O momento é sempre o mesmo e sempre novo, um instinto forte que anula a memória. Permanecer imóvel no instante, mesmo no coração do corpo, o lugar do princípio e do fim, agarrá-lo ali, a destempo, movermo-nos suavemente em toda a calma da carne, degustar de novo aquele instante trémulo, suste-lo, conhece-lo, saborear e deixá-lo soltar-se, o passarinho que retemos, o seu coração martelando na concha da mão, lançado livre para o ar. A morte há-de chegar da mesma forma, a tensão abandonando o corpo, em dor e não nesta doçura, mas uma última vez, o círculo que se completa, sem nunca ter de voltar atrás para agarrar o momento fugidio que é sempre igual, sempre em voo.
segunda-feira, 30 de janeiro de 2017
sábado, 28 de janeiro de 2017
Qwerty
Tem tudo para escrever a sua saudade. As letras
perfeitamente alinhadas, os dedos inclinados sobre as teclas, o silêncio da sua
voz, a nostalgia humedecendo-lhe a boca, a pele recordando-lhe caricias, a
música invadindo-lhe o mais recôndito e profundo patamar do âmago. Mas, não. A
página continua em branco como que a iludir a ausência. Não há palavras para
desenha-la. Apenas umas palpitações electrizantes no corpo todo. Um ou outro
soluço intermitente. Uma teimosia pacifica.
sábado, 21 de janeiro de 2017
Constança
Há um odor a vida nova, insistente, a libertar-se da sua pele, o cabelo a ondular como uma anémona-do-mar, o desejo a formar-se a partir do nada, do ar. Da mente, prisioneira de todos os anseios, há uma luz a projectar-se e as sombras crescendo em seu redor, tremeluzentes, fugidias, abraçando o agora e o nunca, cristalizando todas as células na incerteza se resistirá ao choque da noite morna e escura a dar lugar à luz branca da manhã fria. No espelho, uma ausência que se pronuncia.
quinta-feira, 19 de janeiro de 2017
Ainda por outro lado
...pegava agora mesmo na Nikon F60 analógica, introduzia um rolo 400 ISO e sairia ao seu encontro para fotografar em pormenor, mas com pouca luz, aquele corpo maduro completamente despido. Os seus ombros redondos e tonificados. A sua penugem de pêssego. Embriagar-me-ia no leve odor das suas axilas. Captava cada um dos sinais que tem nas costas. Registaria os seus cabelos de um ruivo muito suave bem como aquelas nádegas que são de um branco leitoso. Tomaria nota das marcas ali deixadas pelo aperto das minhas mãos, da vermelhidão e da velocidade com que a mesma desaparece. Sentiria o peso e a maleabilidade inesperados do seu peito quando se deita de costas, do tom suavemente corado dos seus mamilos e da forma como reagem ao mais leve dos toques. O umbigo delicado. O glorioso contraste entre o branco de porcelana da sua pele e o negro, como tinta permanente, dos pêlos púbicos que não são nem espessos nem finos. Guiaria as suas pernas, afastando-as, para lhe explorar o interior. A sua maturidade. A cor. O pulsar. Colocaria a cabeça entre as suas coxas e teria a noção da sua perfeição, sentindo o calor que daí emana como se saísse de uma fornalha intrincada... fechando-me por completo ao mundo exterior.
Mas não vai dar. Está um frio de rachar.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2017
Por outro lado...
Gianni Berengo Gardin, "Il bacio di Venezia"
segunda-feira, 16 de janeiro de 2017
Trilho
Gianni Berengo Gardin
sexta-feira, 13 de janeiro de 2017
Amência
O que me interessa nas pessoas são as suas virtudes ou os seus vícios. Nelas apenas procuro a sua faceta de anjo ou de demónio. Depois de as conhecer, normalmente, os enlaces mais fortes deixam-me frio. Ataca-me uma amência que me dá mil novos olhos para saborear a paixão ardente das coxas apartadas. Amo por demais a metafisica para não me aproximar desse abismo. Contudo, quanto mais me aproximo menos livre e dono sou dos meus pensamentos.
quarta-feira, 11 de janeiro de 2017
Advérbios de tempo
O tempo passa, as recordações esbatem-se e o que não se extingue para sempre perde intensidade e com a inevitável distância parece menos do que foi. Não há respostas. Não há que lamentar. Nenhuma palavra modifica o passado e nenhuma é exacta se se pronuncia quando o que se nomeia é passado e não o presente. No presente as palavras não existem. As palavras surgem mais adiante. É ter calma.
terça-feira, 10 de janeiro de 2017
Vácuo
O morte de Mário Soares trouxe a publico um rol de depoimentos de gente dos mais diversos quadrantes sobre a personalidade do ex- Presidente da Républica, falou especialmente gente da politica, gente do presente e do passado, gente da esquerda, gente do centro, gente da direita, gente que já não aparecia há muito, gente que está sempre a aparecer, gente que teve responsabilidade, gente que tem responsabilidade, gente que quer ter responsabilidade. É um facto, fica um vazio abismal.
segunda-feira, 9 de janeiro de 2017
quinta-feira, 5 de janeiro de 2017
quarta-feira, 4 de janeiro de 2017
Ainda agora... enquanto me entretinha no restauro vagaroso de uma cómoda antiga
Acontecia todas as manhãs de Junho a Setembro: inclinava-se e tocava levemente com os lábios no meu cabelo. Ainda estava de roupão, mas já se havia maquilhado e não queria estragar o baton dando-me um beijo a sério. O seu cabelo estava sempre escovado, penteado e arranjado, de tom castanho escuro embora a realidade no que respeita ao seu cabelo, é que ele era totalmente cinzento e ela pintava-o de castanho para que as pessoas não soubessem que ela era velha. Uma questão interessante era saber qual a verdadeira avó: quando ela punha os óculos ou quando os tirava, quando pintava o cabelo ou quando o deixava crescer grisalho, quando estava na banheira toda nua ou quando estava vestida com aquelas roupas bonitas, quando lia o Primeiro de Janeiro em voz alta e ralhava com as noticias ou quando avançava para a saleta dos maples de orelhas, que era só dela, e por lá passava a tarde embrenhada em cartas velhas, livros velhos, fotografias velhas de pessoas ainda mais velhas. Do avô emprestava-me a reminiscência de que era um homem alto e sem garbo, forte, com olhos avultados de sapo triste, tez branca e andar pesado. Que respeitava sempre as regras, sem questionar nada e era culto e habilidoso, com uma psicologia tenaz. Que quereria dizer a palavra verdadeira, era uma questão interessante, achava eu. Outra questão de grande interesse era quando ela retirava da frigideira um ovo mexido na perfeição, colocava-o no meu prato ao lado da torrada feita na perfeição e enchia-me um copo de leite com uma mistura de cevada fervida na perfeição e dizia: "come meu menino, tens de ser um homem".
domingo, 1 de janeiro de 2017
Annus Faustus
Uma vez que me foste apresentado, talvez comece por sentar-te em frente a uma lareira com lenha a crepitar histórias e momentos deste e de outros tempos. Depois o melhor é sair contigo para a rua e apresentar-te às pessoas. Aos que riem das nuvens que carregam o céu, aos que gostam de estar sentados na beira de um rio, aos que chegam sempre atrasados, aos que almejam subir montanhas, aos que têm um só caminho: descer vales e desfiladeiros, aos que se contentam em apreciar o mar revolto em dias de inverno, aos dos olhos fundos, aos que deambulam alegres pelos corredores das horas e dos dias perdidos. E depois, mas só depois, meter-te no bolso de trás das calças, desfazer a barba de cinco dias e sorver-te, venhas como vieres. Mas... não venhas com a mesma música do teu antecessor.
quarta-feira, 28 de dezembro de 2016
Amplexo
Aproximámo-nos e deixámo-nos cair na cama larga, lado a lado, em silêncio. Havia algo carregado de electricidade no mais fundo do seu peito e podia senti-lo dissipar-se lentamente. Coloquei os meus lábios na sua testa, depois na sua face e a seguir, empurrando-lhe a cabeça ligeiramente para trás, percorri-lhe o pescoço com a ponta da língua. O tempo transcorria em silêncio, depois ela soltou um profundo suspiro e sussurrou:
- quanto tempo demora fazer amor?
- quanto tempo demora fazer amor?
Os lábios que pronunciavam aquelas palavras respondiam suavemente aos meus. Enquanto as minhas mãos se moviam desajeitadamente debaixo da sua roupa. Numa cadência de movimentos suaves e lentos, acariciei-lhe o peito, senti a tristeza na sua pele branca, a sua excitação, o seu cheiro, o suor e os sons. A alma a perder as rédeas. O lume dentro de si. Um lume brando, mas em que não se podia tocar.
Tomei-a nos braços. Que mais havia de fazer?
terça-feira, 27 de dezembro de 2016
Unidade de queimados
Esta manhã acordei no inferno. Primeiro apenas sabia que tinha de escapar ao fogo na cama, depois ao fogo no chão e depois ao fogo no ar. Até correr para a porta não percebi: o fogo era eu, o fogo era eu próprio. E só fugindo de mim próprio conseguiria fugir das chamas. Havia ali forças com as quais não contava. Uma magia poderosa. Não pude impedi-la. Não quis evitá-la. Agora sou cinza.
terça-feira, 20 de dezembro de 2016
Acendalhas
Em dias como o de hoje em que me permito regressar bem mais cedo do que é habitual e ainda debaixo da luz do dia, gosto de encontrar a casa vazia, fria, triste, escura. Recolher uns "cavacos" na arrecadação, acender a lareira lentamente e ficar ali a ouvir os primeiros estalidos da lenha a queimar. Tirar um copo e uma garrafa de Cognac de Charente do armário e deixa-los na borda fria da pedra que emoldura o recuperador de calor. Depois, quando o lume pega completamente, os pedaços de lenha começam a brilhar e uma chama tremulante, regular, começa a dançar por toda a sala, recolho a garrafa e sirvo uma dose generosa daquele néctar à temperatura certa. Entre uns tragos curtos, gosto de ficar por ali uns momentos de pé, como que a contemplar as chamas bruxuleando na vulnerabilidade da tarde pálida a ser tomada pela noite escura e gélida. Até que me sento na poltrona alumiado apenas pela incandescência da lenha e deixo-me invadir pelas ondas sonoras do sistema nervoso. Vibrações misteriosas que se misturam com o lembrete aflitivo, também ele mental, de que ainda não comprei um único presente de Natal! A diversidade dos seus ecos atordoam-me, por assim dizer, o espírito. A memória, essa, distingue o meio ambiente de um tempo de certo modo longínquo, tempo esse que se dilui até se tornar teimosamente indiscernível. É certo que o tempo se transfigura sempre de acordo com o magnetismo das pessoas que o viveram, porque as coisas não têm outro significado, para cada um de nós, senão aquele que lhe podemos atribuir - as coisas são como são ou foram como foram. O Natal é que já não é grande coisa. Mas, enquanto houver lume e alguns sorrisos para manter vivos, ainda vai acontecendo.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2016
sábado, 17 de dezembro de 2016
Do clássico jantar de Natal
Era bonita. Muito bonita, mesmo. Alta, longas pernas, ombros redondos e lisos e uma pele de grão mate que convidava a beijos e outras navegações. Mas a fronte e os olhos eram perigosamente grandes. Tinha lábios de adolescente. Apenas as narinas diziam mais. O encanto do contraste, de uma surpreendente violência, entre o seu penteado de colegial e a agitação inconsciente, carnal, das suas narinas. Ficava tão bonita com o vestido púrpura. Bonita e calada. Se não compreendia, não falava, não cultivava por isso qualquer desalento ou angustia. Quando falava utilizava indubitavelmente exclamações; e os seus relatos eram demasiado técnicos para que deles me tenha apoderado; ou demasiado flutuantes para que a minha pena desajeitada consiga reproduzi-los aqui e agora. Mas a fronte e os olhos eram perigosamente grandes, asseguro.
[Já o Joel da informática, a Amélia dos recursos humanos, a Pipa do marketing e o Morais da logística...são uns pândegos.]
[Já o Joel da informática, a Amélia dos recursos humanos, a Pipa do marketing e o Morais da logística...são uns pândegos.]
quinta-feira, 15 de dezembro de 2016
Conchinha
No fundo é disso que gostamos uns nos outros: o lugar vazio que cada um abre para que ali cresçam e se anichem as fantasias do outro?
quarta-feira, 14 de dezembro de 2016
Enfunar
A verdade é que não existem planos que possam reger de maneira fiável o nosso relacionamento com os outros. Não há padrões fixos nem mesmo quando o sentimento primordial que nos governa seja o do afecto. Porque é que perante o mesmo estimulo, umas vezes reagimos com ira e outras com tolerância ou, inclusive, complacência? Porque é que às vezes uma coisa tão vulgar como contemplar alguém querido a segurar uma chávena de café pode precipitar-nos, segundo o dia, do agrado à repulsa extrema. Porque é que às vezes basta um olhar para que nos julguemos vacinados contra toda e qualquer desgraça futura e outras, pelo contrário, é precisamente o mesmo olhar o que faz com que nos afundemos na mais cega melancolia? Costumamos pensar em nós como seres imutáveis, baseados em códigos e gostos fixos, quando na realidade estamos em permanente luta connosco próprios. Dizemos frases como "amo-te" ou "não te suporto mais" e tendemos a crer que estas frases definem o nosso estado de alma, quando na realidade as alternamos como o vento - sempre em mudança de direcção.
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