domingo, 26 de dezembro de 2021

Gloria in excelsis Deo

Em frente ao espelho ajustou o corpete, distendeu milimetricamente as meias pretas de cornucópias, calçou os scarpins igualmente pretos, sobiu a saia para três centímetros acima do nível do joelho, vestiu o capote de burel e deu um último retoque meticuloso no véu que lhe emoldurava o olhar. Logo logo atravessou a praça em passo de sessenta centímetros para ir assistir à missa do galo. Ao entrar na igreja procurou Gabriel Arcanjo com o olhar. Nele reservava a esperança de pôr fim aos dias sombrios, aplacar o espírito impetuoso que a consome. Do céu, profeta de todas as desgraças, caiu o foguetório. 

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Calendário do Advento

Tenho tudo para escrever este tempo anacrónico. As letras perfeitamente alinhadas, os dedos inclinados sobre as teclas, o silêncio nocturno das ruas, o silêncio da minha voz, a nostalgia humedecendo-me a boca, um calafrio na pele, a música invadindo-me o mais recôndito e profundo patamar do âmago. Mas, não. Não me quero implicado em contrariar minimamente esta efémera felicidade que o mundo teima, e bem, em querer viver por estes dias. Nem sequer do mundo que está aqui mesmo ao meu lado. A página continua em branco como que a iludir este tempo circular. Não há palavras para desenha-lo. Não há pernas para pisar o terreiro do romantismo desacreditado. Apenas umas palpitações electrizantes no corpo todo. Um ou outro soluço intermitente. Uma esperança imposta. Uma teimosia pacifica nos subterrâneos da alegria: dar e receber uns abraços, esse talento miraculoso. Erguer uns copos. Comer uma ou duas rabanadas das tias velhas.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Insónia

Bocarra aberta que aspira o vivente para depois expelir miséria. Sorvedouro. Tudo ali se transforma: o ar, o ruído, o grito. Tudo se apresenta, tudo se exalta. Indiferente, sem pudor, caminha sobre a sombra dos transeuntes como se tudo se espezinhasse. Lugar sem meio, migrante, flutuante ao sabor dos terminais do pensamento, ao sabor das horas e picos de reflexão, campo aberto onde se extasiam fragmentos. Queixume ininterrupto. Às vezes noite-encontro, os amantes nas suas caçadas esgueiram-se pelos becos sem saída, caricias dóceis, o esperma jorra, o prazer é tão curto. O dia nasce frio, embora azul.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Povoléu

 Era uma vez um país onde os homens-bons iam presos muitos anos depois.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Amélia

A maioria das pessoas diz "não" quase imediatamente, por puro instinto de sobrevivência. Amélia diz sempre "sim", "claro", "com certeza". Compromete-se para o resto da vida no calor do momento, sabendo que, no fundo, presumindo, o mesmo instinto de sobrevivência que leva os outros a dizer "não" começará a funcionar no momento crucial. Apesar dos seus instintos calorosos e generosos, da sua bondade e ternura instintivas, Amélia é a mulher mais esquiva que já alguma vez conheci.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Siena

Há momentos nos quais aquilo que se cala tem tanta importância como o que se diz. É como uma viagem nocturna, ora reflexiva, ora extravagante e desolada, em busca da linha de sombra onde os anseios habitam, mas também, pelas mesmas razões, um périplo à procura do esquecimento, uma recordação minuciosa e esperançada em que as certezas perdem paulatinamente a sua razão de ser e são substituídas, como se tratasse de um sonho, pelo vazio do tempo.

O tempo passa, as recordações esbatem-se e o que não se extingue para sempre perde intensidade e com a inevitável distância parece menos do que foi. Não há respostas. Não há que lamentar. Nenhuma palavra modifica o passado e nenhuma é exacta se se pronuncia quando o que se nomeia é passado e não o presente. No presente as palavras não existem. As palavras surgem mais adiante. É ter calma.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Lugar, lugares


@ferdinando scianna

«Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo – diziam. E depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.(...)»

_Herberto Helder

terça-feira, 23 de novembro de 2021

CNN

O irreprimível desejo de sucesso, de ascender, de ser alguém, o american dream, não seria comum a tantos homens, mulheres e até crianças de hoje se não estivesse tão divulgado pelo cinema e especialmente pela televisão.
Na sociedade em que nos coube viver, a aluvião de noticias, a cultura imposta, o ensino, as múltiplas opiniões produzidas por gigantescas fábricas de noticias e difundidas em regime de franchising, ao mesmo tempo que aumentam as possíveis explicações do mundo dificultam a tarefa de as interpretarmos por nós próprios, de acordo com a própria natureza, e com serenidade. 
O processo de consolidação de uma sociedade de analfabetos funcionais está a avançar em passos muito largos.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Sermão aos peixes

Tenho ainda de falar da voluptuosidade dos meus olhos. Olhos que amam a beleza e a variedade das formas, o movimento, o brilho e as cores. E isso, garanto-vos, há muito que possuiu a minha alma. Esta vida é tão breve! Não podemos ter a veleidade de emitir qualquer condenação sobre o desejo.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

O fabuloso destino de Amélia

Amélia cruza-se comigo varias vezes ao dia. Não posso deixar de reparar naqueles dois globos terrestres que, a cada passada de Amélia, parecem pautar o ritmo do Universo. Esforço-me por adivinhar qual será a diferença entre o rabo tapado de Amélia, que conheço até agora, e o descoberto, ao qual acrescenta beleza - ou talvez a extrapole - a minha inflamada imaginação.

Aquelas esplêndidas nádegas apresentam-se-me generosas e dóceis, entregam-se à minha contemplação, conscientes de que o facto de olhá-las e desejá-las pode embelezá-las ainda mais. Essas delícias, prometedoras, rutilantes e sumptuosas, se são prazenteiras e excitantes à vista manifestam que o serão muito mais ao tacto.

Bem sei que nem Rimsky-Korsakov ao compor o incitante Scheherezade nem Ravel ao compor o orgásmico Bolero, tocaram e acariciaram carne humana. As polpas dos seus dedos apenas batiam nas teclas do piano, o que já é deleitoso para um amante de musica, mas o que é certo é que Scheherazade e as demais mulheres do harém, e o amoroso e frenético par do Bolero, permaneceram intangíveis.

Não fosse a minha incipiente vocação artística e já seria um deleite desenhar, escrever ou musicar a gloriosa protuberância que se esconde para lá das saias de Amélia.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Renoir

Pareceu-me ser uma jovem atraente que combinara encontrar-se com o amante e chegara cedo. Mal tocara no aperitivo que pedira. Olhava atenta e firmemente para quem passava diante da sua mesa. Olhava em seu redor calmamente, avaliando o que via, mas sem o esforço óbvio de chamar a atenção. Era discreta e contida. Estava à espera. Eu também estava à espera. Cumprimentou-me com cordialidade como se tratasse de um amigo, mas raparei que ficou agitada. A sua voz era mais arrebatadora do que o seu sorriso: tinha bom timbre, era ligeiramente grave e um pouco rouca. Era a voz de uma mulher que se sente feliz por estar viva, que se entrega aos desejos, que é descuidada e modesta e que fará tudo para preservar o fragmento de liberdade que possui. Era a voz de uma mulher que dá, que consome: apelava mais ao diagrama que ao coração. O seu corpo era pesado, terreno. Parecia um Renoir. Mas os sons que lhe saiam da garganta eram como notas cristalinas de um violino.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Gambito de Rei

Marcelo, um jogador de xadrez que prevê dez jogadas à frente, depois de vários movimentos en passant, prepara-se agora para fazer um roque longo. Não é de excluir a ocorrência de um bloqueio central, um empate por afogamento.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Fiéis defuntos

A nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a aceita-la tragicamente. O cataclismo deu-se, estamos entre a ruínas, choramos a terra morta, desatamos a construir novos pequenos habitats, a alimentar novas esperançazinhas. É uma tarefa difícil, já não há nenhuma estrada suave em direcção ao futuro: rodeamos os obstáculos, ou passamos por cima deles. Seja qual for o número de céus que desabem, temos de viver. Fiéis defuntos.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Paranóia colectiva

A culpa é o único sentimento humano que ninguém quer carregar sozinho.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Pitagorismo

A lei que Costa não soube prever: a base de qualquer triângulo é, invariavelmente, a infidelidade.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Quem quer casar com o agricultor


Bom rapaz. Quintal próprio. Boas colheitas. Mas... até hoje nenhuma soube dar-lhe vontade de ser outra coisa para além de um amante lamentável. Sonha ser fiel, sucede-lhe, por vezes, convencer-se de que o é, durante um tempo, para explorar o que só se descobre na monogamia, mas continua a ser um rapaz que se aborrece depressa, um tipo que, como Óscar Wilde, só se livra da tentação sucumbindo a ela, e que se assusta muitas vezes por não conseguir encontrar aquela que... Detesta os sentimentos que provoca. 
Em redor da casa existe um prado. Não se trata de um sitio onde, naturalmente, devesse haver um prado: logo o prado é um objecto artificial composto por objectos naturais, isto é, ervas. Dá trabalho a desinfestar, cortar e regar.
Quem quer casar com o agricultor?

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Pina


Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Povoléu

Era uma vez um país, numa época em que a maior parte das pessoas acreditavam num qualquer género de universo em três camadas - havia o mundo sobrenatural, o natural e um qualquer lugar onde havia seres humanos. Uma espécie de vácuo nevoento e doloroso onde o Povoléu era a classe dominante. O seu nome do meio era Pobreza e o seu apelido Ignorância. Consequentemente, a sua única possibilidade de felicidade estava na escravidão. Escravizem-nos, se for preciso, gritava silenciosamente o Povoléu, mas dêem-nos de comer.  E assim foi sobrevivendo o Povoléu, matando a fome e passeando-se em ruas mal iluminadas onde ninguém o pudesse escutar - ouvia-se contar o que acontecia aos que erguiam a voz por uma outra liberdade -, mas o Povoléu não ficava muito perturbado com esse género de purga.

É lamentável que hoje o Povoléu ainda misture dois sentimentos tão diversos: o ressentimento, a insatisfação e a névoa que toda a infância convoca. É lamentável, como o é que o erro se tenha perpetuado. O que se passou a seguir, ou seja hoje, não podia ter corrido bem porque estava construído sobre alicerces muito frágeis. Volvidos cinquenta anos, democraticamente, agora mais do que nunca, o Povoléu reduz-se a uma espécie de massa acrítica, destinada unicamente a regular a cotação do petróleo, fazer a vénia e desembolsar todos os prejuízos colaterais.
  
A unanimidade da derrota previamente anunciada confirma-se a cada dia que passa.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Outubro

Acontece sempre em Outubro. Apodera-se do Senhor Impontual uma partícula de lucidez, uma mania, uma atitude compulsiva. Não é sofreguidão. Também não é solidão. Embora o Senhor Impontual tome consciência de que quer estar só. Nesta altura do ano - tal como as árvores - o Senhor Impontual gosta de se desmoronar peça a peça, de se desconstruir de fora para dentro, de se subtrair de componentes que já não funcionam mais. Assim, fragmentos de felicidade, alegria, prazer, vontades, desejos e esperanças vão sendo desarticulados um a um, sem tristezas, sem arrependimentos, sem hesitações, sem contemplações. É um acordo bilateral; do Senhor Impontual para o Senhor Impontual. Depois, se a ideia do desejo continuar presente dentro de si, o Senhor Impontual aceita a eventualidade da atracção e do rebentamento de outros estames, mas jamais para sofrer a tortura lancinante da falta, a comichão exasperante da privação. Acontece sempre em Outubro. Este Outubro vai extraordinariamente quente.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Squid Game

Estação ferroviária. 06:04 da madrugada. O comboio rápido com destino à grande capital acaba de acostar no cais de embarque. Avançam uns de cada vez. Devagar. Entorpecidos. No olhar de cada mulher, de cada homem germina oculto e calado um tempo de espera. Parece que lêem nos olhos uns dos outros, os seus sonhos e as suas aflições. O silêncio, ambíguo, retém-se à sua volta, estranho e solidário. Parece que sabem o fim uns dos outros, as pequenas esperanças e os receios que os calam, de a vida não ser tão generosa como desejavam. Ficam ali de olhos fixos e muito abertos, imóveis e serenos, como se esperassem dai a momentos o instante da morte, uma morte violenta que os liberte definitivamente de toda aquela mesquinhez, da miséria prolongada que os vai prendendo irremediavelmente à vida. 
Vão a jogo. A viagem cumprir-se-à em três horas e trinta minutos. Não há atraso previsto. Na grande capital espera-os uma temperatura do ar de trinta graus centígrados. O inferno. Eles e os outros.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Olá, bom dia

Como estão? Cansadinhos do fim-de-semana prolongado, não é? Foi muito caso Rendeiro, muito Pandora Papers, muita pedofilia de sotaina, muito Globos de ouro, pouco Benfica, pouquíssima rede. Pois eu, apesar de tal como tantas outras pessoas que vivem este extraordinário momento da história da humanidade, não tenho, de forma alguma, a certeza do que está correcto e do que está errado. Por isso, se aqui e acolá vos parecer um pouco lento a compreender as dimensões politicas, tecnológicas, morais e sociais do que se está a passar, receio ter de vos pedir que tenham paciência comigo. Peço desculpa. É uma idade cada vez mais difícil.

sábado, 2 de outubro de 2021

Noite da libertação

Depois de lutarmos toda a noite, as sombras, escravas dos nossos corpos, fingem-se hostis. A manhã chegou depressa. O vento sopra em rajadas, a chuva bate nos pavimentos que o farol ilumina intermitentemente, o mar está agitado, parece reclamar cadáveres. Conservamo-nos no calor artificial da casa, na luz amarela, entre paredes que nos protegem, na intimidade reencontrada, reconquistada. Olho-me no reflexo da vidraça da janela. Tenho a fadiga estampada no rosto, mas é uma fadiga serena, confiante, uma prostração pacífica. Deixo-me tombar sobre o colchão ainda quente. Observo os sinais dos seus ombros. Sei que já nada mudará de ora em diante.


Partiremos no primeiro ferry.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Sermão aos peixes

Vou tentar fazer chegar esta missiva aos vossos olhos e peço que a leiam. Mas não alimento qualquer esperança de que estas palavras penetrem nos vossos corações. Sei que desperdiço a minha tinta e o meu tempo.

Este Mundo está tão breve! Não podemos ter a veleidade de emitir qualquer condenação sobre os seus habitantes. Importa viver primeiro e filosofar depois.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Outono


A maior parte das pessoas, à medida que vai amadurecendo envelhecendo, descobre que passou a vida a dar explicações, e arrepende-se disso, mas continua a fazê-lo.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Sobressalto sistémico

Alguém mandou calar o canto dos pássaros porque o ouvido interior dessa pessoa ouvira uma melodia mais bela! Alguém mandou murchar as flores e as árvores porque o seu olfacto interior descobrira um aroma mais maravilhoso que os aromas da própria natureza. Finalmente, alguém mandou destruir a arquitectura e os objectos de arte porque se apaixonara pelas coisas impalpáveis.
Assusta-me que tenha deixado o céu tão azul.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Palomar

O Senhor Impontual é um desgraçado e desgraçado é toda a alma presa pelo amor às coisas finitas... O Senhor Impontual sente, por antecipação, um profundo tédio aos dias vindouros. A alma do Senhor Impontual está despedaçada e escorre sangue, e não se sente bem em si, mas o Senhor Impontual não encontra lugar onde possa pacifica-la. Ela não encontrará paz nos bosques amenos, nem nos jogos e cânticos, nem em jardins suavemente perfumados, nem em banquetes faustosos, nem em lareiras rubras, nem no prazer da alcova, nem mesmo nos livros e na poesia.
Porém, há uma coisa extraordinária para ver nas margens do Arno neste inicio de Outono: o céu apinhado de pássaros.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Integridade, decência, solidariedade, dedicação à causa democrática

 Jorge Sampaio
(1939-2021)

"Um Presidente da República não é uma folha seca, é alguém que tem de ter princípios e valores que defende a Constituição e está recheado de vivências."

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Setembro


O passado, o presente, o futuro - um livro rasgado em pedaços. 
Por onde começar, a fim de voltar a pôr tudo em ordem?
Hoje estou aqui. Consciente. Dado estar aqui, não necessito perceber os pormenores.
Nem tudo é para ser.

domingo, 29 de agosto de 2021

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Agosto não é um bom mês

... para se fazer uma entrevista a Antonio Barreto.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Tábua de marés

Mas que boa ideia! Que ideia sã! Invejo-lhe a fleuma, a indolência, a despreocupação. Um ideal que para o atingir deve ser preciso ter a mente vazia ou então uma mente preenchida e rica. Vê-la comer foi altamente inspirador. Saboreou cada pedaço de comida, que escolheu com toda a calma. Teve o cuidado de escolher coisas de que gostava, que lhe caiam bem, porque o sabor lhe agradava. Prolongou interminavelmente a refeição, com o seu bom humor a aumentar, com a sua indolência a tornar-se mais sedutora, o espírito mais agudo, vivo, desperto. Uma boa refeição, uma boa conversa. Uma boa f...., pensou a minha mente insana. Que melhor forma de passar o dia. Ao contrario de mim não tinha escorpiões a devorar-lhe a consciência, preocupações das quais não se conseguisse descartar. 
Limitei-me a flutuar com a maré, e nada mais.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

No entanto, recordo perfeitamente ...

No instante de afastar as coxas, sentir um êxtase, um momento de terror luminoso, como deve sentir um homem que salta da ponta de uma falésia indo cair sobre as rochas distantes. Ou o criminoso, atirado para a eternidade pelo empurrão do carrasco, voando sobre o silêncio da multidão. Vê-se tudo, compreende-se tudo, uma luz intensa, um ar calmo. Depois o vento quebra as ondas sobre a cabeça, a luz diminui, o odor a terra molhada intensifica-se.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Entrefolhos

Assim que toquei a campainha a porta abriu-se num movimento imediato. Lá dentro era uma sala de mobília tubular em preto e branco, no chão um tapete de lã, espesso, como uma nuvem por onde me deixei deslizar. Não conservo recordações dessa noite, nem das pessoas que ali estavam, nem da musica que foi tocada. A única coisa que subsiste na minha memória é o seu rosto, uma oval perfeita riscada por lábios vermelhos, olhos de corça, planetas de reflexos escuros no interior dos quais parecia decidir-se os destinos do universo, pescoço fino, o movimento do corpo constantemente a escapar às regras mais elementares da gravitação, nádegas aristocráticas, seios tumefactos de vida e de sumptuosos mamilos. Recordo ainda o encontro dos corpos de onde se exsudaram odores intensos, os dentes a morder a pele, ser conduzido às portas do inferno, de me enterrar até ao fundo. E uma vez percorrido esse caminho, escavar a minha própria sepultura, afundar-me no abismo escorregadio onde outrora tantos outros haviam perecido. Não sei se era sábado ou domingo.

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Há autores que começam os seus livros de uma maneira que já nem nos apetece ler mais nada


"Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si."

_Jeferson Tenório, O avesso da pele

terça-feira, 20 de julho de 2021

Vergílio

Dela quis sempre tudo. Ver todos os seus rostos, todos os seus medos, todas as suas audácias, aquele sentimento novo que se inventa de cada vez que se a volta do avesso como quem vira uma luva e que faz surgir em si territórios desconhecidos, para onde nos deixamos arrastar aterrorizados, voluntários e seguros de que estamos a aproximar-nos de uma luz que nos cega, mas que nos escombros do interior nos fala de amor, de identidade, de terra por desbravar. 

Tivesse tido eu tempo de a invadir e certamente encontraria por dentro o que amei por fora até à estupidez.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Tu nem sabes a sorte que tens


Poder olhar o mar. Poder olhar o céu. Com a tarde a acabar, poder assistir ao sol a dizer para a lua: vem. Desfrutar da noite quieta.Tu nem sabes a sorte que tens. Para muitos isto é tudo.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Summertime

Fim de tarde, um banco junto ao passeio marítimo, uma silhueta, um vestido florido com as cores do dia, o peito generosamente desnudado, as ancas amplas, a pele branca, o cabelo acobreado sobre os ombros arredondados, sandálias com plataforma de juta, ao pescoço um lenço de seda, ao lado a mala aberta, óculos, tabaco, isqueiro... e por cima um outro lenço, também fino e leve, amarelo torrado. Os cabelos revoltos pelo vento, o olhar atento, absorto, perscrutando o horizonte, o rosto marcado por uma branda e evasiva solidão, mas intenso como no passado, à espera de um sussurro, de um movimento de lábios ou de mãos ou de corpo ou... de ondas no mar ao fundo. Ou, mais ao fundo, Billie Holiday interpretando majestosamente a chegada do Verão.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Sessão da Meia-Noite


"Ladrões de bicicletas" - Vittorio de Sica, 1948

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Apostasia

Toda a minha vida fui um ateu militante, mas perante estes tempos de espírito inquieto não tomarei a mal que rezem pela minh'alma.

Amém. 

sábado, 3 de julho de 2021

Afonso Cachucho*

Petrificado e sem o controlo dos seus olhos, deixou-se assistir à orgia que se iniciava no tapete cor toupeira decorado com pavões e dragões, cujos olhares insondáveis pareciam ganhar vida. Os bronzes de máscaras grotescas, os livros da biblioteca grande, todos os outros objectos iam por seu turno ganhando vida também, como num pesadelo, ao ritmo pontuado de suspiros e gemidos, do jogo inverosímil e alucinante a que se entregavam e misturavam na sua frente os dois corpos de pele macia. O seu espasmo foi o de um homem aparvalhado, fustigado, espicaçado, mortificado.

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Sara Pinote *

Morena, olhar profundo, cabelo acobreado, pele fresca e mate, seios cheios, cintura miraculosa, tornozelos finos, uns sapatos de pele de antílope, de salto alto, por baixo do casaco comprido um vestido preto, fino, frio, de mangas curtas, e uma carteira a abarrotar de fantasias. Esbelta e rápida de movimentos, ansiosa por ver e por ser vista. Em momento algum dispensou a máscara. Não parecia destinada a um único amante. Também estava só.

terça-feira, 29 de junho de 2021

Rasgos da mente

Tenho uma amante imaginária. 
Preocupa-me que tenha começado a escrever-me.

terça-feira, 22 de junho de 2021

História universal da submissão

Despe-te! -- Ordenou um.
O outro tirou lentamente as suas roupas, depois a pele.

terça-feira, 15 de junho de 2021

Selecção Nacional

O que é um "colectivo" para um EU ainda com tantas necessidades? O que é um "eu" para um COLECTIVO cheio de talento oprimido?

Da resposta às questiúnculas decorrerá a qualidade e a quantidade do ópio que o povo tomará nas próximas semanas.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Penúltima fase do desconfinamento

Primeiro aconteceu um beijo que se prolongou no entrelaçar das línguas. Depois a mão direita subiu pelas costas em busca dos colchetes superiores. Outros beijos se foram perdendo no pescoço à medida que se desapertavam os fechos dourados. O qipao tombou aos seus pés, revelando um busto de belos seios firmes, uma cintura delgada, descrevendo uma curva suave que se alarga nas ancas e se prolonga harmoniosamente pelas pernas. Abraçamo-nos com outra intensidade.

Melhores dias virão.

terça-feira, 1 de junho de 2021

Dia Mundial da Criança

Cheguei abúlico e como se nada tivesse a negar ou a afirmar sobre este parque infantil onde a beleza prevalece, embora predomine o acidente, a imperfeição da felicidade. Conservo uma velha ternura pelos recantos deste jardim e espero sempre reencontra-lo com o olhar antigo e o cândido sentimento da descoberta. Mas os dias não param de revolutear imperdoáveis e as faces das coisas, dos lugares, alteram-se inevitavelmente. A vida passa, enquanto se espera que ela comece e chega um tempo em que os pássaros já não encontram o céu, em que as estrelas são irremediavelmente maculadas.
As pessoas, essas, continuam bonitas, cautelosas e sensatas. Sinto-me envolvido por uma onda de afabilidade e cortesia, mas nem por isso me sinto obrigado a excessivas diligências para com aqueles que ao fim de tanto tempo me recebem com benevolente cumplicidade. É notório que ambos aprendemos que as ambíguas sinceridades se tornam hoje, mais que nunca, em sentimentos velados e imprecisos, e que as relações humanas estão confinadas dentro de certos limites: na dissimulação entre as contradições, as certezas e as dúvidas.

domingo, 30 de maio de 2021

Sem foto de pouco vale, bem sei

Mas...é que hoje vi outra vez algo maravilhoso. E foi outra vez na marginal de Moledo. Uma imensa bola de fogo tombando sobre o horizonte, ardendo lentamente até desaparecer lá nos confins do mar que era azul cobalto. 
Mais ao fundo, desta vez com uma ligeira bruma, a Cecília Bartoli cantando majestosamente... quanno fa notte e 'o sole se ne scenne me vene quase 'na malincunia.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Palomar

Esta manhã o Senhor Impontual olhou-se no espelho e reparou nas rugas entre o canto do olho e a têmpora, nos sítios onde a pele já não é tão esticada como dantes. O Senhor Impontual não se reconheceu. Pareceu-lhe que está a envelhecer de uma maneira confusa. Os dias aceleram, mas o Senhor Impontual não se sente pronto para o encaminhamento deles. Porém há uma coisa que mais do que outras sinaliza que o Senhor Impontual está a envelhecer. Deixou de corar. Deixou de sentir aquele rubor nas faces, aquela alerta vermelho perante as situações.
Noutros tempos o Senhor Impontual achava isso incomodativo. Desde a infância que sofria por corar com tanta facilidade. Em todas as situações, muitas vezes sem nenhuma razão óbvia, podia sentir um súbito ardor nas faces. Por vezes corava até quando estava sozinho perante um pensamento ou uma recordação. O Senhor Impontual esforçava-se por deixar de o fazer, mas era impotente.
Agora, assim do nada, o Senhor Impontual deixou de corar. Não é por já não se sentir tímido ou achar uma situação embaraçosa. Deixou simplesmente de corar. Algo se apagou dentro do Senhor Impontual. O Senhor Impontual começa até a interrogar-se se a sua disposição para corar não teria algo de valioso, talvez o mais valioso que em si havia. Talvez tivesse significado uma ousadia paradoxal, talvez a sua timidez tivesse sido, na realidade, uma força. O Senhor Impontual procura agora a chama que se perdeu dentro de si, mas já não a acha. O Senhor Impontual sente a saudade tardia que é a crueldade inerente do tempo: compreender as coisas no mesmo instante em que elas desaparecem.

sábado, 22 de maio de 2021

Fiodor

Há lugares que parece que foram desenhados no mapa com o único propósito de absorver a mente de quem os visita. Até dos cães!  Esses lugares, mesmo que não o consigam alcançar com uma única imagem aniquiladora logo à chegada, vão-se alimentando do visitante paulatinamente, consumindo-o desde o seu interior, banqueteando-se primeiro das suas expectativas - dando-lhe uma e outra imagem que este procura desesperadamente, apossando-se depois dos seus anseios, das suas memórias, das suas nostalgias, das suas premências, até que a emoção dê lugar à loucura e esta comece a ganhar terreno sobre a vitima, tal como a maré que chega à praia. O Senhor Impontual, definitivamente, não tem mão nem fôlego para o canino de pêlo pardo.

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Geometria descritiva

Com a Primavera, chega o tempo de cuidar dos jardins. O Senhor Impontual, por si, vivia no meio dos relvados: horas a fio executando o corte sempre de acordo com os seus preceitos geométricos. Todos os dias, qual navegador obstinado, ir e voltar naqueles mares de verdura, sulcando, ao sextante, o coração dos jardins. Deixar atrás de si a ilusão de um mundo pacificado, de uma natureza submissa e de uma vida sem surpresas.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Intifada

Quem sou eu, bem pesadas todas as coisas, para me armar em juiz impassível de civilizações tão ricas? Acabaria certamente por ficar afogado em lugares-comuns. E afinal, bem vistas as coisas, todas as civilizações assentam nesta ideia de que de um lado não há mais que uma horda vagamente humana e do outro os iluminados. A colossal e arrogante desumanidade com que é policiada essa fronteira é que é de uma crueldade absoluta. Ninguém escolhe onde nasce. Parem lá com isso. Ou atirem pedras uns aos outros.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Esmeralda

Entre as características de personalidade com que o destino a atormentou, existe infelizmente esta: pronunciar banalidades nas horas cruciais, manter-se de mármore frente às dores dos seus semelhantes sem encontrar uma palavra afectuosa que a aproxime deles, descobrir que tem um coração duro e impassível mau grado o seu desejo de ser uma irmã ou uma confidente.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Funes

Quantos iluminados, quantos artistas de uma fé em que ninguém excepto eles confiam, se humilham e varrem a serradura de quem dorme com eles, e provavelmente lhes dá de comer, desde que lhes permita crer que haja algum alento nos seus insignificantes versos; quantos que, depois de o tempo se aposentar e favorecer os sarcasmos, renunciam inclusive ao ilusório reconhecimento do silêncio desde que assim possam continuar a dedicar horas ao que já não representa outra coisa além de um pretexto falhado de esquecimento. Quantos?

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Professor Mamadu

Desci do hotel bem cedo. Fiquei de pé um instante no passeio a olhar pela rua abaixo onde teria deixado o carro, mas logo depois o avistei. Tirei uma folha de publicidade do pára-brisas: "Professor Mamadu , astrólogo, medium e grande conselheiro de assuntos do oculto", ajeitei-me atrás do volante e com pequenas manobras consegui sair do lugar apertado e entrar na rua. Tomei o caminho em direcção à ponte que me levaria para a outra margem para fora da grande cidade.
Àquela hora o tráfego era escasso e a faixa de rodagem estava praticamente vazia à minha frente. Enquanto atravessava os quarteirões imaginava as pessoas da cidade a acordarem, a espreguiçarem-se na cama a dizerem as primeiras palavras absortas umas às outras ou simplesmente a levantarem-se em silêncio, torneiras a abrirem-se nas casas de banho e os espelhos a encherem-se de rostos sonolentos.
É sempre com alivio, um agradável tremor no âmago, que entro na ponte, pressiono o botão para que o vidro baixe e inspiro fundo o ar fresco. Deleito-me a sentir a confusão da cidade, o seu alarido e movimento a desaparecer atrás de mim enquanto bato, de exaltação mal contida, com os dedos no volante acompanhando a música que a rádio me oferece.
Sair da grande cidade!
Primeiro a aceleração a fundo. Depois, sucessivamente, o caminho estreita-se, as árvores nos lados da estrada vão ficando para trás alastrando quietude. Levanto o pé do acelerador e deixo-me encher com uma funda inspiração pelo perfume adocicado. Deito uma fugaz vista de olhos para mim próprio no retrovisor, da maneira como as pessoas que conduzem distâncias longas sozinhas têm por hábito fazer, como que para se assegurarem de que continuam ali. Reparo no meu rosto. Tem uma cor saudável. Apesar da idade ir avançando, é um rosto sem rugas, apenas algumas finas linhas aparecem quando franzo o sobrolho. Passei a mão pelo cabelo grisalho e virei a cara, estudando-a, como se tentasse descobrir algo. Talvez a barba estilo pêra seja um look forte demais para mim. A verdade é que por mais idade que se atinja, nunca conhecemos ao certo o nosso visual. Todos os dias nadamos na ignorância sobre nós próprios. Mas observando bem, percebe-se o quanto ainda podemos ser. Corpo e alma que se digladiem...

terça-feira, 4 de maio de 2021

Sem título, sem adornos



O olhar do Senhor Impontual, depois de ausência prolongada, pousou na paisagem de parede: no Cucumis Sativus e nos seus já abaçanados pepinos, um infindo horizonte isento de terrores, sem problemas humanos, sem nenhum incidente causado pela natureza, sem slogans falaciosos, sem estandartes doutrinais, a confirmar que a Primavera está aí e que a calculose lá para o Verão estará controlada. Com uma ou outra pedra no sapato, é certo. 

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Ainda antes que o dia acabe

Ver os seus olhos fecharem-se de sono antes dos meus, a fim de poder, como agora, murmurar-lhe palavras que vão afagar o seu rosto, a sua nuca, tal qual um demónio protector, escutar a sua respiração apaziguada e dizer-lhe que a nossa dança está ainda para começar. 

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Cicatrização

Gosto de passear por aqui e, embora nem sempre ache o caminho certo, reconheço todos os lugares. Há agora um tímido regresso ao movimento. Em todos estes becos e escadarias, uma vez mergulhados subitamente para dentro deles, o nosso olhar cai nos degraus vacilantes, nas plantas à porta, no pássaro da gaiola pendurada na varanda a chilrear mantendo a beleza do seu canto atrás das grades. Ali está o pequeno restaurante vazio, ali está o pequeno café abafado pela penumbra da tarde, a esplanada outrora multilingue, o largo com a capela, distraidamente guardado pelos pombos. Ali estão as mulheres à janela, com as caras meio tapadas por cortinas muito finas, imóveis como garças à beira de um rio. Parecerem viúvas, com os olhos direccionadas para o passado, para noites longínquas e caricias distantes. Também os jovens estão invadidos por uma melancolia, uma perda indistinta, como se um pequeno véu de luto tremulasse nos seus olhares. 
É a Invicta a secar suas feridas. A morrinha não ajuda muito.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

26 de Abril

Passaram os dias, passaram as noites. O sol aquece agora nas vidraças das janelas. Inês aponta na apostila umas notas de vida livre. Não pode introduzir-lhe notas da sua alma passada. Angustia-se, volta a interrogar-se sobre se tem ou não uma alma e os seus limites assustam-na uma vez mais. Inês é livre e isso deveria bastar-lhe. Vitoriosa também, porque ignora e despreza os antigos moldes que aprisionavam a sua vida, o seu pensamento, tudo, tudo. Deveria responder a esta pergunta: sou um novo ser, sou uma outra? estou verdadeiramente liberta? Não, conclui sem tristeza. Limitou-se a forjar uma armadura.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Pintar Abril

Estamos no fim de Abril. Há uns meses largos que não vinha posar. Entrou com a elegância de sempre. Sentou-se no canapé de palhinha com as costas direitas, entrelaçou os dedos das mãos e deixou-as cair sobre o regaço. Fez uma pausa. Ignorou-me com o olhar. Fixou-se absorta no vazio.

A tristeza leva tempo a aparecer num rosto, existe um período de incubação em que paira como um vapor dentro de uma pessoa mas sem deixar rasto; e passados uns meses, uns anos, apodera-se dela lentamente, uma ruga no canto da boca, uma sombra à volta dos olhos, um pescoço menos esguio, um olhar quiesciente.

Um lápis imoto. Uma tela em branco com um fundo flavo.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Dia da Terra

O Senhor Impontual continua desconfiado que um dia o Planeta travará de súbito naquele preciso momento e por ali ficará, estático, durante um instante mais alongado, mostrando-nos todos os horrores que lhe fomos infligindo. Já faltou mais.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Falsete

De regresso, e ao encontro da noite, olhos abertos à escuridão povoada de insectos e bichos trovadores, enquanto vou queimando quilómetros de estrada numa cadência acima do permitido, a Antena 2 impinge-me na voz de Cecilia Bartoli uma cantata de Monteverdi: "sì dolce e'l tormento", tentando convencer-me que quando a tristeza junta os olhares de dois amantes é porque estão prestes a separar-se. E eu aqui mortinho por chegar a casa.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Nelinho

Entrega-se com facilidade. Sente a tentação de cometer o irreparável, de transgredir o sacrossanto regulamento, de desafiar permanentemente a ordem estabelecida da sua vida. Adulto infantilizado, aterrorizado e ao mesmo tempo excitado pelas suas minúsculas ignomínias, sente-se agora, mais do que nunca, secretamente cúmplice de uns e de outros. No ar, suspensa, paira a erradicação do sacrilégio, o sentimento gratificante de não trair em vão. Tenta convencer-se de que tocarem-se ao de leve, acariciarem-se discretamente nos intervalos para café lá do reaberto escritório e uma lufada de sexo cru em sextas-feiras alternadas, onde pode gemer à vontade durante um par de horas e depois voltar a casa, constituem outros tantos sinais de libertação. 
Ó Nelinho! 

sexta-feira, 16 de abril de 2021

You're stumbling in the dark? **

 Não vos acontece? Ver-vos num esquecimento e num desapego imprecisos e diáfanos. Alguém no vosso intimo, talvez vós próprios, esforça-se por se livrar de um fardo terrível e sentis que o seu esforço, as tentativas obstinadas anunciam o degelo, a Primavera. Ensurdecidos às vossas próprias vozes, assistis ao combate com a indiferença de uma pedra. "Pouco me interessa quem vencerá", dizeis de vós para vós mesmos. Mas, aos poucos, tomados por uma espécie de vertigem, começais a sentir simpatia pelo rebelde que vos habita e ajudais em pensamento esse rebelde que vos diz que nenhum destino ou imponderável tem o direito de esmagar uma mulher ou um homem vivos.
Não vos acontece? O Senhor Impontual, não se excluí.

**subtracted from the darkness, right here.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Estilo D. Maria

Acordou deitada de bruços, nua, sobre o lado direito da cama de cabeceira estofada com moldura entalhada. Ele contemplou-lhe demoradamente o corpo, afagou-lhe o pescoço, as espáduas, o dorso, as nádegas, soergueu-se e beijou-a com minúcia. Ela, gemendo baixinho, contorceu-se de maneira quase imperceptivel. Percorreu-lhe o corpo, depois, com o sexo erecto, passou-o pela palpebras cerradas, pelas faces, pelo nariz e introduziu-o na boca entreaberta da rapariga, que o chupou, mantendo, a seguir, os lábios grossos e quentes na glande, sobre a qual moveu a ponta da lingua. Os movimentos de ambos eram suaves, harmoniosos, ritmicos, as respirações pausadas. Quando retirou o sexo da boca dela, no orificio brilhava uma gota de sémen. Entreabriu-lhe as nádegas rijas, colocou o sexo à entrada e enterrou-o. A rapariga gritou, agitou o corpo como se quisesse repeti-lo, depois aquietou-se, enquanto pensava que cada cama é uma história de suspiros. Ali encontram-se todos os suspiros que lançamos: os primeiros e os ultimos, os apaixonados e os desiludidos, os excitados e os ofendidos. Juntos formam um único suspiro que, sumamente, define uma vida.

terça-feira, 6 de abril de 2021

Caducifólio

Todas as manhãs, enquanto tomo o pequeno almoço, costumo fazer um rascunho daquilo que me reserva a jornada. Depois gosto de acender a televisão passado um bocado, sem ver o que está a dar. Hoje não o fiz. Permaneci na cozinha, à janela com as cortinas finas que agitavam levemente na corrente de ar da rua. Com a ponta do dedo levantei a bainha e olhei pela vidraça. O céu lá fora estava sem uma nuvem. Imaculado. Os pombos arrulhavam na tangerineira. A andorinha de asa negra no beiral. Era Abril. Nas árvores viam-se botões fortes, saudaveis. Tudo luzia. Mas no passeio, lá em baixo, umas folhas sussuravam ao vento. De que tipo de árvores viriam essas folhas outunais caídas agora, na Primavera?

segunda-feira, 29 de março de 2021

Minuete

Os seus passos demorados não têm nada de cansaço ou de confuso, pelo contrário: toda a aparição está desperta, ali, onde desliza pelo passeio. Aquela é a sua forma de se mover e percebe-se claramente que não se envergonha disso. Essa lentidão é mais provocante que um decote ousado ou uma saia justa um palmo acima do joelho. Tudo é tão intimo, como se estivéssemos a vislumbrar a sua alma. A lentidão torna-a mais nua que a própira nudez alguma vez teria conseguido. Por detrás dela pressente-se uma coragem do tipo mais despretencioso e profundo. Inventou uma forma totalmente nova de se mover, um equilibrio nunca antes visto, uma coreografia do principio do mundo. Não caminha sobre o chão, acaricia-o. É como se toda a sua vida fosse um minuete demorado e ela se movesse ao som de uma música que nunca se extingue e que mais ninguém ouve. 

sexta-feira, 26 de março de 2021

Palomar

O Senhor Impontual é um fugitivo. Desde sempre que o é. O Senhor Impontual sabe desenhar casas, sabe toldar-lhe as fachadas e o interior. Sabe desenhar jardins. Mas o que o Senhor Impontual gostava, mesmo, era de saber desenhar rostos. Se um dia, no grande incêndio, os livros fossem queimados, o Senhor Impontual está seguro de que os rostos passariam a ser a biblioteca dos homens, as rugas as suas linhas, o olhar as suas histórias. Mas desenhar rostos é muito dificil. Em cada rosto há algo de inatingivel. O lápis desespera e continua à procura. Por vezes sente-se que se roça nele e ficamos com a mão a escaldar. Outras vezes pressente-se que desde que se espere de um modo suficientemente observante, chegará o momento em que se revelará por um único risco milagroso, como quando se espera na noite pelo alvoroço, pelo momento do nascer do sol, quando as névoas se levantam, as sombras se dispersam e o interior da paisagem se revela. Mas não. Com muita pena do Senhor Impontual.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Rosinha

Rosinha não é má rapariga. No fundo, é avessa à falsa burguesia e ao puritanismo em que vive. Mas é incapaz de entrar em choque com o seu mundo. O seu derivativo é aquele tipo de rebelião mansa: afinal um sintoma das épocas de impotência. Rosinha está, como qualquer um, à espera de um grande acontecimento que a obrigue a modificar a penúria da sua vida, mas não provoca esse acontecimento, porque estaria a agir contra si própria. Também lê, como qualquer um, também é esperta, como qualquer um, mas tem um emprego em home office e não está disposta a perder esse privilégio. Rosa é uma virtuosa, à sua maneira.

terça-feira, 16 de março de 2021

Ao postigo

Às vezes penso que talvez devesse deixar de escrever. Mas as palavras continuam tão intactas. Trato-as com o cuidado ganho pelo tempo, da mesma maneira que trato as pessoas que me são próximas, familiar com os seus caprichos e vicios, os seus sonhos e desilusões. Como quando olhamos um retrato e este ganha vida, levanta o sobrolho e inquire: - Sim?  
E, a medo, respondemos "não", como se as palavras se tornassem um eco das primeiras palavras, as certas. E respondemos "não" como última manifestação de liberdade.
A verdade é que se escrevesse para os outros, deleitar-me-ia a descrever tudo o que não sinto necessidade de descrever para mim. Recorreria a uma enorme paleta de cores cruas e insólitas. Escreveria com uma bonita caligrafia sobre o céu e uma sensação de azul liquido incitaria a minha mão. As palavras alinhar-se-iam, crispadas, incapazes de circunscreverem esta sensação azul que me dilata o coração. E com a mesma caneta, a caneta da ilusão, descreveria as colinas...as montanhas arrasadas e as florestas transformadas em flores, as plataformas de pedra e a brancura das ondas desvastando o areal saibroso.

__ e o sol lá em cima.

sexta-feira, 12 de março de 2021

Chesterfield

Apesar dos dias serem agora mais claros, a rua lá fora mais animada e o chilrear dos pássaros nas árvores ser mais forte, sentava-se no sofá. Aquele sofá que fora a primeira peça de mobilia que compraram juntos. Pensava no amor que costumavam fazer nele. Nesses tempos arrancavam a roupa por desejo. Agora despem-se com movimentos frouxos ao fim do dia, dobrando a roupa cuidadosamente em cima das costas da cadeira do quarto. 

quarta-feira, 3 de março de 2021

Memória háptica

O amor é agora mais intenso e demorado. Porque, antes de a penetrar por várias vezes, tinha-a despido lentamente e tinha-me detido com carícias em cada parte do seu corpo, sorrindo-lhe e dizendo-lhe que era bonita, e quisera ser eu a tirar-lhe os ganchos do cabelo e a enterrar as mão naquela nuvem negra de caracois e desabotoar-lhe o vestido, deixa-lo cair, e ficar a olhar para ela, nua, deitada na cama, admirando-lhe os seios grandes e rijos, a pele branca e macia, as longas pernas, enquanto a acariciava e a beijava em sitios onde nunca tinha sido beijada.  

Isto depois de uma garrafa de Cartuxa, claro.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Parlenda

A televisão. O país. O Mundo. A dissecação de uma pandemia. A queda da civilização livre. A falsa justificação da responsabilidade. A confrontação entre um certo tipo de destruição e de ascese. Palavras, palavras e mais palavras.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Cratera Jazero

A escuridão dos céus serve de cenário ao corpo a corpo. Jogam, fazem tenção de tudo, já. Ele persegue-a, empurra-a, levanta a saia, retira o que estorva, espanta-se silencioso da pele suave das nádegas, atarda-se, prova com os dedos o acetinado, ela puxa a sua cabeça para entre as coxas, ele obedece à determinação, coloca as mãos atrás das ancas, oscila a cabeça, aplica-se com doçura, ali onde tudo está à flor de tudo, avança sem forçar, afloramento, saliva e humores amalgamados. Ela cala-se, de olhos fechados, pensa na terra que se esvai para os confins do universo, foguetão projectado no firmamento, espera, ri-se, emociona-se, goza cada segundo, o tempo estira-se, a luz brota por todos os lados. 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Entrudo

A aparência é a forma que Amélia encontra para que as outras pessoas não a vejam. Não adivinhem o seu mal-estar interior. Por isso criou para si mesma um personagem alegre, voluntário, enérgico, simpático, pimpão, sempre pronto a dar o exemplo, a dobrar-se à vontade de uns e outros a fim de afastar os raios que sente sempre prestes a brotar. O seu corpo contorce-se numa roda endiabrada, a sua boca deforma-se em sorrisos automáticos, os seus braços desenham anéis que lança em volta do pescoço daqueles cujas tempestades receia. Ignora a sua cólera, a raiva que a invade contra aqueles que se dilaceram diante de si. O tempo de um armisticio. Aprendeu a intervir como um bombeiro apressado, atirando baldes de bom humor sobre os rostos em chamas. Representa tão bem aquele personagem em perpétuo movimento, receando que se instale uma calma ameaçadora, um silêncio perturbador entre duas feras à espreita, degenerando em gritos, insultos, lágrimas, envio de projecteis e depois um bater de portas.
Amélia sabe misturar humor, folia e dor com uma extraordinária simplicidade.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Valentinos

Nenhum amor é perfeito. Mas a perfeição também é sempre detestável. Aquilo que adoramos mesmo são os defeitos.
A questão é: de todas as falhas, qual é que amas em especial?  E dizê-lo, dizê-lo devagar e em silêncio para que o possamos apreciar juntos durante a longa noite.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Palomar

O Senhor Impontual, um homem vencido pela contemplação e que nunca gostou de páthos, que sabe que todas as honras e as palavras elogiosas com que nos cobrem não passam de palha e que o que permanece é a voz destituida de ambiguidade, esperteza ou ironia, a voz herdada dos tempos vividos. Essa é a voz autêntica. Os disfarces e os artifícios não passam, afinal, de uma roupagem provavelmente necessária para cativar o ouvido, mas não são o essencial. O essencial grava-se no corpo e não na memória. As células do corpo lembram-se melhor do que a memória que foi feita para recordar. O Senhor Impontual gosta da contemplação porque esta não o sujeita a qualquer geografia estática. Mais ainda: permite-lhe alargar os seus limites ou elevar o objecto às alturas. Sem que para tal tenha de dizer uma única palavra. 

O Senhor Impontual esta manhã rompeu o confinamento e foi olhar o mar de perto. Era um mar plúmbeo, agitado, coberto de nuvens grávidas. Tão bonito, tão azul...

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Escala cinza



Hoje abriu uma nesga de sol. Enquanto faço uns rabiscos em escala maior e nos ouvidos tenho os The Cure com Lullaby, reparo que o casal de pombos voltou à tangerineira. Já tinha dado conta da chegada do pombo macho. Esteve por ali durante uns dias, só, calado, mudo, cinzento. Hoje, pela aurora, chegou o outro - a femea. Penugem luzidia. Igualmente cinzento. Cabeça bem levantada: eu sou a saudade toda-poderosa, deves tremer diante de mim, dar-me tudo porque sou insaciável, um ogre, um vampiro, uma assassina em serie de felicidades confessadas e anunciadas em voz baixa
As suas cantorias ainda são vãs e inábeis. Tentam elevar-se à altura da sua catedral, mas apenas conseguem volitar uns sons guinchantes e ocos, escarrados por goelas fatigadas. O silêncio e os seus corpos cinzentos, um encostado ao outro, monogâmicos, eis o seu dominio, o seu reino encantado onde inimigo nenhum conseguirá penetrar.
Entretanto apareceu o arco-iris.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Maiores e vacinados

Sempre atrás das redes hertzianas, ligados por cabo, satélite e fibra óptica, quais atendedores automáticos de chamadas, mentes miserandas de sinapses de fraca carga, recolhendo os versículos do quotidiano onde o licencioso se mistura com a pequena luxuria e os tráficos de toda a espécie, uma pobreza sem bandeira, um submundo perdido dos lugares de fronteira, a cavalo entre o passado comezinho e o presente mesquinho. 
Que puto de país! Que puta de gente! Era os alemães enviarem também a Gestapo.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Do livro da sabedoria

Depois da violencia dos nossos corpos atravessar o dique da linguagem, passando para além das palavras, para além de tudo o que possam dizer as palavras. E então só se ouvir o roçar da minha pele contra a tua, as goticulas de suor que rolam da tua pele para a minha, a tua língua que vem lamber essas mil goticulas, que sobe à minha orelha e repete incansavelmente: quero-te, já.
Depois de me pôr de joelhos entre as tuas pernas e enxugar o teu corpo dessa água que corre, dessa sede que jorra entre a tua pele e a minha, essa sede nunca saciada que encontra mil fontes novas em mil recantos escondidos dos nossos corpos espantados.
Depois de deixarmos a beira-mar, os seixos, os rochedos e andarmos à deriva na espuma suja das vagas, afogarmo-nos naquela água salgada, lambermo-nos, respirarmos, erguermos a cabeça para recuperar o folgo e partirmos para mais longe no desconhecido caminho maritimo dos nossos corpos, curto e cheio de tédio será o tempo das nossas vidas sem rememoração.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Por aqui ainda não há pássaros

As coisas parecem prosseguir como se eu não estivesse aqui. O meu estado de absoluta indiferença não me assombra nem me entristece. O trabalho absorve-me. Mas o silêncio, agora, é pegajoso. Húmido. Um silêncio húmido que ninguém interrompe, como que por temor. Nem os pássaros arriscam um pio. Tombou o silêncio e o silêncio parece querer vigiar tudo e todos: os homens, as mulheres, as ruas, a sombra imponente dos prédios, os animais, as árvores, os barcos, o rio. Provavelmente, o silêncio é uma forma imperativa de esquecimento. E bem precisamos de obliterar o tempo presente. Mas ... e quando já não houver mais nada para esquecer?

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Isto já depois do concerto do Nick Cave em Copenhaga

Nao posso deixar de admirar esta gente toda que, por opção, mergulhou de forma vertiginosa e assustadora no poço mais profundo da hipocrisia politica e por lá se vai deixar ficar, de olhos bem abertos, num exame escuro do populismo, tempo suficiente para perceber o que vê, o que toca: o horror, a angustia e a permanente sensação primordial do medo de ser humano, de estar vivo, de ter que viver e dar vida. Mas que, ainda assim, há-de encontrar um feixe de luz para intuir que um dia gostaria de cuidar de fazer do preto, do branco e do cinza amigos de todas as cores do arco-íris. Que puta de gente!

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Portugueses de bem

Para o Senhor Impontual, que se alimenta de sensações e de verdades que troca quando o cansam, as recordações são meros acessórios. Não as exorciza quando surgem, mas não as procura. De qualquer forma, o Senhor Impontual jamais abdica do seu centro de gravidade - o tempo em progressão, o tempo fugidio.
A vivência do Senhor Impontual seria medíocre, desprezível, se lhe bastasse saber que o sol se levanta de manhã, que as aves acordam e as flores abrem. Há muito que estes instintos, só por si, se silenciaram no Senhor Impontual.
Contudo, não surpreende o Senhor Impontual que, depois de terem vivido outras horas, os homens possam retomar o quotidiano vulgar e repousante. O Senhor Impontual não teme os indícios de retrocesso, as mentiras-refrão, as falsas promessas de mudança, uma profecia demagógica ou uma revelação, mas teme, e muito, a capacidade que os homens têm de as esquecer (as horas vividas), a coragem que têm de voltar ao seu velho mar morto.

domingo, 10 de janeiro de 2021

Prognóstico


A tarde cai fria, o sol e as nuvens esmagam-se contra o rio. O olhar, as palavras interiores e a imaginação retorcem-se até criarem paisagens inóspitas, alamedas sombrias de densos arvoredos, bosques carregados de espinhos. Pouco a pouco vão ficando poucas coisas em que pousar os olhos. Entretanto chega a noite e consigo vem o desvelo. E logo: a dúvida. A culpa e os culpados. A responsabilidade e os irresponsáveis. Por último: a angustia. O áspero som do silêncio a perfurar o pensamento. O espectro a pairar sobre a cabeça.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Dia de Reis

Foi estranho o que aconteceu: celebrei a vitória sobre o sonho dilacerado, exaltei a alegria de voltar ao meu velho mundo pleno de nuvens e enormes árvores despidas, enquanto o meu corpo transformado em fonte exuberante e fresca matava a obscura sede daquela Rainha, que outrora me humilhara e ferira, ao querer-me. 
Esta mescla de afrontas, de selvajarias e caricias, esta fusão de sonho e de vigília, do inconsciente e da recordação, de emoções e rebeliões do corpo, transformaram-me no espaço de uma noite num ser incansável no amor, renovando o prazer de uma carne flácida e gasta sobre a qual a calma descia como o crepúsculo sobre a noite. Pese embora a manhã se tenha apresentado branca, indiferente e eterna no horizonte.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Princípio de religação

Não vou agora aqui contar o dia em que o amor se apresentou involuntariamente, direi apenas que fui seduzido pelas maravilhas expostas naquela sala. Quanto a ela, amava em mim a perturbação. Mas isso agora não importa nada.
Há momentos em que a massa viva se coloca mais profundamente do que ela julga e por muito mais tempo do que ela desejava sob a alçada do outro.
Na verdade, para alguns homens e mulheres, as longas paixões são meras obsessões da experiência suprema em que o domínio de um ou do outro imprime, como um pesado sinete colocado no centro de gravidade, arrebatadas permutas mentais e físicas a que por vezes se pode designar de subsistência da alma.