Há dias em que se acorda e parece que estivemos em centenas de lugares todos ao mesmo tempo: estações de caminho-de-ferro, aldeias longínquas, beira-rios, mares salgados. Todos esses sítios tinham nomes, mas não nos lembramos de um único desses nomes. Às vezes parece-nos um vasto prado que se confunde com o céu, outras vezes uma floresta sombria que se prolonga indefinidamente dentro da escuridão, e outras ainda uma fila comprida de pessoas, da qual algumas caem de vez em quando e são pisadas pelos outros todos.
quinta-feira, 14 de setembro de 2017
segunda-feira, 11 de setembro de 2017
Núpcias
Vaguear pelos meses em doces nostalgias, recusar durante longo tempo a ideia do amor e embriagar-se de amargura. Depois, sem se curar da recordação, descobrir-se diferente, mais vivo, longe das expectativas, interessado na pessoa menos cheia de certezas que sentia fremir dentro de si. Horas maravilhosas de solidão, uma espécie de lua-de-mel consigo mesmo. Uma verdadeira alegria interior a surpreender aquele desgosto que se julgava infinito, naquele momento em que as cores e as emoções ainda não foram devoradas pelo calor. Sentir o desejo de agradar a si mesmo, prelúdio ao prazer. Mergulhar em si próprio, rodeado por uma música interior, construir um abrigo e às vezes elevar-se para observar de longe. Sentir mesmo gosto em frequentar esse universo alargado de pessoa só, sem se atolar em delírios de desgaste lento.
sábado, 9 de setembro de 2017
quinta-feira, 7 de setembro de 2017
Emulação
Enquanto a geração cabeça baixa tecla, posa, fotografa e volta a teclar fazendo chegar ao Mundo os seus mundos, faço um considerável recuo mental e dou comigo da idade deles, num tempo em que fervilhava em mim a mesma vitalidade que a borboleta deve sentir ao sair da crisálida. Em que o que queria era experimentar a embriaguez permanente que me permitia todas as audácias. Falar com raparigas, caminhar enlaçando-as pelos ombros, beija-las, acariciar os seus incríveis seios, introduzir a mão por baixo das suas saias perturbadoras e, quando a sorte me sorria, atingir realmente o fim, sentir a demasiado breve electrocussão que fazia de mim um homem e me autorizava, chegado o momento, a regressar a casa de cabeça erguida.
Por ora deixo-me com um pé no rio, um livro, dois dedos de conversa para dentro, uma cerveja, a música no ouvido.
Por ora deixo-me com um pé no rio, um livro, dois dedos de conversa para dentro, uma cerveja, a música no ouvido.
quarta-feira, 6 de setembro de 2017
Cartilha Oligárquica
Demos graças a Deus por vivermos no litoral, termos nascido e vivermos no melhor destino europeu do ano com a piscina mais bonita da Europa e com a zona ribeirinha mais visitada... ou por actualmente morarmos no sítio onde a Madonna, a Bellucci e o Fassbender se andam a passear e onde os reformados mais ricos do mundo se querem fixar.
O que seria de nós se vivêssemos numa aldeia ou vila do interior, onde além de ficarmos sem tribunais, escolas, bancos, correios ou hospitais ainda corríamos o risco de morrermos assados, perdermos os nossos bens e entes queridos devido à incúria dos que vão governando e desgovernando o país, que ainda teriam a lata de dizer-nos também ser nosso, e que tivéssemos confiança nas instituições sociais?
terça-feira, 5 de setembro de 2017
Temos então dois grupos
O primeiro grupo, que é extraordinário, é composto por uma espécie de iluminados que defende que a desigualdade de género está na paleta de cores e que por isso urge erradicar o rosa e o azul.
Depois temos um segundo grupo, que não é tão extraordinário nem tão original, que defende que na paleta de cores não há limites e que o vermelho não é uma cor una e por isso permite descrever todo o espectro de cores que vai desde o rosa chã ao azul celeste, mas que nós portugueses não estamos culturalmente preparados para isso.
Einstein na sua rara genialidade dizia que "há duas coisas sem limite, o universo e a estupidez humana...". Aqui falámos especificamente de estupidez humana.
Naturalmente, há quem (muitos) por especial atributo possa pertencer aos dois grupos em simultâneo. Quem diz em simultâneo diz em menos de um fósforo.
Einstein na sua rara genialidade dizia que "há duas coisas sem limite, o universo e a estupidez humana...". Aqui falámos especificamente de estupidez humana.
Naturalmente, há quem (muitos) por especial atributo possa pertencer aos dois grupos em simultâneo. Quem diz em simultâneo diz em menos de um fósforo.
quinta-feira, 31 de agosto de 2017
Pirose
O ressentimento é uma sopa espessa que se pousa nos lábios, passa pela boca e pelo esófago e vai ancorar-se no estômago. E por ali fica, em ebulição constante.
quarta-feira, 30 de agosto de 2017
Ponta-de-lança
Não há nada tão excitante como experimentar aquela sensação de ter alguém pela frente sem qualquer capital de ideias mas com os bolsos recheados de euros e, sem hesitar um instante, escrever na toalha que se encontra sobre a mesa uma cifra com seis zeros, provocatória - isto é quanto vale. Cobrir o numero com um risco e acrescentar: mas o projecto é seu. E depois com um impulso repentino, entrelaçar os dedos das mãos, pousar o queixo sobre elas e ficar ali a ver a seta já lançada a voar em direcção ao alvo com a certeza de que lhe imprimimos uma trajectória infalível, mas que ainda assim lá mais para o final do mês o nosso soldo terá uma variável de crescimento incompatível e os vencedores serão outros, os do costume, os palmadinhas nas costas.
É por isso que gosto muito de futebol, o único sector de actividade onde o operário ganha mais que o administrador.
É por isso que gosto muito de futebol, o único sector de actividade onde o operário ganha mais que o administrador.
domingo, 27 de agosto de 2017
sábado, 26 de agosto de 2017
Palomar
O Senhor Impontual desperta às oito horas da manhã de um Sábado com o intuito de regar o relvado, sequioso, vitima de seca prolongada. Estende a mangueira, abre a torneira da água e, no momento exacto em que esta jorra a primeira torrente, dos céus tombam lentos e sintonizados uns pingos grossos que por momentos se intensificam, desaparecendo.
O Senhor Impontual, com o seu olhar invertido, contempla agora as nuvens errantes que se escondem atrás da colina. Mantém-se vigilante, livre de toda e qualquer certeza.
quinta-feira, 24 de agosto de 2017
Graça Fonseca
A identidade tal como a mentalidade não necessitam de palavras. A identidade, porque o seu elemento é a dissimulação e a sombra. A mentalidade porque não tem de alardear as suas acções. De resto, tudo certo.
quarta-feira, 23 de agosto de 2017
Bóreas
Encontrávamo-nos no paredão junto à praia e não seguíamos para o areal, seguíamos para o prado para uma festa muito nossa. O vento de Agosto já baloiçava Setembro. Instalávamo-nos sob a mesma carvalheira, desembrulhávamos os nossos lanches enquanto o vento e a sua cauda de espaços entrava nas nossas bocas e assobiava nos nossos cabelos. Espalhávamos pasta de fígado em grandes pães e bebíamos pelo mesmo copo uma laranjada que, de tão fria, gelava os dentes. Fumávamos um Ritz subtraído ao avô, olhávamos os frémitos juvenis da erva verdejante, os frémitos de velhice do colmo amontoado. O vento, carrossel de gaivotas, volteava por cima do nosso fascínio e do nosso lanche.
Parece que foi ontem!
terça-feira, 22 de agosto de 2017
E eu ali tão perto
Puxou-me pelo braço para o recato do sofá da sala. Diminuiu a intensidade da luz e do telemóvel para o televisor deu inicio à projecção de alguns vídeos. Queria falar-me do seu primeiro festival de música. Senti-lhe a alma dilatar-se. Começa por mencionar o quão pequena se sentiu no meio de tanta gente. Gente boa, referiu. Depois, descreve-me detalhadamente um tempo que lhe agradou particularmente - o lazer e diversão na zona fluvial enquanto aguardava pela hora dos concertos, a pacatez da paisagem, a inquietude da espera que se afrouxava a cada mergulho nas águas escuras do rio. Recorda a emoção desse momento, reforça o estado de alma, descreve-me a qualidade da música e do ambiente rural circundante.
-- Ouve a limpidez desta interpretação, dizia-me a cada música que atirava para o televisor. E eu a ouvir Sinatra nas introduções e Nina Simone nas notas mais altas.
-- Repara na interacção com o público e na fidelidade deste a cada nota, a cada verso. Um público convertido, salientou. E eu a ouvir Etta James em At last.
-- Repara na fragilidade e na sensibilidade desta figura imensa, dizia-me com embargo na voz. E eu a ouvir Billie Holiday a interpretar majestosamente o Summertime.
-- Para o ano se calhar vou voltar, preconizou. E eu ali tão perto.
sábado, 19 de agosto de 2017
Dia Mundial da Fotografia
Ela aceitava a homenagem sem se comprazer. Eu procurava sem isenção o sulco entre os seus seios. E nem o meu olhar hipócrita a fez fechar as bandas do roupão. O portal entre os seus olhos e os meus abriu-se: tínhamos encontrado a liberdade de olhar e querer.
__Diz que temos tempo. Di-lo.
A noite resfriava os nossos lábios juntos. Abraçámo-nos mas não nos pusemos ao abrigo da grande maré das horas, mas a noite no pátio do varandim, a noite na cidade deserta desabaram sobre nós.
__Tenho medo do tempo que passa, disse.
Ouvi um sussurro de uma massa de luto. Eram os seus cabelos negros que ela atirava para trás. Tirei partido do intenso desejo de uma rainha descomposta.
sexta-feira, 18 de agosto de 2017
quinta-feira, 17 de agosto de 2017
Dança da chuva
Chego à sala de trabalho, ligo o computador, entro na caixa de correio e encontro um email atípico, recosto-me na cadeira e abro-o. As letras são grandes. Arial 16! As frases inseguras. Imprimo-o. Arrasto-me para a claridade do dia. A minha mente inicia um trabalho lento dentro da minha carapaça preguiçosa. O sol, apesar da minha sofreguidão, já não me tenta. O reflexo do céu já não consegue penetrar a minha pele tisnada, vozes doutorais e passos de calibre incerto ecoam pelos corredores, mas não têm a ressonância habitual.
Ó estações vindouras, dai-me os vossos farrapos. Fazei de mim um vagabundo de faces resfriadas pelo vento e de cabelos colados pela chuva. É o que vos peço. Depressa.
Ó estações vindouras, dai-me os vossos farrapos. Fazei de mim um vagabundo de faces resfriadas pelo vento e de cabelos colados pela chuva. É o que vos peço. Depressa.
quarta-feira, 16 de agosto de 2017
Canteiro
O olhar de Impontual, depois de ausência prolongada, pousou na paisagem de parede: nas solanum melongena e nas suas já abaçanadas beringelas, um infindo horizonte isento de terrores, sem problemas humanos, sem nenhum incidente causado pela natureza, sem slogans noticiosos, sem estandartes doutrinais, a confirmar que a Primavera escapou e que o Outono há-de vir quando ele muito bem entender.
segunda-feira, 14 de agosto de 2017
terça-feira, 8 de agosto de 2017
quarta-feira, 2 de agosto de 2017
Outra vez Carver
Lentamente, elas vêm vindo.
O céu começa a clarear,
embora a lua ainda paire sobre a água.
Tanta beleza que por um instante
a morte e a ambição, mesmo o amor,
não se intrometem nisso.
Felicidade. Ela vem
inesperadamente. E vai além, na verdade,
de qualquer discurso sonolento.
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