas. Era ali que ia acontecer. Num daqueles quartos, eu iria tomar o rosto dela nas minhas mãos e beijá-la em ambas as faces, depois iria sussurrar-lhe ao ouvido enquanto desapertava os botões do seu casaco, da blusa, os atilhos do corpete e de todas as desnecessárias e ridículas peças de vestuário que usavam as mulheres daquela época. Soltaria todas as esperanças que havia conservado num frasco e guardado na prateleira mais alta da minha vida. Mas aquela tarefa requeria um espírito delicado que a minha vida raramente tinha exigido. Como diria a minha avó: pode levar-se uma rosa a fazer quase tudo, até a crescer dentro de uma jarra de vidro, mas temos de o fazer com carinho, e era assim que eu teria de proceder. Ouvi-la sorrir e cortejá-la, tratá-la não como uma deusa, mas como uma mulher inteligente, demasiado esperta para se deixar levar pela lisonja. Tinha de ser cuidadoso. Teria de ir introduzindo muito lentamente os espinhos da minha vida nas espirais do seu coração. Uma mulher complexa tem de ser amada de uma forma mais elaborada.

Mas... não estou certo se seria exactamente assim. Vou mas é polir o toucador consola que hoje está um pouco mais fresco.

Torga


A vida podia ser só isto o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre este areal coberto de um sol intenso, um manto ondulado de água azul resplandecente, de onde esvoaça uma gaivota solitária, e mais dois seres silenciosos, escancarados, pasmados, a olhar e a ouvir o arrulhar das ondas. Mas não é. Temos pena. Eu e o Cão de pêlo pardo.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Grand Hotel

Ainda agora, enquanto me entretinha vagarosamente no restauro de um toucador muito antigo - que há-de vir a ser uma consola -,  olhava uma fotografia e a sua história também ela muito antiga e fico com a firme impressão de que o Grand Hotel mantém exactamente o mesmo aspecto de há quase um século atrás; a longa avenida de ciprestes que corta o sol em tiras, o próprio edifício do hotel semelhante a um enorme navio, cravejado de portadas verdes e varandas, os mastros com bandeiras esvoaçantes, o terraço com cadeiras de vime, onde certamente à noite uma orquestra, com fatos de corte militar em azul e branco tocava valsas, a sucessão alternada de guarda-sois que resguarda as mesas, as pessoas, pavões e estátuas oxidadas. Estou certo que noutros tempos os cronistas sociais escrevinhavam artigos, enquanto apreciavam as chegadas das celebridades, e que donas de bordel passavam por baronesas e empregadinhas do comércio, por debutantes.
Na piscina, certamente, existia uma rede que separava os homens das senhoras, uma espécie de véu, e era aí que raparigas e rapazes solteiros se conheciam. Ou nas varandas, muito tranquilamente, enquanto bebiam limonadas e observavam as tias velhas solteironas a chilrearem enquanto jogavam croquet. Imagino a calma estudada destas personagens de outrora. Que sitio mais engraçado para duas pessoas se apaixonarem!

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Conflagração


Eis senão que o meu olhar pousou na paisagem de fundo, um infinito horizonte sem problemas latentes, sem nenhum dos acidentes causados pela humanidade. Não isento de fogo, é certo. Mas sem terror, sem tragédias, sem inépcias, sem culpas. Sem desculpas...

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Refrigério

Aquela poderia ter sido a hora mágica das nossas vidas - a única altura em que poderíamos ter sido exactamente aquilo que gostaríamos de ser - e os deuses tinham-nos trazido, naquele momento dourado, o prémio mais desejado: descobrimos uma pequena loja de chã, onde entrámos, um lugar com paredes forradas a papel de veludo azul índigo com relevo e com cortinas corridas até meio, de modo que os vultos das pessoas que passavam na rua formavam uma espécie de jogo de sombras balinês no tecido amarelo dos maples onde estávamos sentados, silenciosos, cara a cara, olhos nos olhos, espectro no espectro...

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

E tu Impontual, o que vês da tua janela?

Caiu a canícula sobre a cidade, os citadinos caminham mais rígidos que de costume, ombros direitos, passo rectilíneo, carregam o peso de uma fatalidade impensável. As guitarras eléctricas calaram-se, está-se agora em Mozart e na sua perfeição tensa que atapeta as ruas. Instalou-se uma névoa que emite vagas calorificas muito acima do suportável. As horas invadiram a atmosfera para aí se desfiarem mais lentamente, pousando as suas voltas sobre as pedras ardentes dos edifícios. Gotas de suor, gargantas secas, a canícula estendeu os seus tentáculos sobre a cidade e impôs a sua disciplina. Gestos comedidos. Respirações contidas. Vive-se em poupança. Crânios abrasados, entre-pernas suados, desejos amolecidos, os corpos reagem e crepitam brandos. Enquanto os pensamentos se revestem de gelo e de cristais glaciares, cada qual segue como um ladrão de sombras, rasando paredes sem sol.

Mas, ainda há quem trabalhe em Agosto.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Prólogo

São cada vez menos os olhos que vêem o que ainda está escondido. Olhos infelizes, haveis visto de menos! A verdade é que as linhas começam a ter um traçado pouco definido, os extremos tornam-se flexíveis; as cores esbatem-se e como que flutuam, estão a ficar esbranquiçadas à luz e a perder a sua vitalidade. A sua camada fina distende-se. A Natureza fala, chora, pede socorro. O Homem é frágil e débil, à semelhança da civilização que erigiu em seu redor. Calado ainda avança decisões na noite escura das perguntas sem resposta. Estas parecem ser as características do retrato do mundo futuro. Está em marcha o processo de óxido-redução e da transformação dos haletos. Para já fica assim. Ainda se respira. Quem vier a seguir que ponha a máscara. Ou que feche a porta. Dou graças por não estar presente para ver essa fotografia.

Hoje arranca a volta a Portugal em bicicleta. Esta tarde temos um curto prólogo, seguem-se doze longas etapas. Abri os olhos.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Questiúncula

Mas... é só na politica que o Mal, a obra tenaz de Lucifer, consiste em fazer cair a sombra sobre homens e mulheres? numa imagem estável de si próprios, mas não necessariamente mortífera visto não estar cristalizada num eu definitivo que os impeça de ser outras figuras de si próprios, progredindo? Mas... e só na politica que, do pavor da cova dos falhados ao pavor encolhido, dilatado e novamente encolhido, adormecido mas não muito, à estratégia da esquiva, à retractilidade, à solução de reserva, ao coeficiente de segurança é um ápice? 

Sessão da Meia-Noite

Morte em Veneza - Luchino Visconti, 1971

 Ao ar livre, com a Teresa

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Telegrama para a Grécia

Querido Kostas,
Saber-te desesperado com a ideia terrivel de que as cinzas que tombam dos céus sãos os restos mortais dos vossos entes queridas, é para nós uma reminiscência recente muito forte. Por isso, é na mais elementar das solidariedades que te dirijo estas parcas palavras de conforto: ajudem-se uns aos outros, não exasperem à procura de culpados. 
Daqui por um ano vão perceber que a culpa afinal é vossa, e só vossa.
Ajudem-se uns aos outros.

Um abraço. Sincero.

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Palomar

O Senhor Impontual, acompanhado do Senhor Palomar, aguarda ansiosamente a passagem do Senhor da Boliiinhas.


Logo, logo... nos debruçaremos sobre a observação das ondas e dos aspectos complexos que concorrem para a sua formação. A seu tempo obrigaremos os nossos pálidos olhares a percorrer a praia com imparcial objectividade, de modo a que, mal o peito nu de uma mulher entre no nosso campo visual, se note uma descontinuidade, um desvio, um mero sobressalto na paisagem em torno daquelas dunas aureoladas.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Herberto



Nem sempre me incendeiam o acordar do sol atrás dos montes e a lua despenhada nos confins dos mares.

- Todavia, tu sempre me incendeias.

Mas de certo sou eu, numa ardente confusão de água e terra.

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Motel

Não digamos nada. Não vale a pena... mesmo na privacidade do nosso quarto, quando estivermos deitados, submergidos na luz listada, preta e branca, da meia-noite. É preciso muita imaginação para reconhecermos as mágoas das pessoas que consideramos felizes. As suas verdadeiras batalhas travam-se, como as das estrelas, num qualquer reino de luz, imperceptível para o olhar humano. Seria um feito demasiado da nossa inteligência adivinhar o que se passa no coração de outra pessoa.  Fodamo-nos. Apenas e só.