sexta-feira, 3 de julho de 2020

Quarta fase de desconfinamento

Nem sabia muito bem porque aceitara o convite. Na verdade, admitiu, fora para mitigar a intensidade do desejo que sentia por ela. Toda a noite enquanto fazia conversa de circunstância, não parara de pensar em leva-la para a cama e fode-la com força e poucas palavras. O desejo, adormecido até aí, tomara-o de novo de assalto com rudeza. Enquanto ela falava, estivera sentado com um pau inquieto dentro das calças, a imaginar que lho punha na boca, que lhe beliscava os mamilos, que lhe mordia o lóbulo da orelha, que a encostava à parede, que lhe enfiava os dedos, que se servia daquela carne de todas as maneiras e feitios durante toda a noite, até se libertar daquela estranha atracção, e depois refugiar-se-ia novamente no confortável vazio que até então não tivera vontade alguma de quebrar.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Palomar


O Senhor Impontual perscruta o horizonte e pensa: se calhar, outrora, tudo se fazia de acordo com as estações, e as pessoas apresentavam-se duas vezes por dia para verem aparecer e desaparecer o astro-rei. Qualquer homem era todos os homens: uma vontade livre, um dever coordenado pelo seu entendimento do bem e do mal. Hoje, as coisas extinguem-se ou transformam-se rapidamente, apenas persiste a luzinha da lamparina, que derrama um pouco de quê?, um pouco de vida, talvez, ou um sinal oscilante e trémulo. Hoje entre presságios e riscos ouvem-se profetas benévolos, piedosos, demoníacos, coléricos e soberbos que afirmam ter sido o nosso destino selado na terra tal qual a vemos. O homem é o rei de todos os deuses. Os olhos e a voz são a sua força. Às vezes acontece ao Senhor Impontual rir como se estivesse só: um riso retraído.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Fadário

Estou sentado junto ao que resta da igreja matriz, de cujo interior, segundo consta, saíam em tempos cânticos hinários, entoados em idiomas bíblicos. Gaivotas circulam baixo e, por vezes, cautelosamente, poisam, em bandos estridentes. O tempo flui e nascem trevas que logo se dissipam. Ou foram apenas brumas procedentes das marés. Agora a largos intervalos tombam gotas nos telhados de zinco gasto, provocando tristes ressonâncias. Mas não chove. Ou, se chove, de onde cai a chuva? Do céu não é, esse está aberto numa claridade primitiva, os aromas são subtis mas profundos. O marulhar da água é ameno. Os raios de sol são paralelos ao atingirem o mar. Aliás tudo no Universo é paralelo. Contemplo o mar, como se o mar fosse uma estrada ou um ligeiro presságio mordido e rendilhado pelo bater das ondas.
Ocorre-me que é isto que nos impede de morrer: andarmos surpreendidos desde que começou o fadário. Tenho muita sorte com a minha profissão que, entre outras agruras, me permite construir destinos. Ou reconstruir, vá lá.

Mas... e o que é o destino?
 - Talvez seja isto mesmo: construir para permitir a destruição.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Disto de escrever nos blogs - esse instrumento de sopro.

Inspiramo-nos no escuro, de uma maneira ou de outra. E a fraqueza tem vários nomes: igualdade, generosidade, benevolência, justiça. Todavia, é ainda no escuro que determinamos que nas relações com os outros é preciso saber mandar, pelo menos uma vez por outra; saber exercer uma certa violência mansa, um discreto terror enleante na discordância e... alimentar um certo, e por vezes acentuado, poder de exclusão. Claro que para qualquer um de nós viver é: olhar, sentir, cheirar, caminhar de cabeça erguida e regista-lo com palavras rutilantes. Quando só exprimimos os sentimentos mais profundos - assobiando.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Do verbo açaimar

Um dia, e esse dia já esteve mais longe, pacientemente, aprenderemos a viver com o mau-estar, com a medonha presença da outra figura. Para aí chegar, revestiremos tudo de silêncio. Será dispendioso. Não estaremos, sem dúvida, em condições de reencontrar a quietude senão ao preço alto desse mutismo. Ignoraremos por que razão uma tal confiança se forjou e instalou tão rapidamente. Saberemos apenas que isso aconteceu. Insinuou-se e existe agora entre nós. Uma coisa sólida e simples. Com uma certeza porém, indiscutível, que no entanto, sem dúvida alguma, debaixo da máscara cirúrgica, jamais invocaremos: ambos somos estrépitos.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Impontual with an P



Vocês não sei, mas eu de repente estou a sentir-me repleto de possibilidades. 

terça-feira, 9 de junho de 2020

Asdrúbal

Colocou os óculos de parte, depôs as mãos sobre o colo, abandonando aí os braços com suavidade. Coisa alguma o prende àquele lugar, não retém qualquer saudade daqueles sítios que somente conservam o cenário já de si nublado do reencontro com Almerinda.
Não é novo nem é velho: chegou à idade indefinida em que um homem vai ficar até ao fim da vida com a cara que fez por merecer e com as recordações do que recusou e aceitou: espectros cada dia mais vivos e agressões cada vez mais insolentes. Todavia, aprendera há muito tempo que para esquecer é preciso recordar. E se poucas coisas deseja recordar talvez seja porque é um homem dividido nas suas lealdades. O importante, porém, não é esquecer ou recordar, mas deixar que surja, alternadamente, uma coisa e outra. Às vezes fala com os céus. Mas os céus também já não são os mesmos - as estrelas estão separadas por espaços infinitos.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Acervo de letras

De repente, um dia sentirás que a tinta passa por dentro do teu corpo antes de chegar ao papel e, quando tiveres essa sensação, já nada nem ninguém poderá instigar-te ao que quer que seja. Tudo dependerá, não direi da tua inspiração, mas da forma como suspiras. Até lá, deixa o subconsciente gritar. Sem reservas.

 (a partir de uma cisma do  meu Caro, e saudoso, Miguel Bondurant)

sábado, 6 de junho de 2020

Beatriz

Lá fora o ar flutua quente e em tons acinzentados. Do lado de dentro da noite, o inferno entranhado nas paredes e nos poros. Dorme nua. Espalhado sobre a almofada, o cabelo está intacto, cheio de um furor bestial, como se fosse uma crina. De repente uma visão turva. Sorriu melancolicamente, a seguir fez o gesto de quem espanta um mau pensamento, uma obscura e risível tentação. Há muito que a intimidade chegara a um ponto inatingível. 

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Lei da Insurreição

Eu até gostava de dizer algo sobre a situação na América, mas não sei se o faça. 
Não tarda acende-se de novo o fascínio do mundo pré-moderno, subdesenvolvido e desfavorecido por uma mesma América que dele se tem continuamente afastado e continuará a afastar-se, apesar das suas próprias misérias e sofrimentos, mas que permanecerá sempre pronta a mostrar que está ali para ajudar os oprimidos de toda a parte, como se pagasse, assim, todos os seus pecados e privilégios. 
Mas que aquilo é uma vergonha, lá isso é.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

A partir de um rabisco de Almada



Os cegos copulam de olhos na pele.

domingo, 31 de maio de 2020

Palomar

A tarde vai cinza, quente e preguiçosa. Pela janela escancarada o Senhor Impontual vê telhados e telhados e, para lá deles, mesmo no limite, um manto de água chamado Atlântico. Pensa nas pessoas que passaram pela sua vida, mais um monólogo em voz alta do que outra coisa. Pensa nas pessoas e procura uma definição moral para cada uma delas. Sabe, o Senhor Impontual, que mesmo persistindo em nós próprios, mesmo dando um sentido individual à nossa vida, tornamo-nos pessoalmente responsáveis por muitos outros seres humanos que connosco se cruzam. E é isso: devemos persistir em dar um enredo individual, uma trama singular à nossa vida. Assim, delega-se nas ilusões a parte mais rica da nossa existência conferindo-lhe uma qualidade febril, inquietante, e uma considerável força de interrogação nos que tentam descortinar, no crepúsculo tardio, para lá do horizonte visual, a marca invisível que todo o homem traz em si, como um estigma que pertence ao destino. E que os destinos extraordinários são, por vezes, inseparáveis da ausência de destino.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Maio maduro Maio

Ergueu-se da cadeira de baloiço que já pertencera à sua avó, tirou água da torneira para o reservatório da máquina de café e fez-lhe um expresso espesso e aromático. Só ele bebeu; ela, não: tira-lhe o sono. Sentem conforto em terem-se um ao outro. Mas nada recordam em voz alta. Tudo o que foram é uma sombra. E esse conforto interiormente experimentado fá-los pressentir que, se algo for dito, tudo será considerado incómodo, e logo os vivos sentimentos de sossego e de paz se alterariam. Eles próprios vagamente percebem que são escombros de uma época naufragada, sem pertencerem, embora, a uma raça particular de pessoas. Nada de sumptuoso ou de magnifico há a recordar. Tudo o que se lhes refere é mediano, dissimulado e convencional. Apenas se tinham ajudado a construir uma teia de estradas que, a seu tempo foram elas também alteradas, substituidas por outras ou submersas pela força insubmissa de inesperados cataclismos. Durante os longos periodos de silêncio foram-se dando conta de que as pessoas, mesmo quando vivem em comum, estão muito mais separadas do que relacionadas entre si.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Sobre isso de adormecer com música

Pois comigo é ao contrário. Acordar com música sempre foi para mim uma verdadeira aflição. A música tem vida, tem histórias, tem peripécias em todos os seus recantos e gosta de se me imiscuir nas entranhas, de me revolver o tempo passado e presente, de me precipitar o futuro, de me infectar as veias, de me afectar, de me deixar ali morto por fora mas muito vivo por dentro. Então há momentos, como naquela estrofe "When it's summer in Siam and the moon is full of rainbows", que são como um fragmento de história que acontece ali naquele segundo, precisamente naquele instante e que por vezes não identifico qual é, porque ali, naquela fracção mínima de tempo, cabem dias e noites, meses e anos, conversas imaginadas, corpos tombados, desejos incontornáveis. E depois fica tarde, muito tarde... e já não há margem para mais atrasos. Que magnifico dia está hoje!

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Ferreira de Castro

Abordou-me com fingido desprendimento e muito para além da distância de segurança. Quis falar-me da sua nova companheira, evocou tempos não muito idos, encontros passageiros, que haviam rido muito com as tolices, as maliciosas alusões, as ternas lembranças. Falou com convicção, detendo-se nos pormenores, na explicação dos diálogos, sublinhando as frases com gestos e entoações. Andou de um lado para o outro, como um sonâmbulo subitamente acordado que manifesta grande surpresa e, ao mesmo tempo, uma espécie de excitante encantamento. A mulher que procurava retratar-me não era desejadamente saída de um qualquer milagre ou de qualquer fábula. Alta e morena, branca e submissa, ou loira e de cabeça erguida, fosse como fosse que a contava, a imaginava, a inventava, disse-a sempre cândida e doce, clara e segura, como se anunciasse a substância da própria felicidade. 
Há muito tempo que não via Ferreira de Castro. Ferreira de Castro não tem afinidade nenhuma com o cão, nem jeito para o passear, mas é uma tarefa sua. Foi um prazer.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Maria Eduarda

Surgiu e de repente tudo ficou silencioso e estático. Esboçou uma furtiva caricia, prendeu-lhe o rosto entre as mãos, afagou-lhe os cabelos, beijou-lhe os olhos e a boca ao de leve, abriu as pernas e num instante vertiginoso fê-lo encaixar-se na superfície levemente abobadada do seu ventre... e ali descansar. Depois ergueu-se, compôs o vestido, restituiu às faces a distante arrogância, sua defesa invisivel, caminhou com dignidade para a porta, embrenhou-se nas sombras da noite. "Sê feliz por ti mesmo", disse-lhe sentenciosamente.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Trovoada

Vem do lado do mar um sopro morno de vento e o eco da distante trovoada seca. Quando o vento é morno e as trovoadas são secas, correm pelos telhados e descem pelas ruas odores estonteantes que perturbam as pessoas e as fazem andar mais apressadas, silenciosas e sós. Os rostos tornam-se fechados e indiferentes. As portas e as janelas são cerradas como se a atmosfera estivesse carregada de inumeras ameaças e apenas no interior das casas as pessoas, sem coragem nem paciência, conseguissem preservar-se e defender-se desses perigos indistintos.
Ou então, apetece-lhes falar com os seus espíritos; ouvi-los. E, até o estrondo se extinguir, pouco a pouco, sobe-lhes à memória mil pequenas coisas que lhes sucederam e às quais atrubuem alguma importância derivada. Devem ser coisas emudecidas pelo tempo: factos, rostos, gritos, gestos, vozes sem nome, que talvez nestas alturas lhes impõem os seus mistériosos impulsos. Ou talvez esse momento possa ser uma forma de  solidariedade e de equilibrio para com os seus fantasmas. Sei lá. 

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Capitão-de-mar-e-guerra

A negridão no fim do horizonte é ameaçadora, mas recomponho-me fitando o mar com o extremado carinho de quem encontrou a coisa amada. Abdico (provisóriamente?) de gestos e palavras trazidos comigo de outras paragens. Detenho-me agora a adivinhar o poder misterioso das correntes, as rugosidades da água, a sua flora talvez secular, o desenho delicado e firme das ondas, o pulsar secreto da sua vida submersa. Invento até episódios e façanhas em que sou protagonista - um autêntico lobo do mar. Como se a acumulação de vivências tivesse quebrado o selo da ausência. Sorrio com sóbria gravidade, olhos cravados no interior da imensidão do nada: a correria dos pensamentos, das imagens, das recordações. A maresia a circular nas veias.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Simbiose


@Alexander Grinberg

“Estava iluminada por dentro, 
e a noite ia e vinha sobre os arcos e os tanques e as frestas."

_Herberto Helder