terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Entrudo

A aparência é a forma que Amélia encontra para que as outras pessoas não a vejam. Não adivinhem o seu mal-estar interior. Por isso criou para si mesma um personagem alegre, voluntário, enérgico, simpático, pimpão, sempre pronto a dar o exemplo, a dobrar-se à vontade de uns e outros a fim de afastar os raios que sente sempre prestes a brotar. O seu corpo contorce-se numa roda endiabrada, a sua boca deforma-se em sorrisos automáticos, os seus braços desenham anéis que lança em volta do pescoço daqueles cujas tempestades receia. Ignora a sua cólera, a raiva que a invade contra aqueles que se dilaceram diante de si. O tempo de um armisticio. Aprendeu a intervir como um bombeiro apressado, atirando baldes de bom humor sobre os rostos em chamas. Representa tão bem aquele personagem em perpétuo movimento, receando que se instale uma calma ameaçadora, um silêncio perturbador entre duas feras à espreita, degenerando em gritos, insultos, lágrimas, envio de projecteis e depois um bater de portas.
Amélia sabe misturar humor, folia e dor com uma extraordinária simplicidade.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Valentinos

Nenhum amor é perfeito. Mas a perfeição também é sempre detestável. Aquilo que adoramos mesmo são os defeitos.
A questão é: de todas as falhas, qual é que amas em especial?  E dizê-lo, dizê-lo devagar e em silêncio para que o possamos apreciar juntos durante a longa noite.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Palomar

O Senhor Impontual, um homem vencido pela contemplação e que nunca gostou de páthos, que sabe que todas as honras e as palavras elogiosas com que nos cobrem não passam de palha e que o que permanece é a voz destituida de ambiguidade, esperteza ou ironia, a voz herdada dos tempos vividos. Essa é a voz autêntica. Os disfarces e os artifícios não passam, afinal, de uma roupagem provavelmente necessária para cativar o ouvido, mas não são o essencial. O essencial grava-se no corpo e não na memória. As células do corpo lembram-se melhor do que a memória que foi feita para recordar. O Senhor Impontual gosta da contemplação porque esta não o sujeita a qualquer geografia estática. Mais ainda: permite-lhe alargar os seus limites ou elevar o objecto às alturas. Sem que para tal tenha de dizer uma única palavra. 

O Senhor Impontual esta manhã rompeu o confinamento e foi olhar o mar de perto. Era um mar plúmbeo, agitado, coberto de nuvens grávidas. Tão bonito, tão azul...

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Escala cinza



Hoje abriu uma nesga de sol. Enquanto faço uns rabiscos em escala maior e nos ouvidos tenho os The Cure com Lullaby, reparo que o casal de pombos voltou à tangerineira. Já tinha dado conta da chegada do pombo macho. Esteve por ali durante uns dias, só, calado, mudo, cinzento. Hoje, pela aurora, chegou o outro - a femea. Penugem luzidia. Igualmente cinzento. Cabeça bem levantada: eu sou a saudade toda-poderosa, deves tremer diante de mim, dar-me tudo porque sou insaciável, um ogre, um vampiro, uma assassina em serie de felicidades confessadas e anunciadas em voz baixa
As suas cantorias ainda são vãs e inábeis. Tentam elevar-se à altura da sua catedral, mas apenas conseguem volitar uns sons guinchantes e ocos, escarrados por goelas fatigadas. O silêncio e os seus corpos cinzentos, um encostado ao outro, monogâmicos, eis o seu dominio, o seu reino encantado onde inimigo nenhum conseguirá penetrar.
Entretanto apareceu o arco-iris.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Maiores e vacinados

Sempre atrás das redes hertzianas, ligados por cabo, satélite e fibra óptica, quais atendedores automáticos de chamadas, mentes miserandas de sinapses de fraca carga, recolhendo os versículos do quotidiano onde o licencioso se mistura com a pequena luxuria e os tráficos de toda a espécie, uma pobreza sem bandeira, um submundo perdido dos lugares de fronteira, a cavalo entre o passado comezinho e o presente mesquinho. 
Que puto de país! Que puta de gente! Era os alemães enviarem também a Gestapo.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Do livro da sabedoria

Depois da violencia dos nossos corpos atravessar o dique da linguagem, passando para além das palavras, para além de tudo o que possam dizer as palavras. E então só se ouvir o roçar da minha pele contra a tua, as goticulas de suor que rolam da tua pele para a minha, a tua língua que vem lamber essas mil goticulas, que sobe à minha orelha e repete incansavelmente: quero-te, já.
Depois de me pôr de joelhos entre as tuas pernas e enxugar o teu corpo dessa água que corre, dessa sede que jorra entre a tua pele e a minha, essa sede nunca saciada que encontra mil fontes novas em mil recantos escondidos dos nossos corpos espantados.
Depois de deixarmos a beira-mar, os seixos, os rochedos e andarmos à deriva na espuma suja das vagas, afogarmo-nos naquela água salgada, lambermo-nos, respirarmos, erguermos a cabeça para recuperar o folgo e partirmos para mais longe no desconhecido caminho maritimo dos nossos corpos, curto e cheio de tédio será o tempo das nossas vidas sem rememoração.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Por aqui ainda não há pássaros

As coisas parecem prosseguir como se eu não estivesse aqui. O meu estado de absoluta indiferença não me assombra nem me entristece. O trabalho absorve-me. Mas o silêncio, agora, é pegajoso. Húmido. Um silêncio húmido que ninguém interrompe, como que por temor. Nem os pássaros arriscam um pio. Tombou o silêncio e o silêncio parece querer vigiar tudo e todos: os homens, as mulheres, as ruas, a sombra imponente dos prédios, os animais, as árvores, os barcos, o rio. Provavelmente, o silêncio é uma forma imperativa de esquecimento. E bem precisamos de obliterar o tempo presente. Mas ... e quando já não houver mais nada para esquecer?

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Isto já depois do concerto do Nick Cave em Copenhaga

Nao posso deixar de admirar esta gente toda que, por opção, mergulhou de forma vertiginosa e assustadora no poço mais profundo da hipocrisia politica e por lá se vai deixar ficar, de olhos bem abertos, num exame escuro do populismo, tempo suficiente para perceber o que vê, o que toca: o horror, a angustia e a permanente sensação primordial do medo de ser humano, de estar vivo, de ter que viver e dar vida. Mas que, ainda assim, há-de encontrar um feixe de luz para intuir que um dia gostaria de cuidar de fazer do preto, do branco e do cinza amigos de todas as cores do arco-íris. Que puta de gente!

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Portugueses de bem

Para o Senhor Impontual, que se alimenta de sensações e de verdades que troca quando o cansam, as recordações são meros acessórios. Não as exorciza quando surgem, mas não as procura. De qualquer forma, o Senhor Impontual jamais abdica do seu centro de gravidade - o tempo em progressão, o tempo fugidio.
A vivência do Senhor Impontual seria medíocre, desprezível, se lhe bastasse saber que o sol se levanta de manhã, que as aves acordam e as flores abrem. Há muito que estes instintos, só por si, se silenciaram no Senhor Impontual.
Contudo, não surpreende o Senhor Impontual que, depois de terem vivido outras horas, os homens possam retomar o quotidiano vulgar e repousante. O Senhor Impontual não teme os indícios de retrocesso, as mentiras-refrão, as falsas promessas de mudança, uma profecia demagógica ou uma revelação, mas teme, e muito, a capacidade que os homens têm de as esquecer (as horas vividas), a coragem que têm de voltar ao seu velho mar morto.

domingo, 10 de janeiro de 2021

Prognóstico


A tarde cai fria, o sol e as nuvens esmagam-se contra o rio. O olhar, as palavras interiores e a imaginação retorcem-se até criarem paisagens inóspitas, alamedas sombrias de densos arvoredos, bosques carregados de espinhos. Pouco a pouco vão ficando poucas coisas em que pousar os olhos. Entretanto chega a noite e consigo vem o desvelo. E logo: a dúvida. A culpa e os culpados. A responsabilidade e os irresponsáveis. Por último: a angustia. O áspero som do silêncio a perfurar o pensamento. O espectro a pairar sobre a cabeça.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Dia de Reis

Foi estranho o que aconteceu: celebrei a vitória sobre o sonho dilacerado, exaltei a alegria de voltar ao meu velho mundo pleno de nuvens e enormes árvores despidas, enquanto o meu corpo transformado em fonte exuberante e fresca matava a obscura sede daquela Rainha, que outrora me humilhara e ferira, ao querer-me. 
Esta mescla de afrontas, de selvajarias e caricias, esta fusão de sonho e de vigília, do inconsciente e da recordação, de emoções e rebeliões do corpo, transformaram-me no espaço de uma noite num ser incansável no amor, renovando o prazer de uma carne flácida e gasta sobre a qual a calma descia como o crepúsculo sobre a noite. Pese embora a manhã se tenha apresentado branca, indiferente e eterna no horizonte.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Princípio de religação

Não vou agora aqui contar o dia em que o amor se apresentou involuntariamente, direi apenas que fui seduzido pelas maravilhas expostas naquela sala. Quanto a ela, amava em mim a perturbação. Mas isso agora não importa nada.
Há momentos em que a massa viva se coloca mais profundamente do que ela julga e por muito mais tempo do que ela desejava sob a alçada do outro.
Na verdade, para alguns homens e mulheres, as longas paixões são meras obsessões da experiência suprema em que o domínio de um ou do outro imprime, como um pesado sinete colocado no centro de gravidade, arrebatadas permutas mentais e físicas a que por vezes se pode designar de subsistência da alma.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Defluência

Ir ao encontro do mundo sem se ferir. Avançar nu, com uma pequena carapaça de desconfiança moldada pela bruma que veio atrás. Erradicar as primeiras baforadas de medo e incerteza. Vaguear pelos meses recusando a ideia da amargura. Descobrir-se diferente, mais vivo, longe das más expectativas. Soltar a pessoa menos cheia de certezas que sentia fremir dentro de si. Soltar uma verdadeira alegria interior a surpreender um tempo que se julgava infinito. Perceber que as cores e as emoções ainda não foram devoradas. Sentir o desejo de abraçar, prelúdio ao prazer. Abandonar o abrigo e observar de perto. Mergulhar nos outros. Embriagar-se de beijos rodeado por uma música interior. Sentir gosto em frequentar esse universo recauchutado sem se atolar em delírios de desgaste lento. Saúde.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Efeitos colaterais

Que é feito daqueles meus ouvidos nocturnos que eram um queixume ininterrupto, onde se acumulava o arfar dos bairros, o estralejar de camas, os suspiros pós-sincronizados de vozes e corpos sufocados, os ferrolhos que se corriam em quatro pontos e bloqueavam as entradas? Aqueles ouvidos nocturnos que atravessavam mares, margens de rios, ruelas e avenidas antes de tombarem na alcofa da noite onde ecoava a caricia suave de uma mão sobre o granulado de uma auréola que somente é audível para os amantes? Que é feito daquele estrondo quando milhões despem e afloram, quando os saltos altos tombam dos canapés, quando as ligas estalam, quando as rendas e fitas da amargura estremecem, quando os corpos aos milhões produzem as idas e voltas molhadas do amor, quando outras tantas bocas se humedecem da saliva de uma outra boca, de uma outra língua, quando as fruições irrompem da noite e se apaziguam? Eu, que de ouvidos adestrados, era um perito em localizar os decibéis amorosos do mundo e em misturar o tumulto dos motores de explosão mecânica dos prazeres, todas as noites escutava a banda sonora de um mundo invisível da qual gravava pulsões e respirações - qual estetoscópio avisado -, acordo agora com uma estranha, rígida e inimaginável ensurdecência. Para onde foi o amor? 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Flor de Natal

Ruiva, esbelta e nervosa, florescia. Os olhos claros, vivos, flamejavam, a intensidade do rosto iluminava-se sob a aura de uma magia facilmente decifrável. Sempre apressada, sem tempo para nada, trabalhava de manhã à noite, como sempre, mas agora, de repente, em tempo de advento, preocupava-se com a forma como se combinam os vestidos, os sapatos, a mala, as luvas, o penteado, o alinhamento das sobrancelhas e...  as rendas interiores.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Calendário do Advento

Em dias como o de hoje em que nos pedem que regressemos bem mais cedo do que é habitual e, ainda debaixo da luz do dia, o Senhor Impontual encontra a casa vazia, fria, triste, escura. Recolhe uns "cavacos" na arrecadação, acende a lareira lentamente e fica ali a ouvir os primeiros estalidos da lenha a queimar. Tira um copo e uma garrafa de Cognac de Charente do armário e deixa-os na borda fria da pedra que emoldura o recuperador de calor. Depois, quando o lume pega completamente, os pedaços de lenha começam a brilhar e uma chama tremulante, regular, começa a dançar por toda a sala, recolhe a garrafa e serve uma dose generosa daquele néctar à temperatura certa. Entre uns goles curtos, o Senhor Impontual acende um Arturo Fuentes, dá umas baforadas e deixa-se ficar por ali uns momentos de pé, como que a contemplar as chamas bruxuleando na vulnerabilidade da tarde pálida a ser tomada pela noite escura. Até que se senta na poltrona de orelhas alumiado apenas pela incandescência da lenha e deixa-se invadir pelas ondas sonoras do sistema nervoso e suas vibrações misteriosas. 
O Senhor Impontual não se permite olhar para trás. Se bem que as atribulações do mundo nos levem o pensamento para lugares onde a vida era feita de abraços. Os mundos de ontem, agora incessantemente revisitados, magnificados, auto-embelezam-se para se converterem em quimeras. O Senhor Impontual não revitaliza firmamentos de azul celeste, não recorda amabilidades, sorrisos de boas-vindas, langores outonais. Não recorda beatitudes, tempos de espírito sereno, de calma e de saciedade. Mas o mundo de hoje e os seus habitantes mudos, a chuva, as frieiras, o medo, as tormentas da ausência, a insónia, os suores nocturnos, os despertares ancilosados, a ansiedade de um regresso, projectam o olhar do Senhor Impontual num único sentido, uma verdade antiga: a vida possui esta característica essencial, o facto de não podermos prevê-la, antecipa-la. Não adianta fazer lucubraçoes. Com a certeza, porém, de para o ano a Senhora do Ferrero Rocher voltará dentro do seu tailleur amarelo e que ainda havemos de nos voltar a aborrecer bastante uns aos outros.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Brandos costumes

A esplêndida sala de jantar de estilo art deco está cheia de gente e ouvem-se sussurros por todo o lado. É espantoso como o mundo pode estar a inclinar-se no seu eixo e as pessoas continuarem ainda a andar direitas, a viver o seu dia-a-dia, a jantar em restaurantes, a fazer os seus planos, a cumprir tradições. Se não fosse o absurdo das máscaras cirúrgicas penduradas ao pescoço dos convivas elegantemente vestidos, podíamos pensar que a pandemia ameaçadora que paira do lado de fora não passava de uma ficção. Um tocador de piano enche a atmosfera de musica requintada e lá fora uns cedros oscilam com suavidade sob a luz colorida dos vitrais de uma das clarabóias por cima das suas cabeças. Na parede, o impávido relógio de caixa alta Boa Reguladora assinala vinte e três horas. Ainda a noite é uma criança. Janeiro não vem já.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Linha 1

Um homem que está à espera do eléctrico, com uma mala na mão e um jornal debaixo do braço, repara no jovem casal que sai do meio das árvores do jardim. A rapariga é extraordinariamente bonita, tem as roupas amarrotadas, os cabelos ruivos caem-lhe soltos sobre os ombros e as faces estão vermelhas como maçãs. Agarra na manga do casaco do seu jovem companheiro, diz-lhe qualquer coisa e pára. O jovem abana a cabeça em sinal negativo. Pega nas mãos da rapariga e fala-lhe com uma expressão séria. Depois, beija-lhe levemente os lábios, vira-se e afasta-se. É nessa altura que o homem vê ao fundo da rua o eléctrico a aproximar-se. É uma história intemporal, que se reconstitui e se repete sem cessar ao longo de séculos.  Nada se altera. Só o jovem casal é que não sabe disso.  
Por um instante, ela olha fixamente para o jovem rapaz, depois vira-se, por sua vez, e corre na direcção oposta. Salta para o eléctrico e deixa-se chorar, levemente.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Ajuntamentos

Normalmente éramos dois. Nós e o outro. Bem...às vezes éramos três. Nós, o outro e o fantasma. Agora, vendo bem as coisas, já somos quatro. Pelo menos. Porque o fantasma de certeza que também já tem o seu próprio fantasma. E o fantasma do fantasma...