Rosinha não é má rapariga. No fundo, é avessa à falsa burguesia e ao puritanismo em que vive. Mas é incapaz de entrar em choque com o seu mundo. O seu derivativo é aquele tipo de rebelião mansa: afinal um sintoma das épocas de impotência. Rosinha está, como qualquer um, à espera de um grande acontecimento que a obrigue a modificar a penúria da sua vida, mas não provoca esse acontecimento, porque estaria a agir contra si própria. Também lê, como qualquer um, também é esperta, como qualquer um, mas tem um emprego em home office e não está disposta a perder esse privilégio. Rosa é uma virtuosa, à sua maneira.
quinta-feira, 18 de março de 2021
terça-feira, 16 de março de 2021
Ao postigo
sexta-feira, 12 de março de 2021
Chesterfield
Apesar dos dias serem agora mais claros, a rua lá fora mais animada e o chilrear dos pássaros nas árvores ser mais forte, sentava-se no sofá. Aquele sofá que fora a primeira peça de mobilia que compraram juntos. Pensava no amor que costumavam fazer nele. Nesses tempos arrancavam a roupa por desejo. Agora despem-se com movimentos frouxos ao fim do dia, dobrando a roupa cuidadosamente em cima das costas da cadeira do quarto.
quarta-feira, 3 de março de 2021
Memória háptica
O amor é agora mais intenso e demorado. Porque, antes de a penetrar por várias vezes, tinha-a despido lentamente e tinha-me detido com carícias em cada parte do seu corpo, sorrindo-lhe e dizendo-lhe que era bonita, e quisera ser eu a tirar-lhe os ganchos do cabelo e a enterrar as mão naquela nuvem negra de caracois e desabotoar-lhe o vestido, deixa-lo cair, e ficar a olhar para ela, nua, deitada na cama, admirando-lhe os seios grandes e rijos, a pele branca e macia, as longas pernas, enquanto a acariciava e a beijava em sitios onde nunca tinha sido beijada.
Isto depois de uma garrafa de Cartuxa, claro.
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021
Parlenda
A televisão. O país. O Mundo. A dissecação de uma pandemia. A queda da civilização livre. A falsa justificação da responsabilidade. A confrontação entre um certo tipo de destruição e de ascese. Palavras, palavras e mais palavras.
terça-feira, 23 de fevereiro de 2021
Cratera Jazero
terça-feira, 16 de fevereiro de 2021
Entrudo
domingo, 14 de fevereiro de 2021
Valentinos
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021
Palomar
O Senhor Impontual, um homem vencido pela contemplação e que nunca gostou de páthos, que sabe que todas as honras e as palavras elogiosas com que nos cobrem não passam de palha e que o que permanece é a voz destituida de ambiguidade, esperteza ou ironia, a voz herdada dos tempos vividos. Essa é a voz autêntica. Os disfarces e os artifícios não passam, afinal, de uma roupagem provavelmente necessária para cativar o ouvido, mas não são o essencial. O essencial grava-se no corpo e não na memória. As células do corpo lembram-se melhor do que a memória que foi feita para recordar. O Senhor Impontual gosta da contemplação porque esta não o sujeita a qualquer geografia estática. Mais ainda: permite-lhe alargar os seus limites ou elevar o objecto às alturas. Sem que para tal tenha de dizer uma única palavra.
O Senhor Impontual esta manhã rompeu o confinamento e foi olhar o mar de perto. Era um mar plúmbeo, agitado, coberto de nuvens grávidas. Tão bonito, tão azul...
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021
Escala cinza
Hoje abriu uma nesga de sol. Enquanto faço uns rabiscos em escala maior e nos ouvidos tenho os The Cure com Lullaby, reparo que o casal de pombos voltou à tangerineira. Já tinha dado conta da chegada do pombo macho. Esteve por ali durante uns dias, só, calado, mudo, cinzento. Hoje, pela aurora, chegou o outro - a femea. Penugem luzidia. Igualmente cinzento. Cabeça bem levantada: eu sou a saudade toda-poderosa, deves tremer diante de mim, dar-me tudo porque sou insaciável, um ogre, um vampiro, uma assassina em serie de felicidades confessadas e anunciadas em voz baixa.