segunda-feira, 11 de junho de 2018

Com cumprimentos ao Cão Grande


Nestes tempos em que o existencialismo anacrónico ousa pisar o terreno do romantismo desacreditado, Fiódor - o cão de pêlo pardo - não acredita no amor convencional, mas também ainda não encontrou um substituto para esse sentimento. É a metafísica paradoxal. Deixa, porém, um aviso intemporal:  cuidado com os subterrâneos dos desejos, que as suas janelas estão sempre escancaradas.

sábado, 9 de junho de 2018

Insónia

Bocarra aberta que aspira o vivente para depois expelir miséria. Sorvedouro. Tudo ali se transforma, o ar, o ruído, o grito. Tudo se apresenta, tudo se exalta. Indiferente, sem pudor, caminha sobre a sombra dos transeuntes como se tudo se espezinhasse. Lugar sem meio, migrante, flutuante ao sabor dos terminais do pensamento, ao sabor das horas e picos de reflexão, campo aberto onde se extasiam fragmentos. Queixume ininterrupto. Às vezes noite-encontro, os amantes nas suas caçadas esgueiram-se pelos becos sem saída, caricias dóceis, o esperma jorra, o prazer é tão curto.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Quando vier a Primavera, se eu já estiver morto, as flores florirão da mesma maneira *


* Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa - Poemas Inconjuntos

terça-feira, 5 de junho de 2018

Polinómio

O facto de termos a mais baixa taxa de natalidade da Europa, representada numa média de 1,3 nascimentos por mulher, aliado ao facto de estarmos a produzir uma média diária de lixo na ordem dos 1,3 kgs per capita, o que representa uma dramática subida da produção anual, poderá deixar-nos de certo modo optimistas, quanto ao futuro, perante o facto de metade dos alunos do primeiro ciclo não conseguir saltar à corda ou efectuar uma cambalhota simples com saída para a frente e a outra metade não saber apontar Portugal num mapa?

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Graciosa


Enquanto lá fora o céu, baixo, esvaziava o seu ventre, os seus excrementos, num aguaceiro amarelo de enxofre vulcânico semelhante à urina, invadiu-a um desejo cheio de fervilhantes impaciências. Os excessos daquela natureza oceânica que crepitava sob gotas grossas, fazia eco aos seus enormes apetites. Indiferente a tudo, Graciosa sentia agora não só a febre de comer aquele homem, aquela fome indescritível que por vezes sentem as mulheres inconclusas, mas também a de ouvir, inteirar-se das lavas internas, daquilo que assoma para fundar uma pessoa, ir de uma alma a outra, partilhar o dom da oferenda reciproca da fala, da escuta e... da absolvição.

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Aventar



"Assim eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência."

__Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas

terça-feira, 29 de maio de 2018

Decidi vós. Decidi bem.

Pode ser um instante. O fim do sofrimento. Uma réstia de dignidade. O derradeiro êxtase num momento de esplendor luminoso, como deve sentir um homem que salta da ponta de uma falésia indo cair sobre rochas longínquas, almofadadas. Ou como um criminoso, atirado para a eternidade pelo empurrão do carrasco, voando sobre o silêncio da multidão vendo tudo, compreendendo tudo, uma luz intensa, um ar calmo, depois o vento a quebrar as ondas sobre a cabeça, a luz aumentando, o corpo a pairar, lá em cima, e a zumbir de dormência. O espírito passeando-se em grandes latitudes. A vida trespassada pelo morno de um último arrepio. Uma hesitação. Uma recusa em voltar. Um renovado calafrio a cristalizar o momento final. O descanso eterno.

Mas... não sei. Tenho dúvidas. Muitas dúvidas. Decidi vós. Decidi bem.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Impontual também dedica meia-dúzia de linhas à incontornável temática dos primeiros amores

Fatigados por um dia inteiro, sentir perfeitamente que aquela ideia nos proporciona uma onda de prazer, não deixando de ser embaraçosa, mas ainda assim deixarmo-nos levar totalmente por essa emoção ambivalente. À nossa volta a paisagem luminosa a desaparecer no crepúsculo. Já mordiscados pelas sombras azuis, sob um céu ainda suspenso, onde se aglomeram algumas nuvens de cor purpura prestes a apagar-se na noite inquieta, não sabermos como ignorar aquilo, cuja beleza conquistada à força da vontade era a própria expressão das nossas expectativas. Pensarmos que ainda há quem saiba amar os outros enquanto outros não possuem, nesse particular, qualquer talento especial, e que isso também faz parte das coisas ocultas que ainda não sabíamos que sabíamos.

sábado, 26 de maio de 2018

You'll Never Walk Alone

Que o destino tenha sempre aquela singular preferência pela repetição. Não sei se é o destino ou a natureza. A vossa natureza. Mas deve ser por aí que se explica a curiosa persistência no ontem: o passado a voltar sempre como presente. Quantas e quantas vezes como futuro. Assim seja mais logo à noite.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

De Ingres a Pomar, num ápice

Pele branca e resplandecente de mulher deitada em sofá de tecido aveludado. O silêncio quebrado pelo som da sua respiração suave e compassada. Devagar, em movimentos brandos, deixar os dedos deslizar pelas suas costas, contornando os ombros, descendo pela linha da coluna até às nádegas arredondadas de odalisca, onde pousar os lábios em beijos repetidos até senti-la estremecer. Vê-la voltar-se, devagar, ainda entorpecida pelo sono e sorrir. Excitado pelo corpo nu e quente, beija-la na boca, sofregamente, as mãos à solta pelas curvas dos seios, pelo baixo-ventre, entre as coxas, acariciando, esfregando, penetrando…

Ela

Entre um “nunca” e um “quem sabe”, via sempre um fio de esperança. Era aí que se apegava. Com devoção. Como faz a jibóia ao abraçar a sua presa. E ainda hoje, já depois do tempo, não quer deixá-lo ir até que os seus lábios moribundos lhe sussurrem ao ouvido: “quero-te”.

Evocação

"Será que devemos todos fecharmo-nos e mantermo-nos enclausurados como fazem os escritores solitários, numa cela à prova de som, evocando as pessoas através das palavras e, depois, afirmar que essas evocações estão mais próximas da realidade do que as pessoas reais que destroçamos com a nossa ignorância, dia após dia? Mantém-se o facto de que o compreender as pessoas não tem nada a ver com a vida. O não as compreender é que é a vida, não compreender as pessoas, não as compreender, não as compreender, e depois, depois de muito repensar, voltar a não as compreender. É assim que sabemos que estamos vivos: não compreendemos. Talvez o melhor fosse não ligar ao facto de nos enganarmos ou não sobre as pessoas e deixar andar. Se conseguirem fazer isso - estão com sorte." 

Philip Roth, in "Pastoral Americana"

terça-feira, 22 de maio de 2018

São as flores do meu jardim

Naturalmente, detalhar arbitragens intimas e obscuras deixará a quem não nos conhece a sensação de que somos, no mínimo, estranhos; mas não somos mais que os homens e as mulheres que, do Porto a Sidney, ziguezagueiam todos os dias entre os seus receios. Os seres humanos são assim, hábeis em dissimular as restrições invisíveis que criam, a calar os precipícios irreais que o seu espírito doente lhes faz ver, de tal forma estão convencidos de que existem as impossibilidades em que acreditam. Nesse aspecto, sou uma pessoa vulgar, penetrada por demências não inferiores àquelas que dominam a espécie no seu conjunto. E depois?

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Locução

"Burro"!
Não há palavra como esta para se vociferar para dentro. "Burro". Que sonoridade!
Provoca uma implosão interna dos sentidos, depois induz um sono profundo e restaurador. Não tem contra-indicações. Não deixa ressaca. Embora não elimine a causa da insónia. "Burro". Que palavrão!

Património

Perdeu-se hoje, talvez, a maior reserva moral deste país. 
António Arnaut (1936-2018).

sábado, 19 de maio de 2018

Palomar

O Senhor Impontual, homem impaciente e pouco dado a este tipo de acontecimentos, não pode deixar de indagar sobre a importante temática que envolve o casamento do Valete britânico.
Mas não lhe basta indagar por indagar, fruir da beleza envolvente, da azafama televisiva  que assaltou o mundo e todo o seu glamour. É necessário compreender os aspectos complexos que concorrem para que assim seja. Se não fosse esta sua impaciência por alcançar conclusões definitivas, o tomar conhecimento destes eventos seria para o Senhor Impontual um exercício muito repousante e poderia, inclusive, salvá-lo da neurose que é estar retido em casa com uma forte constipação à conta de uma magnifica aragem marítima que tomou a noite passada. Agora assim, talvez depois da sesta o Senhor Impontual volte a terras de sua majestade - desta vez a Wembley.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Não olvideis a recuperação da espada*

A mente a vibrar - uma corda -, as palavras, tal como as ideias, a ressoar entre si, harmonizando-se, amplificando-se, desunindo-se. Velocidade, tempo real, tudo pulula de toda a parte no único fito, não confessado, de tentar o desprendimento: já não ser, já não fazer parte, aniquilar, aniquilar-se, experimentar ainda uma vez e outra os corpos, a sua resistência, ir à beira do abismo, admirá-lo e, como se a terra estivesse a cessar de existir, lançar-se nele para saber uma e outra vez, quiçá uma derradeira vez, o que será um fim em beleza. Acolhendo-o, cadáver irremissível. Recolhendo-a, baça e ímpia.

* claramente baseado numa ordem de uma capitã de mar e terra.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Não sei se já tinha dito isto?

Ter um tipo a presidente de um clube grande, como é o Sporting, mais fanático que o mais boçal dos adeptos é um perigo à solta.

Acho que já. Já de certeza. Absoluta.

sábado, 12 de maio de 2018

Palomar

Numa época em que todos se esforçam por parecer o que não são, o Senhor Impontual, que adquiriu o hábito de aos sábados de manhã passar os olhos pela blogosfera em geral e ler os atrasados em particular, não pode deixar de formular um pensamento, precedido de forte convicção, de que não há-de ser fácil viver incrustado na própria estupidez, flagelando-se, retocando ali e acolá a maquilhagem social que esconde as equimoses da alma, impedindo-se a si mesmo de experimentar o que sente, como que para melhor evitar a decepção de se ver apenas como ele próprio: a náusea que oculta sob um exterior animado, o riso forçado ou a fixação na preservação das suas feições de perpétuo jovem e de todo um simulacro geral de entusiasmo. 
Mas pior ainda há-de ser aceitar as vertigens e os remorsos do espírito, mesmo apresentando-se no instante crucial, convenientemente, diante do abismo como se este fosse insondável - que não é.
O Senhor Impontual tencionava esta manhã fazer um corte e uma rega geral nos relvados circundantes, mas esta noite choveu. Talvez vá dar banho ao cão.  

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Passei a manhã toda a fotografar árvores velhas


Oitenta anos de respirações e rebentamentos de estames, tem que se lhe diga! Exclamo. Como bons e leais servidores da máquina humana, a ONU ou Unesco deveriam condecorar estas árvores, medalha do Grande Mérito, em nome do planeta inteiro, a humanidade reconhecida. Saltaram de um século para o outro sem perjúrio, nem transtorno de maior e contornando toda a espécie de humilhações. Pequenas promessas não cumpridas, amores desfeitos, o olvido. Terão produzido mais lágrimas do que sorrisos, passado mais tempo a sair ilesas das garras da melancolia do que refasteladas em camas de rede ao sol. E nós, aqui e agora, a batermo-nos cheios de volúpia com a matéria humana, o orgulho, a vaidade, o que impele sem descanso a tentar ser aquilo que se não é.