Quando o tempo e o espaço deixaram de ser uma confusão onde os nossos corpos se moviam entrelaçados, sem atender a outras considerações que não a do seu impulso perseguindo o prazer, atirou-se para um lado e procurou a sua mala no chão. Em vez de voltar às incidências da ausência, passou-me uma cigarrilha, pegou na dela e falamos do passado não partilhado, histórias mil vezes ouvidas que sem duvida repetiríamos. Quando apagamos as cigarrilhas, apagou também a luminária da mesa-de-cabeceira, voltou-me as costas para que a abraçasse e continuamos a falar até que as palavras foram perdendo paulatinamente coerência. No momento em que não me respondeu, percebi que tinha adormecido. Desfiz o abraço, dei-lhe um beijo nas pregas que se formavam no pescoço e fiquei de barriga para cima. Olhei pela janela, mas custou-me a encontrar a lua, apenas um reflexo cavernoso num céu cada vez menos aveludado. Choveu.
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020
Do amor entre as mulheres
_ Tu não podes compreender, Impontual, tu és homem. Amar uma mulher é para mim uma coisa simples. Primitiva. Poderosa. Arrasadora. Por vezes, viciosa. Uma relação clara e transparente: ela é como eu e eu sou como ela. Um homem pelo contrário, tem sempre um fundo falso, não diria falso mas frágil, que me atrai e simultaneamente me repele. Até com o corpo fala outra linguagem. Nunca me consegui perder completamente com um homem. Mas deixa lá. No fundo, eu entendo, a culpa é minha e só minha. Às vezes é como se não tivesse um corpo. Ninguém que me abrace, ninguém que me afague os cabelos, ninguém que me acaricie, ninguém que durma comigo e nem sequer uns olhos que olhando para mim vestida saibam como é a minha pele, os meus seios, o meu baixo-ventre, a minha humidade e aquela força que me brota das entranhas em lava incandescente.
_ Quer que a leve a casa?
_ Quer que a leve a casa?
terça-feira, 4 de fevereiro de 2020
Coarctação
Teima em não permitir que as vagas do interior aflorem à superfície. É mais civilizado afoga-las, embora quem aprende a reprimir-se encontre uma recompensa imediata, mas não acabará por reprimir só o supérfluo. A invulnerabilidade não existe, mas sim a sua ilusão, e não há maior ilusão de invulnerabilidade do que a que sente quem é capaz de se convencer que a catástrofe não o atinge. O inconveniente, é que tanto desprendimento torna-se inalcançável e geralmente a repressão, longe de talhar uma invulnerabilidade real, não representa mais do que uma defesa muito parecida à da terra queimada, a táctica de quem não tem outra forma de se defender do que ceder o seu território com a pretensão de que o inimigo se sacie e não alcance o centro onde se encontra. Quem assim actua, não é invulnerável. É tão vulnerável que se desprende do que lhe pertence, e no final o perigo não se detém e chega às portas da cidade, carecerá de exércitos e barreiras para lhe fazer frente. Reduz o campo da sua vulnerabilidade, mas não a elimina. Prescinde de quase tudo, inclusive do que não devia, e no final o que fica por defender é tão pouco que se reduz ao seu próprio medo.
Suponho que não me levará tão a mal como isso se no fim de contas, espontaneamente, lhe perguntar: Quem és tu?
Suponho que não me levará tão a mal como isso se no fim de contas, espontaneamente, lhe perguntar: Quem és tu?
sábado, 1 de fevereiro de 2020
sábado, 25 de janeiro de 2020
Palomar
À sua volta a luz acinzentada parece consumir o próprio ar que se respira. À direita, bastou-lhe olhar para as vinhas que se estendem pela encosta até à margem do rio para sentir, como se fosse um bicho faminto sob a frescura daquele ar, o cheiro acre, saboroso, das videiras banhando-se primeiro de geada e depois do sol manso da manhã. Nesta altura não se percebe se são arbustos vivos, se empedernidos por décadas e décadas de geadas e de sol. Plantas imóveis, agarradas à terra, parecem esqueletos calcinados à espera de um vento mais forte que as arranque dali.
O Senhor Impontual está estarrecido, mas não em dispneia.
O Senhor Impontual está estarrecido, mas não em dispneia.
quinta-feira, 23 de janeiro de 2020
Holocausto
Deve doer esta "revivência" sempre terrível do holocausto. Não sei como há gente que o faz, em modo turístico, discursando em disputas amargas e tomando café e chã em Auschwitz - ali no ponto zero do mais abjecto pedaço de história da humanidade. Que mais? que uma flor no arame farpado?
quarta-feira, 22 de janeiro de 2020
Poligamia
A verdade é que a cada segundo da nossa vivência nos cruzamos com alguém e esse alguém traz sempre uma mensagem. Encontros fortuitos são coisa que não existe. Só que o modo como respondemos a esses encontros é que determina se estamos à altura de recebermos a missiva. E, na maioria das vezes, não estamos.
sábado, 18 de janeiro de 2020
De Al Berto a Luft, num ápice
Acordar com um corpo a seu lado. Passar ao de leve a mão no seu rosto adormecido, acompanhar com o dedo o contorno dos seus lábios, beijar suavemente o seu ombro e aconchegar-se nele: ali é o seu lugar no mundo. A angustia faz parte.
Eis a deriva, pela insónia, de quem se manteve vivo no túnel da noite.
sábado, 11 de janeiro de 2020
Palomar
A luz do sol da manhã fria empresta ao alpendre virado para o mundo uma atmosfera absolutamente deslumbrante. É quase nulo o ruído longínquo da civilização que aqui penetra. Ou nem penetra. É um silêncio inebriante. Enquanto o cão de pêlo pardo esgravata o relvado endurecido pela geada da manhã, o Senhor Impontual - homem que teima em rejeitar as emoções aguareladas - não deixa de cogitar que se não fosse o pavor da cova dos falhados, a estratégia da esquiva, a retractilidade perante os dias, o trabalho aturado da dupla solução, a múltipla alternativa para as situações imprevisíveis, a solução de reserva, o coeficiente de segurança, talvez todas as manhãs nascessem luminosas como a de hoje.
quinta-feira, 9 de janeiro de 2020
Anatomia de uma insónia
No regresso da casa de banho parei à entrada do quarto de dormir, cuja porta tinha empurrado com o pé. Olhava-a. Subindo enviesado ao longo da virilha e deixando uma perna destapada, o lençol parava a meia altura dos seus seios. A outra perna, dobrada, servia de prateleira sobre a qual estava colocado o livro de Borges "O Aleph", aberto no capitulo "O imortal". Ela chupava uma caneta banhada a prata com as iniciais "JM" gravadas. Mantinha o velho hábito de sublinhar tudo.
quarta-feira, 8 de janeiro de 2020
Pavlov
Há algo de velado nas manhãs soalheiras como a de hoje que é indubitavelmente pavloviano, não acham? Algo acerca do pensamento se nos tornar fugidio. Pergunto-me, absurdamente, se essa sensação ainda é concebível. Pergunto-me se as outras pessoas também ficarão ali encostadas às suas janelas, estáticas e alienadas, a olhar para as árvores despidas da rua com aquela sensação cómica de estarem a perder algo num outro lugar. E que esse lugar tanto pode ser no fim do mundo como no fim da rua.
terça-feira, 7 de janeiro de 2020
quinta-feira, 2 de janeiro de 2020
terça-feira, 31 de dezembro de 2019
Desenlace
2019, desaparecer em silencio seria a maior das crueldades. Partir e deixar-te o peso de todas as dúvidas. Não que seja necessário explicar as razões porque se desaparece, mas sempre é necessário explicar porque não se fica. Há nessa partida súbita e calada um castigo insuportável, uma negação absoluta de tudo o que ficou para trás. E isso não pode ser. A ausência sem explicações é um peso que não te vou entregar de mão beijada. Ainda havemos de falar, nem que seja em 2020. Até lá.
sábado, 21 de dezembro de 2019
Postcrossing
A verdade é que continua a haver um ínfimo tremor naquele momento em que me aproximo da porta e toco a campainha: aquele olhar sereno, trespassado mortalmente pela nostalgia, que num reflexo de alegria me afaga a alma, um outro tempo a assumir de imediato um certo contorno, a ganhar forma, voz e vida própria. Um trecho de história continua a acontecer ali naquele instante, naquela fracção de segundo e eu sei perfeitamente qual é porque continuo a apanha-lo num voo planado vindo muito lá de trás, capto-o num movimento pendular, porque nele me deixo embalar numa tremenda, por vezes absurda, diria mesmo irracional miscelânea de doces recordações.
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Às vezes parece um mero voto circunstancial e meio chocho, mas se isso redundar em mais aproximação, mais afecto, mais felicidade, mais paz, mais solidariedade, mais qualquer coisa aí desse lado - desejo muito a todos.
Feliz Natal!
quarta-feira, 27 de novembro de 2019
Pluviometria
Nunca ninguém foi obrigado a exaltar as mulheres sem que estas estivessem nuas ou revestidas de milhares de adornos, a pinta-las sem ser em natureza-morta, sem ser em pintura de ilusão, a canta-las sem estar de pé, a exalta-las sem ser como cortesãs, a canta-las sem ser em lágrimas.
Não sei como me permiti exaltar-te assim, por trás desse enorme chapéu de chuva.
Não sei como me permiti exaltar-te assim, por trás desse enorme chapéu de chuva.
domingo, 24 de novembro de 2019
Dos voos
O mar, ao longe, lá em baixo, muito fundo, quase branco na bruma da manhã e a chuva a bater. Lá em baixo, ao fundo, o mar e o céu, cinzentos, fundem-se e só se distinguem um do outro pelo facto de os pássaros que se movem aí terem barbatanas.
quarta-feira, 20 de novembro de 2019
Sandra
Diz-me, muito convicta, que se a vida é um rio, então não é de estranhar que só nos apercebamos das mudanças que nela ocorrem quando já estamos perdidos no mais sombrio dos mares. Um dia acordamos e nada, em nosso redor, nos é familiar. Nem mesmo o nosso próprio rosto. Diz-me ainda que o seu nome já significou filha, neta, irmã, amiga, amada, mãe. Agora estas palavras querem dizer apenas aquilo que as suas letras compõem: uns rabiscos de luzes cadentes no céu nocturno.
Está numa situação que nunca imaginou que fosse possível. É uma pessoa que nunca sonhou ser. Um esquisso impreciso, porém. E é assim, um corpo e uma alma em fuga. Queimem-me, afoguem-me, mintam-me. Continuarei a ser quem sou. Sorrindo a tudo e a todos.
terça-feira, 19 de novembro de 2019
segunda-feira, 18 de novembro de 2019
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