Passaram os dias, passaram as noites. O sol aquece agora nas vidraças das janelas. Inês aponta na apostila umas notas de vida livre. Não pode introduzir-lhe notas da sua alma passada. Angustia-se, volta a interrogar-se sobre se tem ou não uma alma e os seus limites assustam-na uma vez mais. Inês é livre e isso deveria bastar-lhe. Vitoriosa também, porque ignora e despreza os antigos moldes que aprisionavam a sua vida, o seu pensamento, tudo, tudo. Deveria responder a esta pergunta: sou um novo ser, sou uma outra? estou verdadeiramente liberta? Não, conclui sem tristeza. Limitou-se a forjar uma armadura.
segunda-feira, 26 de abril de 2021
sexta-feira, 23 de abril de 2021
Pintar Abril
Estamos no fim de Abril. Há uns meses largos que não vinha posar. Entrou com a elegância de sempre. Sentou-se no canapé de palhinha com as costas direitas, entrelaçou os dedos das mãos e deixou-as cair sobre o regaço. Fez uma pausa. Ignorou-me com o olhar. Fixou-se absorta no vazio.
A tristeza leva tempo a aparecer num rosto, existe um período de incubação em que paira como um vapor dentro de uma pessoa mas sem deixar rasto; e passados uns meses, uns anos, apodera-se dela lentamente, uma ruga no canto da boca, uma sombra à volta dos olhos, um pescoço menos esguio, um olhar quiesciente.
Um lápis imoto. Uma tela em branco com um fundo flavo.
quinta-feira, 22 de abril de 2021
Dia da Terra
O Senhor Impontual continua desconfiado que um dia o Planeta travará de súbito naquele preciso momento e por ali ficará, estático, durante um instante mais alongado, mostrando-nos todos os horrores que lhe fomos infligindo. Já faltou mais.
quarta-feira, 21 de abril de 2021
Falsete
segunda-feira, 19 de abril de 2021
Nelinho
sexta-feira, 16 de abril de 2021
You're stumbling in the dark? **
**subtracted from the darkness, right here.
quinta-feira, 15 de abril de 2021
Estilo D. Maria
terça-feira, 6 de abril de 2021
Caducifólio
Todas as manhãs, enquanto tomo o pequeno almoço, costumo fazer um rascunho daquilo que me reserva a jornada. Depois gosto de acender a televisão passado um bocado, sem ver o que está a dar. Hoje não o fiz. Permaneci na cozinha, à janela com as cortinas finas que agitavam levemente na corrente de ar da rua. Com a ponta do dedo levantei a bainha e olhei pela vidraça. O céu lá fora estava sem uma nuvem. Imaculado. Os pombos arrulhavam na tangerineira. A andorinha de asa negra no beiral. Era Abril. Nas árvores viam-se botões fortes, saudaveis. Tudo luzia. Mas no passeio, lá em baixo, umas folhas sussuravam ao vento. De que tipo de árvores viriam essas folhas outunais caídas agora, na Primavera?
segunda-feira, 29 de março de 2021
Minuete
Os seus passos demorados não têm nada de cansaço ou de confuso, pelo contrário: toda a aparição está desperta, ali, onde desliza pelo passeio. Aquela é a sua forma de se mover e percebe-se claramente que não se envergonha disso. Essa lentidão é mais provocante que um decote ousado ou uma saia justa um palmo acima do joelho. Tudo é tão intimo, como se estivéssemos a vislumbrar a sua alma. A lentidão torna-a mais nua que a própira nudez alguma vez teria conseguido. Por detrás dela pressente-se uma coragem do tipo mais despretencioso e profundo. Inventou uma forma totalmente nova de se mover, um equilibrio nunca antes visto, uma coreografia do principio do mundo. Não caminha sobre o chão, acaricia-o. É como se toda a sua vida fosse um minuete demorado e ela se movesse ao som de uma música que nunca se extingue e que mais ninguém ouve.
sexta-feira, 26 de março de 2021
Palomar
O Senhor Impontual é um fugitivo. Desde sempre que o é. O Senhor Impontual sabe desenhar casas, sabe toldar-lhe as fachadas e o interior. Sabe desenhar jardins. Mas o que o Senhor Impontual gostava, mesmo, era de saber desenhar rostos. Se um dia, no grande incêndio, os livros fossem queimados, o Senhor Impontual está seguro de que os rostos passariam a ser a biblioteca dos homens, as rugas as suas linhas, o olhar as suas histórias. Mas desenhar rostos é muito dificil. Em cada rosto há algo de inatingivel. O lápis desespera e continua à procura. Por vezes sente-se que se roça nele e ficamos com a mão a escaldar. Outras vezes pressente-se que desde que se espere de um modo suficientemente observante, chegará o momento em que se revelará por um único risco milagroso, como quando se espera na noite pelo alvoroço, pelo momento do nascer do sol, quando as névoas se levantam, as sombras se dispersam e o interior da paisagem se revela. Mas não. Com muita pena do Senhor Impontual.
quinta-feira, 18 de março de 2021
Rosinha
Rosinha não é má rapariga. No fundo, é avessa à falsa burguesia e ao puritanismo em que vive. Mas é incapaz de entrar em choque com o seu mundo. O seu derivativo é aquele tipo de rebelião mansa: afinal um sintoma das épocas de impotência. Rosinha está, como qualquer um, à espera de um grande acontecimento que a obrigue a modificar a penúria da sua vida, mas não provoca esse acontecimento, porque estaria a agir contra si própria. Também lê, como qualquer um, também é esperta, como qualquer um, mas tem um emprego em home office e não está disposta a perder esse privilégio. Rosa é uma virtuosa, à sua maneira.
terça-feira, 16 de março de 2021
Ao postigo
sexta-feira, 12 de março de 2021
Chesterfield
Apesar dos dias serem agora mais claros, a rua lá fora mais animada e o chilrear dos pássaros nas árvores ser mais forte, sentava-se no sofá. Aquele sofá que fora a primeira peça de mobilia que compraram juntos. Pensava no amor que costumavam fazer nele. Nesses tempos arrancavam a roupa por desejo. Agora despem-se com movimentos frouxos ao fim do dia, dobrando a roupa cuidadosamente em cima das costas da cadeira do quarto.
quarta-feira, 3 de março de 2021
Memória háptica
O amor é agora mais intenso e demorado. Porque, antes de a penetrar por várias vezes, tinha-a despido lentamente e tinha-me detido com carícias em cada parte do seu corpo, sorrindo-lhe e dizendo-lhe que era bonita, e quisera ser eu a tirar-lhe os ganchos do cabelo e a enterrar as mão naquela nuvem negra de caracois e desabotoar-lhe o vestido, deixa-lo cair, e ficar a olhar para ela, nua, deitada na cama, admirando-lhe os seios grandes e rijos, a pele branca e macia, as longas pernas, enquanto a acariciava e a beijava em sitios onde nunca tinha sido beijada.
Isto depois de uma garrafa de Cartuxa, claro.
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021
Parlenda
A televisão. O país. O Mundo. A dissecação de uma pandemia. A queda da civilização livre. A falsa justificação da responsabilidade. A confrontação entre um certo tipo de destruição e de ascese. Palavras, palavras e mais palavras.
terça-feira, 23 de fevereiro de 2021
Cratera Jazero
terça-feira, 16 de fevereiro de 2021
Entrudo
domingo, 14 de fevereiro de 2021
Valentinos
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021
Palomar
O Senhor Impontual, um homem vencido pela contemplação e que nunca gostou de páthos, que sabe que todas as honras e as palavras elogiosas com que nos cobrem não passam de palha e que o que permanece é a voz destituida de ambiguidade, esperteza ou ironia, a voz herdada dos tempos vividos. Essa é a voz autêntica. Os disfarces e os artifícios não passam, afinal, de uma roupagem provavelmente necessária para cativar o ouvido, mas não são o essencial. O essencial grava-se no corpo e não na memória. As células do corpo lembram-se melhor do que a memória que foi feita para recordar. O Senhor Impontual gosta da contemplação porque esta não o sujeita a qualquer geografia estática. Mais ainda: permite-lhe alargar os seus limites ou elevar o objecto às alturas. Sem que para tal tenha de dizer uma única palavra.
O Senhor Impontual esta manhã rompeu o confinamento e foi olhar o mar de perto. Era um mar plúmbeo, agitado, coberto de nuvens grávidas. Tão bonito, tão azul...
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021
Escala cinza
Hoje abriu uma nesga de sol. Enquanto faço uns rabiscos em escala maior e nos ouvidos tenho os The Cure com Lullaby, reparo que o casal de pombos voltou à tangerineira. Já tinha dado conta da chegada do pombo macho. Esteve por ali durante uns dias, só, calado, mudo, cinzento. Hoje, pela aurora, chegou o outro - a femea. Penugem luzidia. Igualmente cinzento. Cabeça bem levantada: eu sou a saudade toda-poderosa, deves tremer diante de mim, dar-me tudo porque sou insaciável, um ogre, um vampiro, uma assassina em serie de felicidades confessadas e anunciadas em voz baixa.