quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Ponta-de-lança

Não há nada tão excitante como experimentar aquela sensação de ter alguém pela frente sem qualquer capital de ideias mas com os bolsos recheados de euros e, sem hesitar um instante, escrever na toalha que se encontra sobre a mesa uma cifra com seis zeros, provocatória - isto é quanto vale. Cobrir o numero com um risco e acrescentar: mas o projecto é seu. E depois com um impulso repentino, entrelaçar os dedos das mãos, pousar o queixo sobre elas e ficar ali a ver a seta já lançada a voar em direcção ao alvo com a certeza de que lhe imprimimos uma trajectória infalível, mas que ainda assim lá mais para o final do mês o nosso soldo terá uma variável de crescimento incompatível e os vencedores serão outros, os do costume, os palmadinhas nas costas.
É por isso que gosto muito de futebol, o único sector de actividade onde o operário ganha mais que o administrador.

domingo, 27 de agosto de 2017

Cortázar

Vem brindar comigo: não mataremos a sede, ela nos matará.

sábado, 26 de agosto de 2017

Palomar

O Senhor Impontual desperta às oito horas da manhã de um Sábado com o intuito de regar o relvado, sequioso, vitima de seca prolongada. Estende a mangueira, abre a torneira da água e, no momento exacto em que esta jorra a primeira torrente, dos céus tombam lentos e sintonizados uns pingos grossos que por momentos se intensificam, desaparecendo. 
O Senhor Impontual, com o seu olhar invertido, contempla agora as nuvens errantes que se escondem atrás da colina. Mantém-se vigilante, livre de toda e qualquer certeza.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Graça Fonseca

A identidade tal como a mentalidade não necessitam de palavras. A identidade, porque o seu elemento é a dissimulação e a sombra. A mentalidade porque não tem de alardear as suas acções. De resto, tudo certo.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Bóreas

Encontrávamo-nos no paredão junto à praia e não seguíamos para o areal, seguíamos para o prado para uma festa muito nossa. O vento de Agosto já baloiçava Setembro. Instalávamo-nos sob a mesma carvalheira, desembrulhávamos os nossos lanches enquanto o vento e a sua cauda de espaços entrava nas nossas bocas e assobiava nos nossos cabelos. Espalhávamos pasta de fígado em grandes pães e bebíamos pelo mesmo copo uma laranjada que, de tão fria, gelava os dentes. Fumávamos um Ritz subtraído ao avô, olhávamos os frémitos juvenis da erva verdejante, os frémitos de velhice do colmo amontoado. O vento, carrossel de gaivotas, volteava por cima do nosso fascínio e do nosso lanche. 
Parece que foi ontem!

terça-feira, 22 de agosto de 2017

E eu ali tão perto


Puxou-me pelo braço para o recato do sofá da sala. Diminuiu a intensidade da luz e do telemóvel para o televisor deu inicio à projecção de alguns vídeos. Queria falar-me do seu primeiro festival de música. Senti-lhe a alma dilatar-se. Começa por mencionar o quão pequena se sentiu no meio de tanta gente. Gente boa, referiu. Depois, descreve-me detalhadamente um tempo que lhe agradou particularmente - o lazer e diversão na zona fluvial enquanto aguardava pela hora dos concertos, a pacatez da paisagem, a inquietude da espera que se afrouxava a cada mergulho nas águas escuras do rio. Recorda a emoção desse momento, reforça o estado de alma, descreve-me a qualidade da música e do ambiente rural circundante. 
-- Ouve a limpidez desta interpretação, dizia-me a cada música que atirava para o televisor. E eu a ouvir Sinatra nas introduções e Nina Simone nas notas mais altas.
-- Repara na interacção com o público e na fidelidade deste a cada nota, a cada verso. Um público convertido, salientou. E eu a ouvir Etta James em At last.
-- Repara na fragilidade e na sensibilidade desta figura imensa, dizia-me com embargo na voz. E eu a ouvir Billie Holiday a interpretar majestosamente o Summertime.
-- Para o ano se calhar vou voltar, preconizou. E eu ali tão perto. 

sábado, 19 de agosto de 2017

Dia Mundial da Fotografia

Ela aceitava a homenagem sem se comprazer. Eu procurava sem isenção o sulco entre os seus seios. E nem o meu olhar hipócrita a fez fechar as bandas do roupão. O portal entre os seus olhos e os meus abriu-se: tínhamos encontrado a liberdade de olhar e querer.

__Diz que temos tempo. Di-lo.

A noite resfriava os nossos lábios juntos. Abraçámo-nos mas não nos pusemos ao abrigo da grande maré das horas, mas a noite no pátio do varandim, a noite na cidade deserta desabaram sobre nós.

__Tenho medo do tempo que passa, disse.

Ouvi um sussurro de uma massa de luto. Eram os seus cabelos negros que ela atirava para trás. Tirei partido do intenso desejo de uma rainha descomposta.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Imprecisões

A questão não é onde foi o último, mas sim onde vai ser o próximo.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Dança da chuva

Chego à sala de trabalho, ligo o computador, entro na caixa de correio e encontro um email atípico, recosto-me na cadeira e abro-o. As letras são grandes. Arial 16! As frases inseguras. Imprimo-o. Arrasto-me para a claridade do dia. A minha mente inicia um trabalho lento dentro da minha carapaça preguiçosa. O sol, apesar da minha sofreguidão, já não me tenta. O reflexo do céu já não consegue penetrar a minha pele tisnada, vozes doutorais e passos de calibre incerto ecoam pelos corredores, mas não têm a ressonância habitual.
Ó estações vindouras, dai-me os vossos farrapos. Fazei de mim um vagabundo de faces resfriadas pelo vento e de cabelos colados pela chuva. É o que vos peço. Depressa.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Canteiro


O olhar de Impontual, depois de ausência prolongada, pousou na paisagem de parede: nas solanum melongena e nas suas já abaçanadas beringelas, um infindo horizonte isento de terrores, sem problemas humanos, sem nenhum incidente causado pela natureza, sem slogans noticiosos, sem estandartes doutrinais, a confirmar que a Primavera escapou e que o Outono há-de vir quando ele muito bem entender.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Ainda Carver.


Não estou indo a lugar nenhum,
só estou indo...

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Preia-mar


Estranho sentimento este de fim de tarde que por vezes nos invade; de estarmos simultaneamente vazios e cheios a transbordar, tão carentes quanto repletos.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Outra vez Carver



Lentamente, elas vêm vindo.
O céu começa a clarear,
embora a lua ainda paire sobre a água.

Tanta beleza que por um instante
a morte e a ambição, mesmo o amor,
não se intrometem nisso.

Felicidade. Ela vem
inesperadamente. E vai além, na verdade,
de qualquer discurso sonolento.


segunda-feira, 24 de julho de 2017

Carver

Vem e conta-me um conto curto, vem e recita-me poesia, vem e diz-me que, como eu, tens medo. Medo de ter medo.


Medo de dormir à noite.
Medo de não dormir à noite.
Medo que o passado desperte.
Medo que o presente alce voo.
Medo de não amar e medo de não amar o suficiente.
Medo que esse dia termine com uma nota infeliz.

Ou então, ajuda-me a contar as ondas. Uma a uma.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Bach: Partitas para Violoncelo Solo

A aurora estremeceu nos meus sonhos. Aflorei e voei sobre os seus ombros com as mãos fulvas de Verão. Com grandes dardos lancei a claridade no ar, abanei as caricias, criei desenhos com a brisa marinha, embrulhei de zéfiros os nosso peitos, possuía rumores de lume na palma das mãos. Como era fácil entrar. A carne palpitava, o odor cristalizava. O fermento, as bolhas, o pão. O vaivém não era servidão mas beatitude. Perdi-me no seu peito como ela se perdia no meu. Como sonhou a minha boca aplicada! Que casamento de movimentos! Estávamos reluzentes de luz. A vaga veio como um explorador, embebedou os nossos pés. Arrependeu-se. Houve umas nuvens escuras que se esticaram, uma escuridão que se propagou nos nossos calcanhares. Esse desabar de doçura acabou. Eu tinha os joelhos em cinzas. 

terça-feira, 18 de julho de 2017

Inquérito de Verão

O céu está encoberto de um cinza uniforme e a luz, difusa, faz os contornos das coisas parecerem em ebulição. Não sei se meta o cão de pêlo pardo no carro, ponha o Intermezzo de Mascagni nas colunas de alta fidelidade e vá dar uma volta de mar ao fundo, ou se fique aqui embrenhado nos Almada Negreiros?

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Toda a gente sabe que isto dos blogs é coisa de Inverno...

Um fim de tarde de um calor absolutamente inconcebível, as ondas verdes e espumosas num vai e vem enrolado, repetido, certeiro e demolidor, golpeiam as areias implacavelmente. Constança longe de tudo, incluindo de si mesma, escreve sobre o areal fino e dourado uma e outra vez uma só palavra, um mesmo nome, que as ondas se encarregam de apagar, ou se quisermos de limpar, repetidamente. Será uma questão de tempo para se saber quem ganhará esta batalha interminável, pensava. A luta não é desigual: as ondas são eternas, as palavras também, retorquía para dentro.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Que mania esta!


A de procurar sempre uma desculpa para adiar o momento de saber que o amor não é um pecado nem um milagre, mas um facto tão simples que explica, entre outros prodígios, os obscuros esplendores, os três tristes tigres, as florestas em chamas, os olhares perdidos, as cidades deixadas para trás, as árvores nos jardins, os mares e as secretas travessias, o movimento da terra, os paraísos, a transparência do ar, as paixões perdidas em tempo de cóleras, as flores ocultas da poesia e a história universal da infâmia no reino maravilhoso deste nosso mundo.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Previsão meteorológica para quatro manhãs. Eis a segunda.

Pra que me meteria eu a ver por onde ia a vida
que dei por onde ia
e não em meu favor!

Eu perdi a vez de ser simples,
perdi a vez feliz de ignorar
perdi a sábia ignorância,
perdi a graça de não saber.
Deixei passar a vez de ir na corrente
e de ser como toda a gente
às carambolas da sorte.


Eu perdi a vez de ser analfabeto,
esse segredo para não ser doutor
e para não saber também
o que as letras sabem
do mundo e de mim.

Eu perdi a vez de ser da multidão
(esta comodidade por mim perdida);
já deixei de fazer parte,
inteiro o destino me fez
inteiro a vida me tornou.

Os meus gestos metade são meus
e metade ainda da multidão.

Eu incomodo-me a mim-próprio,
é pequeno o meu corpo para mim!
Sou pior do que eu-próprio
ou eu-próprio não caibo em mim?

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Compósito.

Era sem duvida alguma uma mulher muito elegante, mas o seu rosto ao sorrir parecia ter sido construído a partir de uma série de pessoas diferentes.