quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Graça Fonseca

A identidade tal como a mentalidade não necessitam de palavras. A identidade, porque o seu elemento é a dissimulação e a sombra. A mentalidade porque não tem de alardear as suas acções. De resto, tudo certo.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Bóreas

Encontrávamo-nos no paredão junto à praia e não seguíamos para o areal, seguíamos para o prado para uma festa muito nossa. O vento de Agosto já baloiçava Setembro. Instalávamo-nos sob a mesma carvalheira, desembrulhávamos os nossos lanches enquanto o vento e a sua cauda de espaços entrava nas nossas bocas e assobiava nos nossos cabelos. Espalhávamos pasta de fígado em grandes pães e bebíamos pelo mesmo copo uma laranjada que, de tão fria, gelava os dentes. Fumávamos um Ritz subtraído ao avô, olhávamos os frémitos juvenis da erva verdejante, os frémitos de velhice do colmo amontoado. O vento, carrossel de gaivotas, volteava por cima do nosso fascínio e do nosso lanche. 
Parece que foi ontem!

terça-feira, 22 de agosto de 2017

E eu ali tão perto


Puxou-me pelo braço para o recato do sofá da sala. Diminuiu a intensidade da luz e do telemóvel para o televisor deu inicio à projecção de alguns vídeos. Queria falar-me do seu primeiro festival de música. Senti-lhe a alma dilatar-se. Começa por mencionar o quão pequena se sentiu no meio de tanta gente. Gente boa, referiu. Depois, descreve-me detalhadamente um tempo que lhe agradou particularmente - o lazer e diversão na zona fluvial enquanto aguardava pela hora dos concertos, a pacatez da paisagem, a inquietude da espera que se afrouxava a cada mergulho nas águas escuras do rio. Recorda a emoção desse momento, reforça o estado de alma, descreve-me a qualidade da música e do ambiente rural circundante. 
-- Ouve a limpidez desta interpretação, dizia-me a cada música que atirava para o televisor. E eu a ouvir Sinatra nas introduções e Nina Simone nas notas mais altas.
-- Repara na interacção com o público e na fidelidade deste a cada nota, a cada verso. Um público convertido, salientou. E eu a ouvir Etta James em At last.
-- Repara na fragilidade e na sensibilidade desta figura imensa, dizia-me com embargo na voz. E eu a ouvir Billie Holiday a interpretar majestosamente o Summertime.
-- Para o ano se calhar vou voltar, preconizou. E eu ali tão perto. 

sábado, 19 de agosto de 2017

Dia Mundial da Fotografia

Ela aceitava a homenagem sem se comprazer. Eu procurava sem isenção o sulco entre os seus seios. E nem o meu olhar hipócrita a fez fechar as bandas do roupão. O portal entre os seus olhos e os meus abriu-se: tínhamos encontrado a liberdade de olhar e querer.

__Diz que temos tempo. Di-lo.

A noite resfriava os nossos lábios juntos. Abraçámo-nos mas não nos pusemos ao abrigo da grande maré das horas, mas a noite no pátio do varandim, a noite na cidade deserta desabaram sobre nós.

__Tenho medo do tempo que passa, disse.

Ouvi um sussurro de uma massa de luto. Eram os seus cabelos negros que ela atirava para trás. Tirei partido do intenso desejo de uma rainha descomposta.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Imprecisões

A questão não é onde foi o último, mas sim onde vai ser o próximo.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Dança da chuva

Chego à sala de trabalho, ligo o computador, entro na caixa de correio e encontro um email atípico, recosto-me na cadeira e abro-o. As letras são grandes. Arial 16! As frases inseguras. Imprimo-o. Arrasto-me para a claridade do dia. A minha mente inicia um trabalho lento dentro da minha carapaça preguiçosa. O sol, apesar da minha sofreguidão, já não me tenta. O reflexo do céu já não consegue penetrar a minha pele tisnada, vozes doutorais e passos de calibre incerto ecoam pelos corredores, mas não têm a ressonância habitual.
Ó estações vindouras, dai-me os vossos farrapos. Fazei de mim um vagabundo de faces resfriadas pelo vento e de cabelos colados pela chuva. É o que vos peço. Depressa.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Canteiro


O olhar de Impontual, depois de ausência prolongada, pousou na paisagem de parede: nas solanum melongena e nas suas já abaçanadas beringelas, um infindo horizonte isento de terrores, sem problemas humanos, sem nenhum incidente causado pela natureza, sem slogans noticiosos, sem estandartes doutrinais, a confirmar que a Primavera escapou e que o Outono há-de vir quando ele muito bem entender.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Ainda Carver.


Não estou indo a lugar nenhum,
só estou indo...

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Preia-mar


Estranho sentimento este de fim de tarde que por vezes nos invade; de estarmos simultaneamente vazios e cheios a transbordar, tão carentes quanto repletos.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Outra vez Carver



Lentamente, elas vêm vindo.
O céu começa a clarear,
embora a lua ainda paire sobre a água.

Tanta beleza que por um instante
a morte e a ambição, mesmo o amor,
não se intrometem nisso.

Felicidade. Ela vem
inesperadamente. E vai além, na verdade,
de qualquer discurso sonolento.


segunda-feira, 24 de julho de 2017

Carver

Vem e conta-me um conto curto, vem e recita-me poesia, vem e diz-me que, como eu, tens medo. Medo de ter medo.


Medo de dormir à noite.
Medo de não dormir à noite.
Medo que o passado desperte.
Medo que o presente alce voo.
Medo de não amar e medo de não amar o suficiente.
Medo que esse dia termine com uma nota infeliz.

Ou então, ajuda-me a contar as ondas. Uma a uma.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Bach: Partitas para Violoncelo Solo

A aurora estremeceu nos meus sonhos. Aflorei e voei sobre os seus ombros com as mãos fulvas de Verão. Com grandes dardos lancei a claridade no ar, abanei as caricias, criei desenhos com a brisa marinha, embrulhei de zéfiros os nosso peitos, possuía rumores de lume na palma das mãos. Como era fácil entrar. A carne palpitava, o odor cristalizava. O fermento, as bolhas, o pão. O vaivém não era servidão mas beatitude. Perdi-me no seu peito como ela se perdia no meu. Como sonhou a minha boca aplicada! Que casamento de movimentos! Estávamos reluzentes de luz. A vaga veio como um explorador, embebedou os nossos pés. Arrependeu-se. Houve umas nuvens escuras que se esticaram, uma escuridão que se propagou nos nossos calcanhares. Esse desabar de doçura acabou. Eu tinha os joelhos em cinzas. 

terça-feira, 18 de julho de 2017

Inquérito de Verão

O céu está encoberto de um cinza uniforme e a luz, difusa, faz os contornos das coisas parecerem em ebulição. Não sei se meta o cão de pêlo pardo no carro, ponha o Intermezzo de Mascagni nas colunas de alta fidelidade e vá dar uma volta de mar ao fundo, ou se fique aqui embrenhado nos Almada Negreiros?

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Toda a gente sabe que isto dos blogs é coisa de Inverno...

Um fim de tarde de um calor absolutamente inconcebível, as ondas verdes e espumosas num vai e vem enrolado, repetido, certeiro e demolidor, golpeiam as areias implacavelmente. Constança longe de tudo, incluindo de si mesma, escreve sobre o areal fino e dourado uma e outra vez uma só palavra, um mesmo nome, que as ondas se encarregam de apagar, ou se quisermos de limpar, repetidamente. Será uma questão de tempo para se saber quem ganhará esta batalha interminável, pensava. A luta não é desigual: as ondas são eternas, as palavras também, retorquía para dentro.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Que mania esta!


A de procurar sempre uma desculpa para adiar o momento de saber que o amor não é um pecado nem um milagre, mas um facto tão simples que explica, entre outros prodígios, os obscuros esplendores, os três tristes tigres, as florestas em chamas, os olhares perdidos, as cidades deixadas para trás, as árvores nos jardins, os mares e as secretas travessias, o movimento da terra, os paraísos, a transparência do ar, as paixões perdidas em tempo de cóleras, as flores ocultas da poesia e a história universal da infâmia no reino maravilhoso deste nosso mundo.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Previsão meteorológica para quatro manhãs. Eis a segunda.

Pra que me meteria eu a ver por onde ia a vida
que dei por onde ia
e não em meu favor!

Eu perdi a vez de ser simples,
perdi a vez feliz de ignorar
perdi a sábia ignorância,
perdi a graça de não saber.
Deixei passar a vez de ir na corrente
e de ser como toda a gente
às carambolas da sorte.


Eu perdi a vez de ser analfabeto,
esse segredo para não ser doutor
e para não saber também
o que as letras sabem
do mundo e de mim.

Eu perdi a vez de ser da multidão
(esta comodidade por mim perdida);
já deixei de fazer parte,
inteiro o destino me fez
inteiro a vida me tornou.

Os meus gestos metade são meus
e metade ainda da multidão.

Eu incomodo-me a mim-próprio,
é pequeno o meu corpo para mim!
Sou pior do que eu-próprio
ou eu-próprio não caibo em mim?

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Compósito.

Era sem duvida alguma uma mulher muito elegante, mas o seu rosto ao sorrir parecia ter sido construído a partir de uma série de pessoas diferentes. 

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Bernardes Carvalhosa

Esta manhã bem cedo, depois de um abraço bem apertado e em menos de um café tomado ao balcão, Bernardes Carvalhosa dizia-me com alguma mágoa no sorriso sempre aceso que lhe é característico, que poucas vezes terá gostado de mulheres que não tivessem gostado de si. Que nem sabia se isso aconteceu alguma vez, porque geralmente as mulheres, quase todas, gostavam dele. Crê até que tenham gostado de si muitas vezes mais do que as que deviam, às vezes só as que não deviam. Mas que o que sempre lhe interessou não era a impressão que causava nas outras pessoas, mas sim a impressão que elas causavam em si. Que a sua vivência não é, nem nunca foi, apesar de tudo, uma vivência libertina, é uma vivência de sentidos. Mas que o seu problema - talqualmente o meu, diz Bernardes Carvalhosa - é quando se abrem portas entre as nossas e as suas bocas. 

Ainda agora, já para lá do meio-dia, embrenhado cá nos meus aborrecimentos profissionais, continuo a tentar recordar-me se aquele circuito Amesterdão-Berlim-Praga foi em 93 ou 95. Mas creio que foi em 93.

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Chegado a este grau de amadurecimento...

 

...julguei bem já estar em condições de, de uma vez por todas, decidir qual destas canções é a da minha vida. Mas não. Ainda estou verde.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

As Quatro Estações para violino e orquestra

Esgueirou-se para dentro da cama. Tinha tido um arrepio. Ia ter calor. Encostou a cabeça ao ombro. Estendi-lhe o rosto. A mão banhou-me o peito do lado do coração. Recitava sonatas de Outono. Os dedos voltearam pela carne entusmecida deixando uma linha de fogo. De onde vinha aquela onda de calor? Desceu. Despiu o meu braço, parou junto da veia, à volta do sangradouro, desceu até ao pulso, até à ponta das unhas, tornou a vestir o meu braço com uma comprida luva aveludada. A mão passeava por entre o balbuciar dos montes brancos, por entre os últimos nevoeiros, por entre a goma dos primeiros rebentos. A Primavera que tinha pipilado de impaciência na minha pele explodia em linhas, em curvas, em arredondados. Beijava tudo o que tinha acariciado e depois, com a mão suave, despenteava e sacudia com a pluma da perversidade. O polvo das minhas entranhas estremecia. Eu bebia com ela, amamentava-me das trevas sempre que a sua boca se afastava. Os dedos regressavam, circundavam, sopesavam o calor do peito, os dedos acabavam no meio do ventre como destroços hipócritas. A sua face hibernou no côncavo da virilha, avistei os seus cabelos espalhados, avistei o meu ventre chovendo estrelas. Como a caricia é magistral! Os meus olhos fechados escutavam a língua que aflorava a pérola. Avançava, recuava, sufocava, zangava o polvo nas entranhas, perfurava a nuvem dissimulada, parava, voltava a partir, esperava junto das vísceras.

Voei, agarrei no bico os flocos de pura lã presos nos espinhos da sebe. Os meus beijos escorregavam uns por cima dos outros. Lancei-me nos escombros da ternura. As mãos tomaram o lugar dos lábios fatigados. Aprendi o aveludado da sua pele, o resplendor da sua carne, o infinito das suas formas. Subi. O céu mendigava. A mão pousou na minha cabeça: um sol tímido de Verão branqueou os meus cabelos. Alisei os seus.