sábado, 18 de janeiro de 2020

De Al Berto a Luft, num ápice

Acordar com um corpo a seu lado. Passar ao de leve a mão no seu rosto adormecido, acompanhar com o dedo o contorno dos seus lábios, beijar suavemente o seu ombro e aconchegar-se nele: ali é o seu lugar no mundo. A angustia faz parte.
Eis a deriva, pela insónia, de quem se manteve vivo no túnel da noite.

sábado, 11 de janeiro de 2020

Palomar

A luz do sol da manhã fria empresta ao alpendre virado para o mundo uma atmosfera absolutamente deslumbrante. É quase nulo o ruído longínquo da civilização que aqui penetra. Ou nem penetra. É um silêncio inebriante. Enquanto o cão de pêlo pardo esgravata o relvado endurecido pela geada da manhã, o Senhor Impontual - homem que teima em rejeitar as emoções aguareladas - não deixa de cogitar que se não fosse o pavor da cova dos falhados, a estratégia da esquiva, a retractilidade perante os dias, o trabalho aturado da dupla solução, a múltipla alternativa para as situações imprevisíveis, a solução de reserva, o coeficiente de segurança, talvez todas as manhãs nascessem luminosas como a de hoje.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Anatomia de uma insónia

No regresso da casa de banho parei à entrada do quarto de dormir, cuja porta tinha empurrado com o pé. Olhava-a. Subindo enviesado ao longo da virilha e deixando uma perna destapada, o lençol parava a meia altura dos seus seios. A outra perna, dobrada, servia de prateleira sobre a qual estava colocado o livro de Borges "O Aleph", aberto no capitulo "O imortal". Ela chupava uma caneta banhada a prata com as iniciais "JM" gravadas. Mantinha o velho hábito de sublinhar tudo.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Pavlov

Há algo de velado nas manhãs soalheiras como a de hoje que é indubitavelmente pavloviano, não acham? Algo acerca do pensamento se nos tornar fugidio. Pergunto-me, absurdamente, se essa sensação ainda é concebível. Pergunto-me se as outras pessoas também ficarão ali encostadas às suas janelas, estáticas e alienadas, a olhar para as árvores despidas da rua com aquela sensação cómica de estarem a perder algo num outro lugar. E que esse lugar tanto pode ser no fim do mundo como no fim da rua.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Da conjugação do verbo acossar

@Elmer Batters

Não te estou perseguindo. Não é culpa minha que vás, antes de mim, ao mesmo lugar que desejo ir. E que esse lugar seja, simplesmente, o lugar em que te sentes melhor.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Inferência


Não há céu que de impoluto azul dure um ano inteiro.

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Desenlace

2019, desaparecer em silencio seria a maior das crueldades. Partir e deixar-te o peso de todas as dúvidas. Não que seja necessário explicar as razões porque se desaparece, mas sempre é necessário explicar porque não se fica. Há nessa partida súbita e calada um castigo insuportável, uma negação absoluta de tudo o que ficou para trás. E isso não pode ser. A ausência sem explicações é um peso que não te vou entregar de mão beijada. Ainda havemos de falar, nem que seja em 2020. Até lá.

sábado, 21 de dezembro de 2019

Postcrossing

A verdade é que continua a haver um ínfimo tremor naquele momento em que me aproximo da porta e toco a campainha: aquele olhar sereno, trespassado mortalmente pela nostalgia, que num reflexo de alegria me afaga a alma, um outro tempo a assumir de imediato um certo contorno, a ganhar forma, voz e vida própria. Um trecho de história continua a acontecer ali naquele instante, naquela fracção de segundo e eu sei perfeitamente qual é porque continuo a apanha-lo num voo planado vindo muito lá de trás, capto-o num movimento pendular, porque nele me deixo embalar numa tremenda, por vezes absurda, diria mesmo irracional miscelânea de doces recordações.
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Às vezes parece um mero voto circunstancial e meio chocho, mas se isso redundar em mais aproximação, mais afecto, mais felicidade, mais paz, mais solidariedade, mais qualquer coisa aí desse lado - desejo muito a todos.

Feliz Natal!

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Pluviometria

Nunca ninguém foi obrigado a exaltar as mulheres sem que estas estivessem nuas ou revestidas de milhares de adornos, a pinta-las sem ser em natureza-morta, sem ser em pintura de ilusão, a canta-las sem estar de pé, a exalta-las sem ser como cortesãs, a canta-las sem ser em lágrimas.

Não sei como me permiti exaltar-te assim, por trás desse enorme chapéu de chuva.

domingo, 24 de novembro de 2019

Dos voos

O mar, ao longe, lá em baixo, muito fundo, quase branco na bruma da manhã e a chuva a bater. Lá em baixo, ao fundo, o mar e o céu, cinzentos, fundem-se e só se distinguem um do outro pelo facto de os pássaros que se movem aí terem barbatanas.

Mas... quê? voar e deixar-te aqui? Nunca.

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(cisma apanhada num recanto dilecto)

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Sandra

Diz-me, muito convicta, que se a vida é um rio, então não é de estranhar que só nos apercebamos das mudanças que nela ocorrem quando já estamos perdidos no mais sombrio dos mares. Um dia acordamos e nada, em nosso redor, nos é familiar. Nem mesmo o nosso próprio rosto. Diz-me ainda que o seu nome já significou filha, neta, irmã, amiga, amada, mãe. Agora estas palavras querem dizer apenas aquilo que as suas letras compõem: uns rabiscos de luzes cadentes no céu nocturno.
Está numa situação que nunca imaginou que fosse possível. É uma pessoa que nunca sonhou ser. Um esquisso impreciso, porém. E é assim, um corpo e uma alma em fuga. Queimem-me, afoguem-me, mintam-me. Continuarei a ser quem sou. Sorrindo a tudo e a todos.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Sessão da Meia-noite


"La vie D'Adele" - Abdellatif Kechiche, 2012

Com a Alaska

sábado, 16 de novembro de 2019

Retalhos da vida no campo

Esta manhã quando o sol rompeu, do céu azul caía uma chuva miúda e transparente. Em dias como este, em que o sol e a chuva se abraçam na terra, diz-se com alegria que é para festejar o casamento dos viúvos, que o céu tem destes caprichos. Hoje, porém, um silêncio triste cobre o povoado e os rostos dos seus habitantes parecem cerrados para todo o sempre.
Quem parece não se importar muito com isso é o cão de pêlo pardo que, entretido com o vento, não pára de correr e de arfar com a língua de fora. Como se a noiva estivesse presa no horizonte. 
Está mas é um frio de rachar. 

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Palomar

O Senhor Impontual, com a chegada do frio, deu conta de algum défice na sua gaveta de interiores. Então, esta manhã, dirigiu-se a uma loja da especialidade. Enquanto esperava pela sua vez de ser atendido, o Senhor Impontual foi discretamente seleccionando algumas peças de pijama e simultaneamente deliciando-se a ouvir os magníficos nomes com que foram baptizadas as cuecas, os sutiãs e demais peças de roupa intima. Caleçon, slip, string, négligé, baby-doll, strappy, sungão tudo nomes magníficos. Sutiã e cuecas! Tem algum jeito? 
O Senhor Impontual até nem desgosta daquela posição de asa-delta, de busto direito e omoplatas salientes, que tomam os seus braços quando, a tactear nas costas, desapertam o sutiã. Nunca gostou foi do nome sutiã. Sutiã! Parece uma expressão de condutor de camião de trabalhos na via publica. 
É aflitivo quando depois de terem feito deslizar as rendas leve como um lagarto que chega ao seu buraco e as espessas borrachas, embebidas naquele odor característico, traçam um X nas costas e elas fazem rodar o sutiã para apanhar a abertura na frente, entre os seios, e desaperta-lo assim com mais facilidade. O Senhor Impontual acha inestético, mesmo vagamente inquietante, o breve instante em que, passado para as costas e de certa forma liberto das suas libras de carne, o sutiã, curtinho, fica pendurado através da sua coluna vertebral, como a albarda de um burro ou as protuberâncias de um camelo a morrer de sede. Ainda se fosse um strappy. Agora um sutiã!
slip, ou mesmo string, é diferente. Presta-se bem ao minúsculo bocado de tecido e à escorregadela sedosa entre as coxas. É até bonito contemplar com algum divertimento e ternura a maneira como se libertam do slip: inclinando-se primeiro para libertar uma perna, saltitando sobre o outro pé, deixando em seguida o bocadinho de tecido descer em hélice com a ajuda do pé ao longo da outra perna e, projectando final e bruscamente esta perna para a frente atirando o string ao acaso o mais longe possível. Tal como um passarinho com a asa ferida, agitada, palpitando, ele ali fica, na posição e no sitio exactos da queda, a agonizar até à manhã seguinte em que volta para a gaiola, debaixo da saia.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Pintar Novembro

Vem posar de dois em dois meses. Sempre no inicio do mês, sempre no inicio do dia, sempre a uma quarta-feira. Estamos em Novembro. Sabe que será severamente condenada pelo júri popular, sempre seguro da sua retaliação e dos valores que considera defender. A negligência socialmente criminosa prevalecerá, mas se puder sustentar o homicídio, não se privará disso. O júri popular não dispõe de qualquer prova de crime, mas no seu espírito, esse acto não suscitará dúvida nenhuma.
Fixo-a sem a julgar. Sei que nem é culpada nem inocente. Franzi ligeiramente os olhos. Não a absolvo. Não é a minha função. Não a amarguro. Não é o meu género. Franzi novamente os olhos. Não a interrogo. Trata-se de outra coisa que não a simples discrição. Outra coisa que não o tacto, também. Não espera de mim nada a não ser o meu silêncio e a minha presença, essa força natural.
Conservo a recordação exacta, física, da sua libertação. Foi como aliviar-se de um peso, acabar com o que não deveria ter sido, por-se em situação de dominar o seu destino, enfim. Há pessoas que levam tempo a tornar-se naquilo que são, naquilo que pretendem ser. Ela é uma dessas pessoas.

O retrato é perigoso. Preciso de fingir que sonho com o seu modelo. Apresso-me a impregnar tinta na tela. Respondo mesmo antes de a imagem emergir. Tenho ideias em catadupa. Esta viscosidade insistente não ajuda na secagem que se queria rápida.

domingo, 3 de novembro de 2019

Dos problemas dos homens e das mulheres, a verdadeira história

Enquanto lá fora a chuva e o vento, irrevogáveis, não paravam de se digladiar, começou por explicar-lhe as coisas como se ela fosse ele e ele fosse ela e não se soubesse onde acaba um e começa o outro. E dizia: é preciso rirmos muito, até sentir as costelas quase a estalar, ou é preciso chorarmos muito, até sentir que ficamos limpos e vazios, ou então é preciso ter um orgasmo, que visto de certo modo também é uma forma de nos lavarmos, esvaziarmos, endireitarmos as costelas e sairmos dali, daquilo, de nós.

sábado, 2 de novembro de 2019

Finados

Há pessoas que morreram, porque a vida era a única coisa que tinham. Outras morreram sem nunca terem tido uma vida. Outras morreram e deixaram muita vida.
Mas, vendo bem, qualquer pessoa que morre torna-se imortal porque já não pode voltar a morrer.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Dual Chip

Em tudo vida (até nos blogs!), da mesma maneira que és responsável pelas tuas palavras, deves ser responsável pelo teu silêncio. É preciso ficar vigilante. Das palavras, depois de as pronunciares, já não te podes queixar. Foi da tua boca que saíram essas palavras inimigas, essas palavras que te desfiguraram. De igual modo, o silêncio está no ar porque tu permitiste que lá esteja e, pouco a pouco, ocupe tudo em redor. Ocupe mesmo o teu lugar e cale em teu nome. E tu ali sentado, trajado de pedra, enorme silhueta quieta sobre a praça pública, como uma estátua recalcitrante, todo feito de ventos.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

A última palavra

Quantas e quantas vezes damos connosco a escutar a nossa voz perdida. Fala para si mesma, sem se lembrar de procurar do lado de fora, no longe dos espaços. Pronuncia palavras locais, onde há um desconforto no corpo, sem olhar para um além, para uma outra terra, para outras horas. Por vezes as contingências dessas palavras propõem uma involução no tempo - descida vertical da memoria presa de recordações, de rostos, de entidades queridas, de ritos amarelecidos. O tempo da história de cada um, para aí tentar encontrar as causas esquecidas dos males insidiosos e da felicidade palpável e impalpável. Revisita e questiona o tempo passado perdido no espaço do presente que ainda frui, intensamente. Quando a primeira pergunta deveria incidir sobre isso mesmo: "o que é que eu fiz"? Precedido da resposta: "pouco". Como última palavra. 

Uma cisma claramente subtraída de uma dissertação feita num jeito muito mais manso.