(a partir de uma cisma do meu Caro, e saudoso, Miguel Bondurant)
segunda-feira, 8 de junho de 2020
Acervo de letras
(a partir de uma cisma do meu Caro, e saudoso, Miguel Bondurant)
sábado, 6 de junho de 2020
Beatriz
Lá fora o ar flutua quente e em tons acinzentados. Do lado de dentro da noite, o inferno entranhado nas paredes e nos poros. Dorme nua. Espalhado sobre a almofada, o cabelo está intacto, cheio de um furor bestial, como se fosse uma crina. De repente uma visão turva. Sorriu melancolicamente, a seguir fez o gesto de quem espanta um mau pensamento, uma obscura e risível tentação. Há muito que a intimidade chegara a um ponto inatingível.
quinta-feira, 4 de junho de 2020
Lei da Insurreição
Eu até gostava de dizer algo sobre a situação na América, mas não sei se o faça.
Não tarda acende-se de novo o fascínio do mundo pré-moderno, subdesenvolvido e desfavorecido por uma mesma América que dele se tem continuamente afastado e continuará a afastar-se, apesar das suas próprias misérias e sofrimentos, mas que permanecerá sempre pronta a mostrar que está ali para ajudar os oprimidos de toda a parte, como se pagasse, assim, todos os seus pecados e privilégios.
Mas que aquilo é uma vergonha, lá isso é.
quarta-feira, 3 de junho de 2020
domingo, 31 de maio de 2020
Palomar
A tarde vai cinza, quente e preguiçosa. Pela janela escancarada o Senhor Impontual vê telhados e telhados e, para lá deles, mesmo no limite, um manto de água chamado Atlântico. Pensa nas pessoas que passaram pela sua vida, mais um monólogo em voz alta do que outra coisa. Pensa nas pessoas e procura uma definição moral para cada uma delas. Sabe, o Senhor Impontual, que mesmo persistindo em nós próprios, mesmo dando um sentido individual à nossa vida, tornamo-nos pessoalmente responsáveis por muitos outros seres humanos que connosco se cruzam. E é isso: devemos persistir em dar um enredo individual, uma trama singular à nossa vida. Assim, delega-se nas ilusões a parte mais rica da nossa existência conferindo-lhe uma qualidade febril, inquietante, e uma considerável força de interrogação nos que tentam descortinar, no crepúsculo tardio, para lá do horizonte visual, a marca invisível que todo o homem traz em si, como um estigma que pertence ao destino. E que os destinos extraordinários são, por vezes, inseparáveis da ausência de destino.
quinta-feira, 28 de maio de 2020
Maio maduro Maio
Ergueu-se da cadeira de baloiço que já pertencera à sua avó, tirou água da torneira para o reservatório da máquina de café e fez-lhe um expresso espesso e aromático. Só ele bebeu; ela, não: tira-lhe o sono. Sentem conforto em terem-se um ao outro. Mas nada recordam em voz alta. Tudo o que foram é uma sombra. E esse conforto interiormente experimentado fá-los pressentir que, se algo for dito, tudo será considerado incómodo, e logo os vivos sentimentos de sossego e de paz se alterariam. Eles próprios vagamente percebem que são escombros de uma época naufragada, sem pertencerem, embora, a uma raça particular de pessoas. Nada de sumptuoso ou de magnifico há a recordar. Tudo o que se lhes refere é mediano, dissimulado e convencional. Apenas se tinham ajudado a construir uma teia de estradas que, a seu tempo foram elas também alteradas, substituidas por outras ou submersas pela força insubmissa de inesperados cataclismos. Durante os longos periodos de silêncio foram-se dando conta de que as pessoas, mesmo quando vivem em comum, estão muito mais separadas do que relacionadas entre si.
quarta-feira, 27 de maio de 2020
Sobre isso de adormecer com música
Pois comigo é ao contrário. Acordar com música sempre foi para mim uma verdadeira aflição. A música tem vida, tem histórias, tem peripécias em todos os seus recantos e gosta de se me imiscuir nas entranhas, de me revolver o tempo passado e presente, de me precipitar o futuro, de me infectar as veias, de me afectar, de me deixar ali morto por fora mas muito vivo por dentro. Então há momentos, como naquela estrofe "When it's summer in Siam and the moon is full of rainbows", que são como um fragmento de história que acontece ali naquele segundo, precisamente naquele instante e que por vezes não identifico qual é, porque ali, naquela fracção mínima de tempo, cabem dias e noites, meses e anos, conversas imaginadas, corpos tombados, desejos incontornáveis. E depois fica tarde, muito tarde... e já não há margem para mais atrasos. Que magnifico dia está hoje!
sexta-feira, 22 de maio de 2020
Ferreira de Castro
Abordou-me com fingido desprendimento e muito para além da distância de segurança. Quis falar-me da sua nova companheira, evocou tempos não muito idos, encontros passageiros, que haviam rido muito com as tolices, as maliciosas alusões, as ternas lembranças. Falou com convicção, detendo-se nos pormenores, na explicação dos diálogos, sublinhando as frases com gestos e entoações. Andou de um lado para o outro, como um sonâmbulo subitamente acordado que manifesta grande surpresa e, ao mesmo tempo, uma espécie de excitante encantamento. A mulher que procurava retratar-me não era desejadamente saída de um qualquer milagre ou de qualquer fábula. Alta e morena, branca e submissa, ou loira e de cabeça erguida, fosse como fosse que a contava, a imaginava, a inventava, disse-a sempre cândida e doce, clara e segura, como se anunciasse a substância da própria felicidade.
Há muito tempo que não via Ferreira de Castro. Ferreira de Castro não tem afinidade nenhuma com o cão, nem jeito para o passear, mas é uma tarefa sua. Foi um prazer.
segunda-feira, 18 de maio de 2020
Maria Eduarda
Surgiu e de repente tudo ficou silencioso e estático. Esboçou uma furtiva caricia, prendeu-lhe o rosto entre as mãos, afagou-lhe os cabelos, beijou-lhe os olhos e a boca ao de leve, abriu as pernas e num instante vertiginoso fê-lo encaixar-se na superfície levemente abobadada do seu ventre... e ali descansar. Depois ergueu-se, compôs o vestido, restituiu às faces a distante arrogância, sua defesa invisivel, caminhou com dignidade para a porta, embrenhou-se nas sombras da noite. "Sê feliz por ti mesmo", disse-lhe sentenciosamente.
terça-feira, 12 de maio de 2020
Trovoada
Vem do lado do mar um sopro morno de vento e o eco da distante trovoada seca. Quando o vento é morno e as trovoadas são secas, correm pelos telhados e descem pelas ruas odores estonteantes que perturbam as pessoas e as fazem andar mais apressadas, silenciosas e sós. Os rostos tornam-se fechados e indiferentes. As portas e as janelas são cerradas como se a atmosfera estivesse carregada de inumeras ameaças e apenas no interior das casas as pessoas, sem coragem nem paciência, conseguissem preservar-se e defender-se desses perigos indistintos.
Ou então, apetece-lhes falar com os seus espíritos; ouvi-los. E, até o estrondo se extinguir, pouco a pouco, sobe-lhes à memória mil pequenas coisas que lhes sucederam e às quais atrubuem alguma importância derivada. Devem ser coisas emudecidas pelo tempo: factos, rostos, gritos, gestos, vozes sem nome, que talvez nestas alturas lhes impõem os seus mistériosos impulsos. Ou talvez esse momento possa ser uma forma de solidariedade e de equilibrio para com os seus fantasmas. Sei lá.
sexta-feira, 8 de maio de 2020
Capitão-de-mar-e-guerra
A negridão no fim do horizonte é ameaçadora, mas recomponho-me fitando o mar com o extremado carinho de quem encontrou a coisa amada. Abdico (provisóriamente?) de gestos e palavras trazidos comigo de outras paragens. Detenho-me agora a adivinhar o poder misterioso das correntes, as rugosidades da água, a sua flora talvez secular, o desenho delicado e firme das ondas, o pulsar secreto da sua vida submersa. Invento até episódios e façanhas em que sou protagonista - um autêntico lobo do mar. Como se a acumulação de vivências tivesse quebrado o selo da ausência. Sorrio com sóbria gravidade, olhos cravados no interior da imensidão do nada: a correria dos pensamentos, das imagens, das recordações. A maresia a circular nas veias.
quarta-feira, 6 de maio de 2020
Simbiose
@Alexander Grinberg
e a noite ia e vinha sobre os arcos e os tanques e as frestas."
_Herberto Helder
segunda-feira, 4 de maio de 2020
A obra
Nada é feito à imagem e semelhança do criador. E bem desejariam os homens que a obra fosse rigorosamente como eles. Assim o têm tentado, com obstinada aplicação: criações que levem a sua dedada particular, o seu apetite de harmonia e beleza, os seus pulsares e respirações. Mas as obras são produtos que os homens fazem para se sacrificar, mais tarde ou instantaneamente, às suas exigências mais cruéis. Assim como nenhuma casa é o homem que a construiu, assim como nada que o homem cria ou edifica lhe pertence como fiel imagem devolvida. Nem as mães - o mais superlativo dos criadores - o conseguem com os seus filhos.
Talvez haja quem pense: o homem nasceu infeliz por nada conseguir criar que seja seu.
Talvez haja quem pense: o homem nasceu infeliz por nada conseguir criar que seja seu.
quinta-feira, 30 de abril de 2020
Palomar
O Senhor Impontual, homem grisalho, observador treinado de oficio, de sobejo experimentado na avaliação de outras figuras, pensa à distância regulamentar: a postura, o modo de estar sentada, o rosto oblongo, os olhos biselados, os beiços húmidos de luxuria, os pés inquietos com calcanhares sobressaídos, as mãos vividas, dedos longos e arredondados nas pontas, as unhas pintadas a sangue-de-boi, o pescoço arrogante, a expressão estulta, o trejeito desdenhoso a vogar para distâncias infinitas, a deslizar por estradas já desaparecidas, mas fiel na lembrança; certamente uma evocação fabulosa e gigantesca, uma cadência longínqua. Já fora outra pessoa e, ao pensar nisso, a imagem devolvida agrada-lhe imensamente. Certas mágoas, por antigas, perderam a força de a atingir. A vida, apesar de tudo o que contém de inamistoso, nunca é importuna e ninguém vive o suficiente. Há um vago e insidioso erotismo no olhar. Um indefinível apelo a um prazer derradeiro, consentido.
O Senhor Impontual, homem moderado e incapaz de uma desobediência, coagita com os seus botões que talvez pudesse ter sido um mau rapaz. Mas não.
O Senhor Impontual, homem moderado e incapaz de uma desobediência, coagita com os seus botões que talvez pudesse ter sido um mau rapaz. Mas não.
quarta-feira, 29 de abril de 2020
Medo-20
No meio de toda esta convulsão sanitária e de todo um já mais que notório descalabro económico e social, não tardará a aparecer pelas mão de biólogos, químicos, físicos, médicos e cientistas a invenção de um medicamento capaz de disparar um míssil sobre o vírus. A verdade é que tanto se pode sofrer de não encontrar como de perder. Há pessoas que jamais conseguirão reencontrar o conforto, o amor, a beleza, o prazer, a fé, um ideal. Reencontrar o tempo em que viviam serenas. Apaziguar os corpos e tornar as almas mais leves. O medo, que começou por ser uma vantagem competiva, apresentar-se-à agora como a doença universal que corroi os viventes. Mas não antes da passagem pelo outro polo: a euforia do cão que esteve preso.
sábado, 25 de abril de 2020
Capitães d'Abril, Maio, Junho e de todos os outros meses
Que haja o céu descoberto, por vezes o odor salgado dos ventos marinhos, a claridade estonteante dos intermináveis dias de Primavera, a riqueza sombria da solidão consentida, a corajosa sensação da suficiência, o gozo da confusa liberdade, o raro prazer de conduzir os destinos - tudo o que, sem humilhação nem afronta, permita vencer os confrontos do dia-a-dia sem a impaciência aviltante de aguardar o incerto mês seguinte.
quinta-feira, 23 de abril de 2020
Guimarães Rosa
Eu estou só. O cão de pelo pardo está só. O mar está só. O sol está só. Mas não o só da solidão: o só da concomitância. Ou da solistência, como diria o escriba.
segunda-feira, 20 de abril de 2020
Diário da quarentena
Aprendi que todo o homem transporta na sua alma uma rua, um bairro, uma cidade, um mar, um rio, um jardim, uma árvore, uma montanha ou um planalto, uma mulher, um amigo, uma criança, uma procissão de infinitos desencontros. São as suas pátrias portáteis e intimas, os seus modestos e pequenos mundos azuis, no interior do outro grande Mundo azul onde se desenrola o drama da espécie vivente.
Aprendi, ainda, em frente a um espelho, que o mesmo aparelho que apara a barba também corta o cabelo. Descobri que aos dez cabelos brancos que já vinham do tempo da gripe espanhola se juntaram mais dez. São agora vinte. Sou hoje um homem grisalho.
sexta-feira, 17 de abril de 2020
Trecento
Estamos no meio de Abril. A natureza retoma o seu fôlego e sussurra. A cidade, o campo, o sol, o mar, a ondulação, as árvores, tudo ramalha e excita a pele dos vivos para que eles se deixem invadir pela aventura do tempo. O tempo vindouro, uma aposta, aquela que desculpará o tempo passado, o tempo parado, o tempo perdido ou o transformará. O ar recheado de partículas que penetram no nariz, nos ouvidos, os odores do rio e dos jardins, a natureza a exportar os seus indícios. E nós aqui, com os linhos guardados em cómodas bafientas, à espera de sabermos se o Mundo nos aceita de novo.
terça-feira, 14 de abril de 2020
Amor em tempo de pandemia
Entre a palidez e o rubor dos seus rostos perpassa uma tímida procura e um atenuado desejo. Mas logo se beijam mais e com fúria. Ele mexe-lhe nos seios, acaricia-lhe as coxas macias. Deitam-se ao lado dos juncos na margem do rio. Dolente, vagarosa, ela tira as ligas, as meias, as cuecas; mostra-lhe o sexo, ele afaga-o, as pontas dos dedos tocam-no de mansinho, docemente percorre os pêlos espessos negros e abundantes que o confinamento criou: é atraído por uma inquietação nova e muito viva, beija-o, trémulo e feliz; ela suspira, um bulir suave, estremece, solta um grito rouco quando o pénis dele a penetra, sente-se rasgada por dentro, envolve-lhe os rins com as pernas, os movimentos de ambos aceleram-se, as respirações tornam-se opressas, gemem e gritam unânimes, cálidos e majestosos: a móvel felicidade.
Depois, uma espessa bruma subiu do rio e inundou os ecrãs. Riram-se, cada um do seu lado.
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